Introdução

Neste capítulo veremos que Kant só admite ao sujeito o conhecimento imanente, ou seja, aquilo que está contido na possibilidade da experiência: não conhecemos as coisas, mas nossa maneira de conhece-las (quase se poderia dizer: a nossa maneira de não conhece-las).

Afinal, será demonstrado que não podemos alcançar as "coisas em si" (aquilo que Kant denomina: "númenos"); isto é, as coisas tais como são em si mesmas, que somente podem ser pensadas, e não conhecidas; entretanto, conhecemos as coisas tais como aparecem diante de nós (aquilo que Kant denomina: "fenômenos").

Contudo, para não cair em um idealismo absoluto, Kant tem de admitir algum modo de existência das "coisas em si" ("númenos no sentido negativo"), como origem da matéria dos "fenômenos"; com efeito, podemos concluir que: "sem a coisa em si não se pode entrar no sistema Kantiano, mas com ela não se pode permanecer nele" (Jacobi).

Desenvolvimento

Kant inicia o capítulo fazendo alusão ao "entendimento puro", estudado nos capítulos anteriores, e se refere a tal entendimento como sendo um "país", uma "ilha" de leis imutáveis rodeada por um oceano dominado pelas aparências, neblinas, gelos etc; tal oceano muitas vezes é constituído de ilusões e constantemente ludibria os seus navegantes.

A analogia desenvolvida por Kant é evidente, pois a ilha representa aquilo pelo que conhecemos (entendimento), o oceano o que é conhecido e os navegantes aqueles que estudam o conhecimento adquirido pelo entendimento, os quais erram muitas vezes em seus avanços.

Procurando evitar ser ludibriado, como também, de cometer muitos erros, Kant, pretende assegurar-se do alcance do entendimento (latitude da ilha), de modo que, fique estabelecido: se devemos nos contentar apenas com o entendimento, já que fora do entendimento não haveria segurança (lugar onde acampar), e também se devemos evitar pretensões adversas.

Daí conclui Kant, que tudo que é extraído apenas do entendimento sem qualquer recurso da experiência, não possui nenhuma finalidade, que não seja a própria experiência.

Ora, é considerado que o entendimento deve ser aplicado à experiência, desde que reconheçamos os seus limites; segundo Kant:

"O entendimento, que apenas se ocupa do seu uso empírico, que não reflete sobre as fontes do seu próprio conhecimento, pode, é certo, progredir muito, mas não pode determinar para si próprio as fronteiras do seu uso, e saber o que é possível encontrar dentro ou fora de sua esfera inteira, pois para tanto se requerem as indagações profundas que temos realizado".

É evidente que Kant considera importante o uso do entendimento, mas o fundamental em sua proposta, é determinar quais questões "se situam ou não no horizonte" de tal entendimento; ou seja, é necessário garantir aquilo que é certo como propriedade e de direito, como também, evitar produtos da imaginação fantasiosa.

Em seguida, Kant alerta para a distinção entre uso Transcendental do entendimento, e o uso empírico do entendimento; sendo o primeiro inadequado por si só, já que o entendimento só pode ser usado empiricamente.

Vejamos a definição que Kant apresenta nos dois usos:

·         Uso Transcendental do entendimento: "é o uso de um conceito, em qualquer princípio, que consiste em referi-lo a coisas em geral e em si", ou seja, a objetos que não nos são dados em nenhuma intuição e são, portanto, não sensíveis.

·         Uso Empírico do entendimento: é o "uso que se refere simplesmente aos fenômenos, ou seja, a objetos de uma experiência possível". Sendo aquele que "... se possa sempre verificar".

Considera-se que, segundo Kant, o uso lógico de um conceito só tem sentido, desde que exista um objeto da experiência, do contrário ele é vazio de conteúdo. Ora, mesmo que haja intuição pura a priori, só há validade e objetividade por intermédio da intuição empírica. Todos os conceitos a priori se referem a intuições empíricas, "isto é, a dados da experiência possível".

Nas palavras de Kant:

"Embora todos estes princípios e a representação do objeto, de que esta ciência se ocupa, sejam produzidos totalmente a priori no espírito, nada significariam, se não pudéssemos sempre mostrar o seu significado nos fenômenos (nos objetos empíricos)".

 

Kant exemplifica demonstrando com a matemática; ora, "o conceito de quantidade, procura apoio e sentido no número, e este, por sua vez, nos dedos, nas esferas de coral das tábuas de calcular, ou nos traços e pontos que se põem diante dos olhos".

