Breve estudo sobre o Poder Judiciário e seu atual papel no processo democrático

Resumo: Ao longo da evolução do Direito e das sociedades, o Poder Judiciário sempre desempenhou um importante papel dentro do Estado, atuando não só como o julgador imparcial, mas também como o guardião, em última instância, das leis e do texto constitucional. Com efeito, hodiernamente, a função jurisdicional é exercida de forma ainda mais ampla, deixando de ser exclusivamente jurídica para também revelar aspectos políticos e sociais, sendo essencial e indispensável ao desenvolvimento e fortalecimento do processo democrático. Seus princípios e evolução são essenciais ao reconhecimento da sua complexidade e à discussão de conceitos como do ativismo judicial e da judicialização da política, como se passa a expor.

Sumário: 1. Introdução – 2. Breve evolução histórica da função jurisdicional. 2.1. Origem da função jurisdicional: da justiça privada ao Estado de Direito. 2.2. Separação de Poderes: reconhecimento e elevação da função jurisdicional – 3. Conceitos e princípios atinentes à função jurisdicional. 3.1. Conceitos de jurisdição. 3.2. Princípios orientadores da atividade jurisdicional. a) Princípio do juiz natural. b) Princípio da autonomia dos juízes. c) Princípio do devido processo legal. 4. A função jurisdicional e seu papel processo democrático - 5. Conclusões.

1.    Introdução 

Um dos princípios basilares do Constitucionalismo Moderno é a Separação de Poderes. O método político de divisão de competências e atribuição de responsabilidades que se popularizou com as ideias de Montesquieu prega, em linhas bem gerais, que o Poder Estatal, se exercido apenas por um indíviduo ou um determinado grupo de pessoas, corre o sério risco de se tornar ditatorial e, consequentemente, violador das liberdades e garantias individuais.

Assim, o melhor seria dividir as atribuições do Poder Estatal em funções, atribuições específicas a serem designadas a diferentes grupos de pessoas. Na sua formação mais conhecida, as funções em questão foram agrupadas de modo a serem determinados três distintos, porém, interligados, poderes: Poder Excutivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário.

Nos tópicos a seguir analisaremos tanto o princípio da Separação de Poderes como cada poder em si, em especial, o Poder Judiciário, a quem, a princípio, fora atribuído o exercício da função jurisdicional – ou jurisdição -, a qual é o objeto central deste estudo.

Assim, veremos que a função jurisdicional, quando da sua origem, limitava-se ao reconhecimento e aplicação do direito em um caso concreto, com o fim de resolver um conflito submetido ao Poder Judiciário, pelas partes em disputa. Neste contexto, o exercício da jurisdição se dava de forma extremamente atrelada à lei, sendo o juiz – representante do Poder Judiciário – mais um substituto da vontade das partes do que um “fazedor” de justiça.

Com desenvolvimento das relações sociais, estas cada vez mais complexas, viu-se que a atuação do Poder Judiciário, nos moldes em que vinha sendo exercida, não se mostrava suficiente à concretização da almejada paz social, situação esta que se agrava em um modelo de Estado na qual os outros poderes também não possuem uma atuação satisfatória para alcance deste objetivo.

Assim, o conceito de jurisdição e seus desdobramentos foi revisitado, tanto pela doutrina como pelos próprios atores do Poder Judiciário, buscando-se um novo meio de se exercer a função jurisdicional, muito mais relacionado com o fazer justiça do que com o aplicar a lei ao caso concreto.

Esta nova concepção de jurisdição, ainda que possa parecer mais coerente com o que a sociedade espera do Poder Judiciário encontra algumas dificuldadades, uma vez que não raro para que uma decisão seja tida como justa, é preciso não aplicar uma lei ou – talvez ainda pior – criar-se uma regra aonde há uma lacuna do Poder Legislativo.

Mesmo com tantas perguntas e desafios a serem respondidos e superados, vê-se que a concepção atualmente adotada de jurisdição é aquela que prega uma função jurisdicional, mais aberta – inclusive com a atuação da função jurisdicional por entidades outras que não o Poder Judiciário – e mais atuante, conforme se verá a seguir.

2. Breve evolução histórica da função jurisdicional. 

Como já adiantado alhures, o reconhecimento da existência de uma função jurisdicional enquanto um dos poderes do Estado se dá quando da divulgação dos ideais de Montesquieu acerca do princípio da Separação de Poderes. Contudo, muito antes deste reconhecimento, adotava a sociedade outras formas de resolver seus conflitos – estes existentes desde a organização dos indivíduos em sociedades -, as quais já podiam ser tidas como embriões ou prelúdios da função jurisdicional.

Em verdade, o próprio princípio da Separação de Poderes é anterior a Montesquieu, tendo com este apenas alcançado a concepção que, diante do modelo histórico-político da época, pareceu ser a mais adequada, ganhando rápida notoriedade e difusão.

2.1. Origem da função jurisdicional: da justiça privada ao Estado de Direito

Como bem pontua Humberto Theodoro Junior, “Os bens da vida (isto é, as coisas ou valores necessários ou úteis à sobrevivência do homem, bem como a seu aprimoramento) nem sempre existem em quantidade suficiente para atender, com sobra, as exigências de todos os indivíduos”[1]. Neste sentido, ainda que a organização em sociedade nos torne mais fortes para enfrentarmos as adversidades – naturais ou construídas – e assim alcançarmos não só a nossa sobrevivência, mas, principalmente, nosso desenvolvimento, não raro vemos duas ou mais pessoas disputando um bem da vida, limitado e incapaz de ser aproveitado por todos os envolvidos[2].

