Eu e meu companheiro, Carlos Eduardo, estivemos em Buenos Aires, capital da República Argentina, além de Lujan e La Plata, em dezembro de 2007.

Em 2006, em visita a Assunção, conhecêramos Clorinda e Formosa e em julho de 2008 percorremos de carro toda a Província de Misiones até a capital, Posadas. Eu gostava muito de passear na Argentina! Fomos sempre tão bem servidos e recebidos que decidimos repetir e ampliar o passeio em dezembro de 2008.

Durante todo o ano preparamos minuciosamente nossa nova viagem: parcelamos a passagem da Gol, desta vez aumentando o número de dias, de 22/12/08 a 01/01/09, procuramos acomodações, planejamos os passeios... Iríamos repetir a ida a Lujan, capital religiosa do país (onde está Nossa Senhora de Lujan, padroeira da Argentina, “prima” de Nossa Senhora Aparecida, pois a imagem foi trazida do Brasil sob encomenda), bem como La Plata. Iríamos também conhecer Mar Del Plata e talvez atravessar o grande rio e conhecer Montevidéu e o Uruguai.

Chegamos ao Aeroporto internacional de Ezeiza dia 22 à tarde, sem atrasos e conseguimos rapidamente um taxi que nos levou ao Hotel. Fazia calor e o dia estava ensolarado.

Já no caminho, a cidade nos pareceu algo mudada, empobrecida e sem brilho. Era quase natal e não havia decoração alguma, o movimento era menor do que no ano anterior, as pessoas não estavam mais sorridentes e nem pareciam tão hospitaleiras. O próprio chofer do taxi comentou sobre a crise econômica que se abateu sobre o país.

Como o Hotel Gran Via, próximo ao obelisco, onde ficamos muito bem hospedados em dezembro de 2007, havia subido muito os preços, o Carlos Eduardo pesquisou na internet e localizou o Hotel Budget. Pelas fotografias apresentadas, tratava-se de um hotelzinho temático, bonito, colorido e limpo. Quando chegamos...

Como de costume, pagamos adiantado e, apenas após termos feito esta sandice, fomos apresentados ao nosso “quarto”. Na realidade, o Hotel é algo improvisado: nos fundos funciona um estacionamento, veículos entram e saem e as “janelas” do quarto dão para o interior do galpão onde ficam os carros. O cheiro era um pouco forte de mofo (pois não há iluminação direta), o piso lascado, o armário, sem porta, tem prateleiras de laje de cimento. Há um arremedo de cozinha em frente à cama, com um velho forninho elétrico e, sob a pia, um pequeno frigobar. Tudo tolerável, não fosse o banheiro.

Já me servi várias vezes de banheiros de oficinas mecânicas, mas, de maneira absolutamente emergencial. Ficar 11 dias em um hotel onde o chuveiro está sobre o vaso sanitário é algo inconcebível para um brasileiro, acostumado ao banho diário. Ah...Também somos acostumados a que já estejam no “banheiro” toalhas e papel higiênico, sem que haja a necessidade de solicitar estes itens à recepcionista.

Saímos para a rua, discutimos um pouco e, em pouco tempo decidimos que não nos alojaríamos ali.

No reinado do politicamente correto, para não parecer orgulhoso ou arrogante, pretextei um caso de morte na família, e tentamos reaver ao menos parte do nosso dinheiro.

A atendente pediu que eu regressasse no dia seguinte, para falar com a encarregada, Roxana, a qual estaria ali a partir das 6 horas da manhã. Em regressando, a encarregada, com certa rispidez, pretextou que a devolução de dinheiro não era uma prática corrente, que teria de consultar os proprietários e coisa e tal... Mais uma vez solicitou que eu voltasse no dia seguinte. Era evidente que não havia a menor intenção de devolver o dinheiro, nem mesmo parte do montante.

Expliquei a ela que iria à polícia com o recibo que eu possuía e que, além disso, iria me manifestar através da internet – comunicando aos turistas desavisados o ocorrido – e que isto seria muito mais danoso para o hotel do que me devolver uma parte dos novecentos e noventa pesos que havíamos deixado como pagamento, por um serviço que não iríamos usufruir.

Nada adiantou e, sob olhares suspeitos dos presentes, deixamos o hotel e fomos para a estação Urquiza do metrô e de lá para a estação Constitución. Saímos do metrô apenas para irmos a uma lan house, depois voltamos pela linha E.