Portanto, mesmo que o conceito seja a priori, é necessário que se realize na experiência sensível (fenômenos), pois do contrário seria um conceito vazio e sem sentido (isso se aplica a todas as categorias).

Ainda reforça sua tese, e exemplifica também com os conceitos de grandeza, de causalidade, pela contingência, de comunidade; e concluí que é uma ilusão tomar "a possibilidade lógica do conceito (onde não há contradição), pela possibilidade transcendental das coisas"; ora, todas as categorias só podem ser determinadas, significadas e realizadas, por meio de uma condição sensível (fenômeno).  Daí, concluí-se que todos os conceitos puros do entendimento não são para o uso transcendental, e sim para o uso empírico.

Após evidenciar que não é possível ao entendimento ultrapassar os limites do sensível (fenômenos), Kant alerta para a ontologia, que "se arroga conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si", de modo que, propõem a sua substituição pela "analítica do entendimento puro" [1]; Demonstra que as categorias puras não são suficientes para formar "princípios sintéticos a priori", "que os princípios do entendimento têm apenas uso empírico e nunca transcendental e que, para além do campo da experiência possível, não pode haver juízos sintéticos a priori".

Significa que as categorias puras, isto é, ausentes de condições sensíveis, possuem significado transcendental, porém, nunca o uso transcendental, ora, tal uso é impossível.

Em seguida, Kant define os númenos em dois modos:

·         Númenos negativos: "uma coisa na medida em que não é objeto da nossa intuição sensível, abstraindo de nosso modo de a intuir".

·         Númenos positivos: "como objeto de uma intuição não sensível, modo particular de intuição, a intelectual, que, todavia, não é a nossa, de que nem podemos encarar a possibilidade".

Kant admite os "númenos negativos", como que compondo a "doutrina da sensibilidade", pois são "as coisas que o entendimento deve pensar, independente da relação com nosso modo de intuir, portanto, não simplesmente como fenômenos, mas como coisa em si"; Tais "númenos negativos" são necessários para produção do conhecimento sensível e função das categorias; não admiti-los, nos levaria a intuir as coisas de outro modo, diferente da intuição sensível; "e o objeto seria então um númeno em sentido positivo", o que faria reconhecer a ontologia (citada acima) como possível.

Admitindo a intuição intelectual (racionalismo puro), onde as categorias ultrapassariam os objetos da experiência (o que é impossível), Kant, se restringe apenas ao "númeno negativo". Afinal, sem conhecimento empírico, não restaria conhecimento algum, pois não haveria objeto produzido pela afecção da sensibilidade.

Já que Kant concebe a necessidade dos númenos negativos na produção do conhecimento empírico (mesmo que exista fora da intuição sensível), vejamos o que diz acerca de sua compreensão:

"... não é possível compreender a possibilidade de tais númenos, e o que se estende para além da esfera dos fenômenos é (para nós) vazio; quer dizer, temos um entendimento que, problematicamente, se estende para além dos fenômenos, mas não temos nenhuma intuição, nem sequer o conceito de uma intuição possível, pelo meio da qual nos sejam dados conhecimentos fora do campo da sensibilidade, e assim o entendimento possa ser usado assertoricamente para além da sensibilidade".

Entretanto, nem por isso o númeno é "... uma ficção arbitrária, pelo contrário encadeia-se, com a limitação da sensibilidade, sem toda via poder estabelecer algo positivo fora do âmbito desta".

 

Segundo Kant, o númeno não pode ser considerado um objeto inteligível, apenas um problema, "uma possibilidade da qual não podemos ter a mínima representação".

Afinal, nossas sensibilidades são limitadas pelo entendimento de modo negativo, "em virtude de denominar númenos as coisas em si."


[1] "É importante esclarecer que tal crítica à "ontologia", não fere a ontologia clássica, pois se refere à ontologia racionalista ou dogmática, que é puramente tautológica; ora, a razão pura que exercita e procede só na base dos seus conceitos e dos seus princípios; de tal modo, ela não ultrapassa a possibilidade e a coerência de seu pensamento, a pensabilidade, e por isso não atinge a coisa em si ou o ser. Significa que uma ontologia que não atinge o ser, é uma ontologia que se auto-suprime: não é ontologia. Neste relevo a crítica Kantiana, embora negativa, é irrefutável; afinal, sem referencias ao ser, sem encontro com ele, toda ontologia é impossível, e no caso que se dê uma ontologia, é ilusória". ("Metafísica" – curso Sistemático; de Aniceto Molinaro; Ed, Paulus).