Assim, tão antiga quanto é a organização em socidade, são também os conflitos de interesse, os quais se verificam quando duas ou mais pessoas pretendem, em um mesmo momento e espaço, usufruir de um mesmo bem.

Conforme apontado alhures, no primórdios do homem e da sociedade, não se falava em função jurisdicional, de tal sorte a ser impossível a verificação de um litígio (ou lide). Isto porque para que o litígio nada mais é do que o conflito de interesses que é levado para apreciação e solução junto ao Poder Judiciário.

Pois bem. Nas primeiras sociedades, o papel do Estado não alcançava as proporções hoje conhecidas, sendo este bastante fraco e mal-organizado, limitando-se a declarar direitos, mas não a defendê-los. Imperava neste momento histórico o conceito de justiça privada, ou seja, cabia aos próprios titulares de direito a tarefa de garanti-los, os quais podiam, literalmente, fazer justiça com as próprias mãos.

Evidente que este modelo de solução de conflitos, com o desenvolvimento e aumento do grau de complexibilidade das sociedades e relações travadas dentro destas, se mostrou insatifatório e insuficiente para fins de garantia da paz social.

A imperfeição da justiça privada é superada quando do fortalecimento do Estado, e surgimento da figura do Estado Moderno. Ao contrário do que se verificava até em então, o Estado Moderno é extremamente centralizador e controlador de todos os aspectos da sociedade, vindo a ser, no futuro, o embrião do Estado Absolutista.

Ainda que posteriormente tenha o Estado Moderno evoluído para um tipo de governo controlador e autoritário, seu surgimento pôs fim à justiça privada e ao caos por esta instituído, na medida em que o Estado chamou para si o ônus definir os direitos e reconhecê-los no caso concreto. Em verdade, o Estado concentrou em si mesmo todas as funções hoje desempenhadas separadamente, cabendo apenas ao monarca – extremamente forte e soberano – o exercício dos poderes de criação e reconhecimento dos direitos, aplicação destes no caso concreto e até mesmo a execução destes, quando não prestado de forma espontânea, mostrando injusta e indevida a resistência.

A ideia de um Estado forte e centralizador fora desenvolvida por diversos teóricos da época, tais como Maquiavel e Hobbes. Em seu trabalho, “O Leviatã”[3], Hobbes deixa claro que a construção de um Estado concentrado – em resposta ao caos e desordem verificados em outrora – era essencial à vida em sociedade e fim da anarquia verificada naquele momento histórico.

Isto porque, em seu estado natural, o homem, na busca pelo pleno exercício de todos os seus direitos e desejos, é levado ao conflito com seus pares - “o homem é o lobo o homem”. Assim, ainda que possamos ser mais fortes para lutarmos pelos nossos interesses individualmente, a entrega de todo o poder a um só, no caso, o rei, mostra-se o melhor para a sociedade como um todo, pondo um fim à guerra e anarquia entre aqueles semelhantes.

Nesta esteira, a sociedade celebraria um pacto pela sua própria sobrevivência e organização ao entregar ao monarca, representante de um Estado uno e fortificado, todos os seu direitos e poderes para se auto-governar.

É neste contexto de controle e assunção de tarefas dantes de todos pelo Estado que surge o embrião do poder jurisdicional, o qual põe fim à justiça privada e atribui ao Estado o poder de resolver conflitos. Surgem, então, concomitantemente, o dever de jurisdição para o Estado e o direito à tutela jurisdicional para aqueles indivíduos tolhidos do seu direito de resolver, privativamente, os seus conflitos[4].

2.2.       Separação de Poderes: reconhecimento e elevação da função jurisdicional

Como adiantado, a ideia de separação dos poderes já existia antes da propagação dos ideais de Montesquieu, o qual acaba por ser o teórico mais lembrado sobre o tema por ter sido o modelo por ele apresentado o mais adaptável ao tipo de Estado que se desejava na época e nos séculos seguintes.

Pois bem. Licurgo, na Grécia Antiga, já tinha a certeza de que a concentração de poderes nas mãos de um único indivíduo tornaria o ambiente propício a atos de tirania e autoritarismo. O pensamento foi desenvolvido pelos iluministas do século XVII e XVIII, os quais vislumbraram a necessidade de controle dos poderes do Estado mediante a elaboração de um sistema de freios e contrapesos, evitando-se assim o execício de forma absoluta de qualquer um daqueles reconhecidos poderes estatais[5].

No entanto, ainda que houvesse para o Estado um dever jurisdicional, a função jurisdicional em si não fora, logo nos primeiros trabalhos acerca do tema, tida como um dos poderes do Estado[6]. Para Locke, as funções estatais refeririam-se aos poderes legislativo, executivo e federativo, enquanto para Rosseau estes voltariam-se apenas as funções legislativa e executiva.

É Montesquieu que fala a primeira vez sobre a função jurisdicional como um dos poderes do Estado, vislumbrado que a independência do Poder Jurisdicional é essencial à defesa e garantia do direito de liberdade. Sem um juiz autônomo e independente não há um livre julgamento, não se faz justiça e não encontra a situação a sua melhor solução.