Preciso explicar que entre o dia 22 e o dia 23 nos instalamos no Hotel Parlamento, equivalente aos bons hotéis de 3 estrelas do Brasil, próximo à Praça dos Congressos.

Não sei precisar quando ocorreu o furto. O trem estava muito cheio e as pessoas se esbarravam umas nas outras todo o tempo.

Houve um “cego” (falso) que trombou comigo ao sair do vagão, houve também um tipo muito suspeito, semelhante aos “malacos” que existem no Brasil, forte, de cabeça raspada e usando colar “de bolas” (sementes em forma de pelotas) que ficou ouvindo atentamente a minha conversa com meu companheiro, a respeito do dinheiro que ainda tínhamos e do limite do cartão de crédito.

Quando saí do vagão, qual não foi minha surpresa quando, ao correr a mão esquerda sobre o bolso da calça (como sempre faço para checar a presença da minha carteira) percebi que ele estava vazio!

Instintivamente, entrei no vagão novamente e procurei pelo chão...

Naquele momento eu acabara de perder todos os meus documentos e cartões.

Eu era um anônimo na multidão.

Não possuía sequer a permissão de permanência no país, estando sujeito a ser detido a qualquer momento e sem poder provar minha identidade.

Vivi então alguns dos momentos mais apavorantes de minha existência.

Era uma espécie de “apátrida”, de “ninguém”. Soube naquele momento qual a sensação do “não-cidadão”, do “não-existente”.

Em subindo à estação, fomos orientados por um funcionário a procurar uma espécie de delegacia especial que existe na estação Boedo.

Na delegacia – repleta de pessoas esperando para serem chamadas – a funcionária de plantão, vestindo roupas de policial e sentada num antigo PC, disse para que voltássemos amanhã, outra hora, ou que não voltássemos... A delegacia estava cheia de pessoas que, como eu, haviam sido furtadas, e ela tinha muito trabalho.

Tal como a funcionária do hotel Budget, a policial tratou-me com desdém e arrogância, coisa pouco comum para um país em crise e que deveria, portanto, tratar com o mínimo de urbanidade os turistas que para ali levam divisas.

Em telefonema ao consulado do Brasil, a funcionária explicou que nada poderiam fazer por mim se eu não tivesse um documento válido de identificação e um boletim de ocorrência. Sugeriram que telefonasse ao Brasil e solicitasse de um familiar que trouxesse a Buenos Aires um documento qualquer contendo fotografia, tal como carteira de trabalho ou certificado de reservista. Mais apavorante do que isto, disse que estariam fechados até o dia 27. Minha sensação de impotência foi se transmutando em indignação.

Ser roubado e tratado mal por uma funcionária de “hotel” ou uma policial argentina era uma coisa, mas ser desprezado e deixado órfão, sem qualquer expectativa de ajuda, por funcionárias brasileiras, que são muito bem pagas com dinheiro público... Isto era um absurdo, uma afronta!

Num segundo telefonema, disseram que devido ao grande número de brasileiros assaltados abririam no dia seguinte na parte da manhã. Meu companheiro conversou com a funcionária como se fora ele a vítima e como se houvesse cópia de um documento. A conversa mudou.

Em desespero, voltamos ao Hotel Parlamento.

Planejamos o regresso de Carlos Eduardo ao Brasil e eu ficaria aguardando no Hotel por um ou dois dias. A alternativa seria telefonar para minha mãe, mas, ele quis preservá-la.

Estávamos perplexos, assustados e com os ânimos exaltados.

Inicialmente porque no Brasil as delegacias de polícia, via de regra, estão sempre cheias, mas, mesmo assim, ninguém deixa de ser atendido.

Mas a causa maior de perplexidade é a maneira displicente com que funcionárias públicas brasileiras, regiamente pagas com dinheiro público, abandonam um turista à sua própria sorte, deixando-o órfão da sua pátria, da sua nacionalidade, da sua cidadania.

Num momento em que existe internet e a informatização atingiu todos os órgãos públicos, será possível que não haja como identificar um cidadão brasileiro que, desventurada mente, foi roubado no exterior?

Muito confusos, buscamos orientação na portaria do hotel.

Com muita solicitude, os funcionários ali presentes nos falaram da delegacia de apoio ao turista, na Corrientes, próximo à Florida.

Ali o tratamento foi muito diferenciado.

O policial de plantão sugeriu que procurássemos uma delegacia que havia ali próxima e que atendia melhor aos turistas e que mentíssemos.