Calcada na liberdade, a definição de Montesquieu para o princípio da Separação de Poderes ganha os Estados Unidos da América, na luta pela sua independência, e o mundo, sendo ele até hoje conhecido como o pai da Separação de Poderes e primeiro reconhecedor da importância e existência da função jurisdicional enquanto um dos poderes inerentes à atividade estatal.

Acerca da evolução do princípio da Separação de Poderes até a sua cosagração com as ideias de Montesquieu, vejamos as palavras de Roberto Baptista Dias da Silva[7]:

“A Constituição, ao reger as relações de poder em uma sociedade, estabelece a estrutura dos órgãos do Estado, bem como os limites em que eles devem atuar, especialmente pelo que se convencionou chamar de separação de poderes.

Contudo, convém lembrar que o poder estatal é uno e indivisível. Portanto, apesar de consagradas as expressões “separação dos poderes” e “tripartição dos poderes”, o mais adequado seria falar em separação ou distribuição das funções estatais, que há tempos são identificadas.

Aristóteles, na Política, e, mais tarde, John Locke, no Segundo tratado do governo civil, identificavam as diversas atividades estatais.

Mas a idéia da separação das funções estatais a serem exercidas por órgãos distintos, especializados e autônomos, independentes entre si, aparece sistematizada por Montesquieu, em O espírito das leis.

(...)

Mas o avanço de Montesquieu está na sugestão de repartir organicamente o poder como forma de garantir a liberdade. Assim, além de propor a distribuição das atividades estatais a órgãos distintos e independentes entre si, Montesquieu apresenta a idéia da contenção de poder de cada órgão por meio do exercício do poder dos outros órgãos estatais.”

A Constituição Federal de 1988, em sua preocupação em ser uma resposta aos anos de ditadura, bem como em ser também um instrumento para se evitar que esta se repetisse, consagrou o modelo ensinado por Montesquieu, em especial nas previsões dos arts. 2º e 60, inciso III.

3.      Conceitos e princípios atinentes à função jurisdicional. 

A função jurisdicional, a princípio, referia-se somente ao dever do Estado de julgar, de resolver conflitos apresentados para sua apreciação e solução, dizendo o direito a ser aplicado no caso concreto.

No entanto, conforme já adiantado, tal conceito, com o passar dos anos, se mostrou insuficiente não só ao atendimento das reais necessidades da sociedade, como também à construção de uma sociedade justa e igualitária, democrática.

Nesta esteira, tal como outros tantos conceitos do mundo jurídico – inclusive do da Separação de Poderes -,o conceito de jurisdição sofreu mudanças, a fim de melhor se enquadrar à realidade hoje vivenciada, como se verá a seguir.

3.1. Conceitos de função jurisdicional

Nos dizeres de Chiovenda, a atividade jurisdicional é “a função do estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei, por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirma a existência da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva”.[8] Na mesma esteira, e ainda mais processualista, Guasp e Aragoneses dizem que jurisdição é a “função específica estatal pela qual o Poder Público satisfaz pretensões”[9], em outras palavras, à função jurisdicional caberia apenas o papel de resolver os conflitos a ela apresentados.

As concepções acima apresentadas, de um conteúdo muito mais processualista do que político e/ou filosófico, traduzem a noção de jurisdição adotada pelo legislador pátrio quando da edição do Código de Processo Civil, em 1973 (art. 2º), na qual ao Poder Judiciário – representante da função jurisdicional, incumbe apenas a solução de conflitos, com base nos preceitos, orientações e comandos previamente estabelecidos em lei, tanto para o direito material como para o direito processual.

Assim, o campo de atuação do magistrado é bastante reduzido. Ele é, se levarmos o conceito ao seu extremo, um aplicador da lei, quase um técnico em legislação, a quem não se confere um grande poder de criação em busca de solução para o caso, melhor, porém não prevista em lei.

Deste primeiro conceito de jurisdição o que podemos extrair de elementos para uma melhor compreensão da atividade jurisdicional é que: (i) volta-se à solução de um conflito de interesses; (ii) depende de provocação das partes interessadas (iii) o juiz atua como um substituto da vontade das partes; e (iv) o cumprimento da ordem emanada em razão da sua força coercitiva.

Nesse sentido, a função jurisdicional é, em essência, litigiosa, ou seja, depende da existência de uma lide e a atuação do magistrado dar-se-á em substituição à vontade das partes, porém, em conformidade com a vontade da lei.

Ocorre que, em um cenário no qual a função legislativa não é exercida de forma satisfatória – quer seja pela ineficiência do Poder Legislativo, quer seja pela incapacidade deste de prever todos os desdobramentos e complexidades das relações sociais -, manter o Poder Judiciário atrelado ao estrito cumprimento da lei é tolher-lhe da sua essência e potencialidade.

Como bem pontua Jorge Reis Novais[10], o Estado de Direito tem como seu principal pressuposto a defesa dos direitos fundamentais, não podendo uma eventual ausência legal impedir a efetivação destes. Assim, a função jurisdicional é uma grande invenção contramajoritária, um trunfo da minoria que serve tanto à garantia dos direitos fundamentais, como da própria democracia.

Neste sentido, faz-se necessária uma releitura do conceito de jurisdição inicialmente difundido, a fim de melhor adequá-lo as atuais necessidades da sociedade, bem como da nossa própria Constituição Federal.

Isto porque, como já ressaltado, a nossa Constituição Federal pauta-se nos princípios da Separação de Poderes, da defesa da democracia e da garantia e promoção dos direitos fundamentais. Assim, o Poder Judiciário deixa de ser um poder de cunho extrimamente processual, para ser, também, de cunho constitucional, sendo peça fundamental para a efetivação do conteúdo programático contido na Lei Maior.

Nas palvras da doutrina, a “assume a hermenêutica constitucional grande importância para develar os desígnios constitucionais, transcendendo o plano teórico-positivo para atingir o plano fático (...) A nova atuação jurisdicional é compatível com o princípio democrático e evita a indevida intromissão nas atribuições dos demais poderes”[11]. Desta sorte, o Poder Judiciário assume um novo enfoque, deixando de ser um poder voltado à mera execução da lei na hipótese de lítigio, para visar a concretização dos valores constitucionais, sendo essencial à consagração do modelo do Estado Democrático de Direito.

Neste novo contexto de jurisdição, veremos que em não raras ocasiões a atuação do Poder Judiciário em conformidade com os conceitos recentes e acima apresentados vai significar deixar de fazer o que está em lei ou até mesmo suprir um vazio legal com uma determinação impositiva ao Poder Executivo.

As figuras do ativismo judicial e da judicialização da política ganham força. O Poder Judiciário, no exercício da sua função típica (solução de conflitos) vai fazer mais do que dizer o direito, e determinar a efetivação dos direitos fundamentais, em especial dos direitos sociais.

Contudo, ainda que se possa vislumbrar em tal atuação uma forma de concretização do programa prescrito na Constituição Federal, suprindo uma insuficiência dos outros Poderes que, em verdade, não está só relacionada com a ineficiência dos seus representantes, mas sim com a complexidade das relações sociais, não é tal forma de atuação do Poder Judiciário uma contradição ao princípio da Separação de Poderes?

De início, é preciso ressaltar que a Separação de Poderes, como bem vislumbrou Montesquieu – seguido pela melhor doutrina -, a pedra de toque do princípio não está na distribuição das funções, mas sim na existência de um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) que permite a regulação de uma função por outra, mantendo-se o Poder Estatal – que é uno – em harmonia e equilíbrio.

No mais, não haveria violação ao princípio da Separação de Poderes se o Poder Judiciário “no exercício da sua atividade típica de julgar reconheça a violação ao direito subjetivo de outrem. E tal pode deriva do inc. XXXV, do art. 5º, da CF/1998 que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito””[12].

Neste novo sentido de jurisdição, alguns temas têm tido especial destaque, com uma atuação judiciária muito forte e muitas vezes contrária às previsões legais acerca do assunto. É o caso, por exemplo, das disputas envolvendo vagas em creche públicas.

Diz a Constituição Federal que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205), previsão está que foi repetida e melhor desenvolvida no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesta esteira, cabe à União Federal, Estados e Municípios o dever de propiciar às crianças e adolescentes acesso ao Ensino Fundamental e Médio, consoante previsões do artigos 23, inciso V; 24, inciso IX; 30, inciso VI. Neste ponto, surge o primeiro problema? Voltando-se a previsão constitucional à garantia da educação fundamental, haveria o dever de oferecimento de vaga em creche?

Ainda que não haja previsão constitucional que ampare este suposto dever estatal, a jurisprudência entende haver o dever de fornecimento de vagas em creche pelo Poder Público, na medida em que esta prestação não estaria tão relacionada com o dever/direito à educação, mas sim ao direito – na verdade, necessidade – da mãe da criança de voltar a trabalhar. Isto posto, são dois os direitos em jogo: o ao trabalho, por parte da mãe (principal), e à educação, do menor (secundário).

Ocorre que, mesmo sendo inconteste a existência e relevância dos direitos sociais em jogo na situação discutida, o Estado – em todas as suas esferas – tem se mostrado insuficiente na efetivação da prestação envolvida (oferecimento de vagas em creche), o que levou muitas famílias a buscarem pela tutela jurisdicional para concretização dos seus direitos.

Sem poder se escusar da prestação jurisdicional, tampouco negar a existência dos referidos direitos, o Poder Judiciário – até por falta de saída melhor – tem adotado a prática de deferir os pedidos que requerem vagas em creche, surgindo assim um novo problema: o reconhecimento por parte do Poder Judiciário da existência do direito de vaga em creche não significa que o direito será de fato efetivado, sendo que, em muitos do caso, os requerentes “ganham, mas não levam”.

Neste sentido, podemos vislumbrar que uma postura mais ativa do Poder Judiciário é uma necessidade e até mesmo um imperativo dentro do modelo de Estado Social e Democrático de Direito, contudo, o ativismo judicial, sem uma reforma no programa político, é pouco eficiente e gera um sentimento de frustração e insatisfação com o Poder Público tão grande quanto quando da primeira impossibilidade de exercício do direito em jogo.