Isso mesmo, o homem da lei disse para mentirmos: orientou-nos, para sermos melhor atendidos que disséssemos que o furto ocorrera na esquina da Florida com a Corrientes, portanto dentro da área de abrangência de uma delegacia com uma interface mais amigável.

Qual não foi meu espanto quando, chegando à delegacia, percebi que o idioma ali predominante era o português! Mesmo os cartazes eram bilíngües e havia dezenas de brasileiros que, como eu, haviam sido assaltados naquele dia.

Havia uma família de Niterói que, exatamente como eu, fora assaltada no metrô e fora orientada a dizer que o assalto ocorrera na Florida!

Eles haviam viajado 40 horas de ônibus e os ladrões levaram os 900 dólares que a senhora havia economizado durante todo o ano para a viagem...Havia uma senhora idosa, muito elegante, que explicava – em bom português – que havia sido empresária mas que agora estava aposentada, havia jovens cariocas e alguns paulistanos.

Conversamos também com um casal espanhol, muito simpático, que havia sido assaltado há pouco. A estada na delegacia foi terapêutica e de lá saí com o Boletim de Ocorrência lavrado, ainda que – como vim a perceber depois – com um dos dígitos de meu RG incorreto.

Chegando ao hotel a recepção informou que o Consulado ligara, solicitando que o Carlos Eduardo comparecesse no dia seguinte às dez horas, levando duas fotografias e o documento (da minha pessoa nem se lembravam, certamente).

Restava o problema do documento.

Me lembrei de ter escaneado meu RG antigo. A única diferença entre o antigo e o novo era a ausência do dígito verificador final e, além do mais, se eu houvesse arquivado a cópia em meu e-mail, bastava imprimi-la.

Meio sem esperanças e meio esperançoso fui a uma lan house e busquei no meu e-mail...

Vamos, vamos... Tinha de estar lá...

Estava!

Salvo em Word, frente e verso, em 2007!

Imprimi o documento.

No dia seguinte, logo cedo, procuramos um estúdio fotográfico.

Qual tamanho deveriam ser as fotos?

No Brasil são 3 por 4, na Argentina 4 por 4, mas há também 4 por 5!

Arrisquei o 4 por 4 com fundo branco (lá usam fundo azul celeste).

Chegando ao Consulado novo obstáculo: o guarda avisa que não há atendimento, apenas dia 27! Explicamos que havíamos recebido um telefonema e, sem muita convicção, ele nos manda subir.

Chegando ao Consulado nos esperava uma sala tão repleta quanto a delegacia do dia anterior: um casal de Fortaleza em lua de mel, uma moça muito simpática, também de Campinas, chamada Valmira, cariocas, paulistas...

A vice-cônsul, um pouco irônica, me pergunta porque saí com todos os documentos e eu então explico que já estivera em Buenos Aires antes e que julgara a cidade segura. Ela me responde, já mais simpática, que nenhuma cidade do mundo é segura.

Ela fala português com sotaque estrangeiro. Será brasileira nascida no exterior? Pode ser... Filha de diplomatas... Quem sabe? O certo é que os presentes não sentem empatia, alguns se queixam do atendimento.

Eu, de minha parte, me dei por muito feliz por sair dali com uma autorização para deixar o país. A Argentina não me parecia mais o lugar que eu conhecera antes e onde estivera várias vezes.

Chegando ao Aeroporto, com a nova amiga Valmira – que viria ao Brasil no vôo da Varig das 14h30 – ficamos surpresos porque o funcionário da Varig desconhecia a fusão da sua companhia com a Gol, nos obrigando a peregrinar de balcão em balcão, explicando que fôramos roubados e teríamos de antecipar o vôo...

Por fim, tudo se resolveu e regressamos ao Brasil.

Dois dias haviam se passado e chegamos em casa há poucas horas da ceia de natal.

Decidi, desde aquele momento, que registraria todo o ocorrido para que nenhum brasileiro tivesse de passar pelos momentos difíceis que eu tive de enfrentar.

Neste sentido, aconselho que o turista evite a linha E do metrô, as cercanias de La Rioja e que nunca leve todos os documentos consigo.

Não acredite em tudo o que vê na internet e sempre peça para examinar as acomodações antes de efetuar o pagamento (por mais que o costume local seja o pagamento adiantado).

Aconselho também a que vá imediatamente à delegacia do turista, na Avenida Corrientes, caso necessite e que vá pessoalmente ao Consulado Brasileiro e exija o seu direito de ser atendido pelas autoridades que são pagas com dinheiro público do contribuinte brasileiro!