No caso das vagas em creche, foram tantas as decisões proferidas no sentido de compelir o Estado a fornecer a vaga na creche pretendida pelos requerentes que se mostraram inexecutáveis, que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em um esforço para resolver de forma satisfatória o sem número de ações que apareciam diariamente nos gabinetes dos juízes, convocou duas audiências públicas com diversos setores da sociedade civil, Poder Judiciário, Defensoria Pública e Ministério Público, além de membros dos Poderes Legislativo e Executivo. Até o momento da conclusão deste trabalho, não havia a iniciativa do Tribunal de Justiça paulista alcançado alguma solução em termos de adoção de novas políticas públicas e jurídicas para o tema, contudo, espera-se que esta reunião produza frutos melhores do que os colhidos até o momento.

Ainda quanto ao novo conceito de Jurisdição, vale dizer que este não se refere somente ao resultado da prestação jurisdicional, mas também ao processo em que essa se desenvolve. Em outras palavras, a função jurisdicional terá se dado nos conformes do texto constitucional e do novo conceito que se dá à jurisdição se o processo se desenvolver de forma célere, clara e em observância aos princípios abaixo apresentados, garantindo-se assim a efetividade da tutela jurisdicional obtida[13].

Uma decisão judicial que encontra seu resultado final vinte anos depois de ajuizada a demanda ou que assegura à parte um direito que esta não terá como efetivar não é jurisdição nos exatos termos pregados pelo atual Estado Democrático de Direito. Muitas medidas têm sido adotadas para melhoria da prestação jurisdicional, inclusive com o deslocamento da atividade para entidades que não integram o Poder Judiciário – cartórios e Câmaras de Arbitragem -, contudo, das mudanças introduzidas no conceito de jurisdição, entendemos que esta é a de mais difícil concretização.

3.2. Princípios orientadores da atividade jurisdicional

São vários os princípios orientadores da atividade jurisdicional, contudo, podemos elencar os três abaixo como os mais importantes, uma vez que asseguram uma prestação jurisdicional impessoal e imparcial, emanada do poder competente para tanto, mediante a observância de regras previamente estabelecidas e que devem ser tidas como uma garantia dos direitos individuais da parte no processo.

Nesta esteira, vamos estudar abaixo os princípios (i) do juiz natural; (ii) da independência dos juízes; e (iii) do devido processo legal – este, a nosso ver, é o de maior relevância e importância.

a)                  Princípio do juiz natural

O fundamento da jurisdição e, consequentemente do poder/dever jurisdicional, está na Constituição Federal, a qual estabele que a jurisdição é una e abrange todos os litígios que se possam verificar em torno de quaisquer assunto envolvendo conflito de interesses/direitos diversos.

Neste sentido, a divisão das competências em Justiça Cível, Penal, Trabalhista, Eleitoral e outras é, na verdade, apenas para fins de melhor organização e funcionamento do Poder Judiciário, evitando abarrotamento das varas e uma prestação jurisdicional insuficiente e contrária ao melhor interesse das partes. Tanto é assim que basta irmos ao interior do Estado para verificarmos em pequenos municípios a existência de varas únicas, ou seja, de varas competentes para analisar matérias de responsabilidade civil e contratos, bem como para julgar casos de família e envolvendo crianças e adolescentes.

Contudo, apenas a Constituição Federal pode criar tribunais e juízos, sendo defeso ao legislador ordinário criar tribunais de exceção, para julgamento de determinadas causas, tampouco dar aos organismos judiciários organização diversa daquela estabelecida no texto constitucional[14].

Como ensina a doutrina constitucional, “veda-se, portanto, que surjam tribunais ou juízos singulares, ou quaisquer outros órgãos julgadores, após a ocorrêncai dos fatos a serem apreciados. Também, fica proscrita a indicação de órgãos para o julgamento de casos determinados. Além de desdobramento do princípio da igualdade, é igualmente decorrente do princípio da legalidade[15]”.

Tal princípio garante àqueles que buscam a tutela jurisdicional um julgamento imparcial e impessoal, ao contrário do que aconteceu em situações nas quais foram criados tribunais ad hoc, ou seja, posteriores à ocorrência do fato a ser julgado e criados apenas para apreciação destes. É o caso, por exemplo, do Tribunal de Nuremberg.

Ainda que seja inquestionável que os atos praticados durante o regime nazista tenham sido aviltantes a uma ordem superior ao ordenamento de cada país, atingindo o direito natural que protege todos os homens simplesmente pela sua condição de seres humanos, o Tribunal de Nuremberg foi, em verdade, um tribunal criado para condenação dos generais nazistas. Aqueles processados tinham a certeza de que seriam considerados culpados, independentemente dos seus argumentos e justificativas. Não houve, portanto, a garantia de um processo transparente e imparcial, não houve o respeito ao princípio do juiz natural.

b)                 Princípio da independência dos juízes

O princípio da independência dos juízes, assim como o acima apresentado, se volta à garantia de um julgamento imparcial e impessoal. De forma mais detida, o princípio da independência dos juízes garante a estes a possibilidade de tomar suas decisões com base no seu livre convencimento, na sua apreciação dos fatos e provas e das suas observações acerca do caso levado à sua análise (artigo 131, do Código de Processo Civil).

Vale dizer que o juiz, ainda que livre para apreciar as provas apresentadas e proferir o seu julgamento acerca da lide discutida, deve, ao máximo, combater as interferências externas que podem comprometer o seu julgamento, tornando-o infundado e tendencioso.

É claro que não se pode esperar do magistrado que se isole e ignore por completo seus valores e influências sociais – até porque se espera que o Poder Judiciário esteja sempre perto da sociedade -, contudo, o segredo da independência dos juízes se dá no sopesamento destas interferências, em cotejo com as provas e argumentos apresentados pelas partes.

Não raro vemos hoje situações em que a influência da mídia – em todas as suas formas – no andamento de um processo ultrapassa em muito os limites do direito à informação para se transformar em verdadeira antecipação da decisão judicial. Quando de hipóteses como esta, o juiz se mostrará um bom representante do Poder Judiciário quando souber dizer qual deve ser a dose de tais influências no seu julgamento, com vistas a não só oferecer uma resposta à sociedade, mas também observar os parâmetros da sua função.

c)                  Princípio do devido processo legal

De todos os princípios aos quais está sujeita a atividade jurisdicional, o do devido processo legal é, sem dúvida, o mais importante. Isto porque é este que dispõe sobre as regras do jogo a serem observadas tanto pelo Poder Judiciário como pelas partes em si, sendo, simultaneamente, uma garantia da efetividade das decisões jurisdicionais e um instrumento de tutela dos direitos individuais.

Nos dizeres de José Afonso da Silva[16], “O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional positivo como um enunciado que vem da Carta Magna inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude de defesa (art. 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e quando se fala em processo, e não em smples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídica”.

Em outras palavras, o princípio do devido processo legal instaura um processo constitucional, ou seja, um conjunto de regras que, pautado nos valores e direitos individuais e coletivos consagrados no texto constitucional, visa garantir igualdade, transparência e efetividade às decisões judiciais,

Assim, ainda que o conceito apresentado fale em uma prestação jurisdicional que dê às partes o que lhes é de direito segundo a ordem jurídica vigente, acreditamos que mais do que dar o direito previsto no ordenamento – atrelando-se o conceito de jurisdição novamente ao cumprimento da norma -, acreditamos que o devido processo legal está preocupado com a efetividade das decisões.

Neste sentido, temos a segunda parte do novo conceito de jurisdição apresentado no tópico anterior, o qual diz que de nada adianta a decisão reconhecer o que está na lei, ou até mesmo descumpri-la em prol de um sentimento de justiça se esta tardar décadas para estar apta a ser executada.

Isto posto, são corolários do princípio do devido processo legal os direitos ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), processo e julgamento público (artigo 93, inciso IX), motivação das decisões (artigo 93, inciso IX), duplo grau de jurisdição (artigo 5º, inciso LV) e segurança jurídica (artigo 5º, inciso XXXVI), entre outros.

Acerca do princípio do devido processo legal, vejamos a lição de André Ramos Tavares[17]:

“O princípio do devido processo legal biparte-se, contudo, passando a ser agregado um aspecto material (substancial).

O devido processo legal, no âmbito processual, siginfica a garantia concedida à parte processual para utilizar-se da plenitude dos meios jurídicos existentes. Seu conteúdo identifica-se com a exigência de “paridade total de condições com Estado persecutor e plenitude de defesa”. Na realidade, a paridade de “armas” tem como destinatário não apenas o Estado, mas também a parte contrária. É, em realidade, o próprio contraditório.

A plenitude de defesa, referida no conceito de devido processo legal, significa o direito à defesa técnica, à publicidade da decisão, à citação, à produção ampla de provas, ao juiz natural, aos recursos legais e constitucionais, à decisão final imutável, à revisão criminal, ao duplo grau de jurisdição.

Já o devido rocesso legal aplicado no âmbito material, diz respeito à necessidade de observar o princípio da proporcionalidade, resguardando a vida, a liberade e a propriedade.”

Neste sentido, vemos que o conceito de jurisdição que começa a tomar força e ganhar os tribunais encontra forte amparo no princípio do devido processo legal, tanto no seu aspecto processual como no seu âmbito material.

4.      A função jurisdicional e seu papel processo democrático

Como já vem sendo dito nos tópicos anteriores deste trabalho, o conceito de jurisdição – assim como outros tantos conceitos da ciência do Direito – está em um processo de evolução. Já passamos pela fase da justiça privada, encontramos um Estado fortalecido que assumiu para si o dever se exigir dos indivíduos o cumprimento das leis por ele postas, vimos o desenvolvimento do princípio da Separação de Poderes dar a tônica do Poder Judiciário, e hoje vemos o declínio da concepção clássica da atividade jurisdicional.

Ante as dificuldades que o Estado encontra hoje para realizar os direitos fundamentais pelos outros poderes, clama a sociedade por um Poder Judiciário mais ativo, mais próximo dos seus anseios e capaz de atender às suas necessidades de uma forma não permitida pelos outros poderes.

Conforme ressaltado, ainda que sejam inquestionáveis as vantagens de tal atuação do Poder Judiciário, esta não passa incólume e alguns de seus pontos merecem estudo mais detido.

O primeiro deles é justamente acerca do princípio da Separação de Poderes. A Constituição Federal consagra o modelo de Montesquieu como o adotado para organização do Estado não somente nos artigos 2º e 60, inciso III, mas principalmente nas disposições que se voltam efetivamente à disciplina de cada poder, delimitação da suas atribuições e forma de composição.

Pois bem. A função de pensar e implementar políticas públicas e judiciárias não incumbe ao Poder Judiciário, mas sim aos Poderes Legislativo e Executivo. Assim, evidente que quando o Poder Judiciário determina a concessão e vagas em creche, o custeio de um medicamento ou o oferecimento de moradia à população de baixa renda, está ele se atribuindo competências que são dos outros poderes, certo? Errado.

Como apontado no tópico anterior, o Poder Judiciário apenas atua quando provocado, decidindo qual a melhor solução para o caso concreto. Assim, evidente que, se não está o magistrado a agir de ofício, tampouco a determinar a criação de um política pública geral, evidente que não há usurpação de função. Em verdade, está o juiz apenas a cumprir com a sua função jurisdicional, valendo ressaltar que este não pode eximir-se de apreciar e julgar as causas que lhe são apresentadas, conforme determina o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

Contudo, mais do que ser uma situação de exercício ou não de uma função típica, é preciso ressaltar que o princípio da Separação de Poderes, hoje, busca muito mais a implantação de um sistema de freios e contrapesos entre os poderes, do que de efetivo e rígido cumprimento das funções a cada um atribuídas.

Nos dizeres da doutrina[18]:

“Assim, retomando a comparação entre normativismo jurídico e o constitucionalismo moderno, se a paulatina introdução dos direitos humanos e fundamentais na seara política culminou com o atual Estado Democrático de Direito, de igual maneira, foi o neoconstitucionalismo que estendeu este conteúdo ético-político (feedback).

Dessa forma, o Judiciário não é um “poder” a ser contraposto na luta pelo poder, mas o principal “freio” constitucional, tanto sob o aspecto formal-estrutural, quanto material-conteudístico.

(...)

É a manutenção das hierarquias entrelaçadas que permite a interação entre política e o direito, a fim de que o Judiciário exerça a posição controladora da constitucionalidade e da legalidade dos atos do Executivo e Legislativo.”

Neste mesmo sentido, outra crítica que se faz a esta ampliação da atividade jurisdicional não merece prevalecer, qual seja, a de que o Poder Judiciário, sendo o único dos poderes que não é democraticamente eleito, não teria legitimidade para atuar de forma mais ativa na solução dos conflitos da sociedade com relação a implantação ou não de políticas públicas.

Ora, como já ressaltando no tópico anterior, o Poder Judiciário, enquanto responsável pela promoção e garantia dos direitos fundamentias e, na verdade, um trunfo contra a maioria, uma resposta contramajoritária e um verdadeiro instrumento de exercício da democracia. Isto porque, até mesmo em razão do modelo de federalismo adotado no Brasil, o Poder Judiciário – principalmente o Estadual – é aquele que está mais próximo dos cidadãos, sendo aquele que recebe e resolve todas as queixas por estes apresentadas. Assim, ainda que não seja democraticamente eleito – o que pode ou não ser uma vantagem -, não há como se dizer que o Poder Judiciário não presta seus serviços em favor da democracia.

Até mesmo Humberto Theodoro Júnior, processualista que fora citado neste trabalho como sendo um seguidor da corrente mais clássica e fechada do conceito de jurisdição já reconheceu que está hoje exerce função social muito maior do que aquela inicialmente prevista pela Constituição Federal e doutrina processual, revisando seu conceito inicial para melhor adequá-lo à necessidade de se pensar em um novo modelo de função jurisdicional[19]:

“Daí falar-se, no século atual, em garantia de um processo justo, de preferêncai a um devido processo legal apenas. Mesmo no plano da aplicação das regras do direito material, não pode o juiz limitar-se a uma exegese fria das leis vigentes. Tem de interpretá-las e aplicá-las, no processo, de modo a conferir-lhes o sentido justo, segundo influxo dos princípios e regras maiores, retratados na Constituição.

(...)

O Estado Democrático de Direito, em suma, revelou-se como aquele em que a Jurisdição vem assumindo, de maneira efetiva, em realce político e social jamais ocorrido na história da civilização.”

Contudo, ainda que esta nova cara da atividade jurisdicional esteja muito mais em próxima da realidade social hoje vivenciada, é preciso se ter em mente que esta não é a resposta efetiva a esta crise na concretização dos direitos fundamentais. Como apontado alhures, os problemas atualmente vivenciados apenas serão superados quando da reavaliação das politicas públicas e jurídicas vigentes.

Sem tais medidas, muito mais reformadoras e permanentes, veremos muito em breve um próprio esgotamento desta postura atuante do Poder Judiciário, o qual verá que suas decisões, ainda que justas e calcadas em valores constitucionais, não são executáveis.

Assim, é preciso que vejamos o ativismo judicial e seus desdobramentos como uma algo muito positivo no cenário atual, mas que de forma alguma pode ser adotado como sistema político, sob pena de aí sim acabarmos por ignorar o que defende o princípio da Separação de Poderes.

5.      Conclusões

O presente trabalho pretendeu a evolução do conceito de jurisdição, principalmente em razão da função hoje atribuída ao Poder Judiciário em razão da insatisfação da população com a atuação dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como da insuficiência destes no atendimento aos anseios sociais.

Primeiramente, é de se ressaltar que a insuficiência dos Poderes Legislativo e Executivo encontra sim grande causa na falta de preocupação e comprometimento dos seus membros com a função a eles atribuídas, contudo, não se pode perder de vista que a complexidade das relações sociais cresce exponencialmente, ao passo que a atividade legislativa é limitada, incapaz de prever todas as situações vividas em sociedade.

Assim, é de se esperar que o Poder Judiciário faça sim a devida ponte entre a sociedade e uma possível lacuna legislativa, integrando a norma dentro das peculiaridades do caso concreto. O mesmo se diz acerca da atuação do Poder Executivo, o qual ainda se perde no modelo confuso de federalismo adotado pelo Brasil, o que afasta ainda mais seus representantes da realidade social em que inseridos e da população a quem deveriam atender.

Desta feita, é inegável a força da atividade jurisdicional na concretização dos valores e direitos previstos na Constituição Federal, a qual, calcada em uma nova visão do direito ao devido processo legal – muito mais material do que meramente procedimental – criou um processo constitucional muito mais aberto e ao mesmo tempo garantidor das liberdades e direitos individuais.

Isto posto, o conceito de jurisdição hoje encontra-se muito mais atrelado a uma concepção de justiça – ainda que grande a indefinição do termo – do que à aplicação e definição da lei ao caso concreto. Em verdade, fomentando uma discussão que se perdura por séculos, vemos que a atividade do Poder Judiciário, com vistas a alcançar a função que lhe fora atribuída pela socidade, implica – em algumas situações – em ignorar a lei para fazer o que é justo, pondo-se em cheque conceitos como o de Justiça, lei e Direito.

Todavia, é importante se ter em mente que, nos moldes em que hoje exercida, a atividade jurisdicional não é a solução para o problema da concretização dos direitos fundamentais, não podendo ser tida como a resposta definitiva para a insuficiência dos Poderes Legisltativo e Executivo, os quais, também com fulcro na Constituição Federal, são igualmente responsáveis pela promoção e defesa dos direitos fundamentais.

Assim, faz-se necessária uma revisão das políticas públicas e, principalmente das políticas jurídicas hoje adotadas, buscando-se uma solução definitiva para o atendimento dos anseios sociais atualmente buscados junto ao Poder Judiciário.

Isto porque já começa o Poder Judiciário a dar sinais do esgotamento da sua atuação como promotor de políticas públicas, sendo que muitas das suas decisões hoje não se mostram executáveis. Neste sentido, além de se verificar uma violação ao novo conceito de jurisdição no que tange à efetividade das decisões proferidas, vê-se também um desequilíbrio entre os poderes, proferindo o Poder Judiciário decisões que o Poder Legislativo ou Executivo simplesmente não têm como cumprir.

Neste contexto, resta violado o sistema dos freios de contrapesos, o qual é essencial ao exercício e respeito do princípio da Separação de Poderes, bem como manutenção do Estado Democrático de Direito.

Diante de todo o exposto, é mais do que necessária uma revisão da função jurisdicional, com vistas a ampliar a sua atuação, contudo, deve esta estar calcada principalmente nos princípios da Separação de Poderes e do devido processo legal, sob o risco de acabar sendo tão inócua quando a concepção que lhe fora inicialmente atribuída.

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[1] JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil – Vol. I. Ed. Forense, 44ª ed., 2006, p. 39.

[2]  Idem.

[3] HOBBES, Thomas. O Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiático e civil. http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_thomas_hobbes_leviatan.pdf, visualizado em 08.12.2013, p. 50.

[4] JUNIOR, Humberto Theodoro. Op. Cit., p. 40.

[5] WOTTON, David. Liberty, metaphor, and mechanism: “cheks and balance” and the origins of modern constitutionalism. – http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=1727&Itemid=27 – visualizado em 08.12.2013.

[6][6] MEIRELES, Edilton. Limites da jurisdição e a efetividade dos direitos subjetivos constitucionais. In Revista de Processo 2013- Tendências Contemporâneas: Processo Constitucional, p. 350.

[7] DIAS, Roberto Baptista Dias da. Manual de Direito Constitucional. 1ª.Edição. Barueri. Manole. 2007, p. 203-204.

[8] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Saraiva, 2ª ed., São Paulo, 1965, p. 3.

[9] GUASP, Jaime Guasp, e ARAGANOSES, Pedro. Derecho processual civil. Ed. Thomson, 7ª ed., 2005, p. 93.

[10] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais. Trunfos contra a maioria. Ed. Coimbra, 2006, p. 205.

[11] LEITE, Gisele, e HEUSELER, Denise. Por um novo conceito de jurisdição, em Repertório de jurisprudência IOB, nº 24/2011, vol. III, p. 844.

[12] MEIRELES, Edilton. Op. Cit., p. 368.

[13] ALMEIDA, Cléber Lúcio de. Anotações sobre a efetividade da jurisdição e do processo. RT 919, maio de 2012, p. 326-327.

[14] JUNIOR, Humberto Theodoro. Op. Cit., p. 43.

[15] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. Ed. Saraiva, 3ª ed., 2006, p. 631.

[16] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. Ed. Malheiros, 27ª ed., 2007, p. 431-432.

[17] TAVARES, André Ramos. Op. Cit., p. 627.

[18] CAIMBI, Eduardo, e NASSIF, Diego. Expansão da jurisdição constitucional e separação dos poderes: uma análise sistêmica à luz da cidadania. In RT 916, fevereiro de 2012, p. 258-259.

[19] JUNIOR. Humberto Theodoro. O processo justo e as tutelas jurisdicionais proporcionáveis aos direitos substanciais em crise. In Revista Dialética de Direito Processual, nº 123, p.34.