BREVE ESTUDO "DO PRINCÍPIO DA DISTIÇÃO DE TODOS OS OBJETOS EM GERAL EM FENÔMENOS E NÚMENOS" ? CAP. III ? LIVRO II (ANALÍTICA DOS PRINCÍPIOS) NA "CRÍTICA DA RAZÃO PURA".
Publicado em 03 de julho de 2009 por Adriano de Araujo
Introdução
Neste capítulo veremos que Kant só admite ao sujeito o conhecimento imanente, ou seja, aquilo que está contido na possibilidade da experiência: não conhecemos as coisas, mas nossa maneira de conhece-las (quase se poderia dizer: a nossa maneira de não conhece-las).
Afinal, será demonstrado que não podemos alcançar as "coisas em si" (aquilo que Kant denomina: "númenos"); isto é, as coisas tais como são em si mesmas, que somente podem ser pensadas, e não conhecidas; entretanto, conhecemos as coisas tais como aparecem diante de nós (aquilo que Kant denomina: "fenômenos").
Contudo, para não cair em um idealismo absoluto, Kant tem de admitir algum modo de existência das "coisas em si" ("númenos no sentido negativo"), como origem da matéria dos "fenômenos"; com efeito, podemos concluir que: "sem a coisa em si não se pode entrar no sistema Kantiano, mas com ela não se pode permanecer nele" (Jacobi).
Desenvolvimento
Kant inicia o capítulo fazendo alusão ao "entendimento puro", estudado nos capítulos anteriores, e se refere a tal entendimento como sendo um "país", uma "ilha" de leis imutáveis rodeada por um oceano dominado pelas aparências, neblinas, gelos etc; tal oceano muitas vezes é constituído de ilusões e constantemente ludibria os seus navegantes.
A analogia desenvolvida por Kant é evidente, pois a ilha representa aquilo pelo que conhecemos (entendimento), o oceano o que é conhecido e os navegantes aqueles que estudam o conhecimento adquirido pelo entendimento, os quais erram muitas vezes em seus avanços.
Procurando evitar ser ludibriado, como também, de cometer muitos erros, Kant, pretende assegurar-se do alcance do entendimento (latitude da ilha), de modo que, fique estabelecido: se devemos nos contentar apenas com o entendimento, já que fora do entendimento não haveria segurança (lugar onde acampar), e também se devemos evitar pretensões adversas.
Daí conclui Kant, que tudo que é extraído apenas do entendimento sem qualquer recurso da experiência, não possui nenhuma finalidade, que não seja a própria experiência.
Ora, é considerado que o entendimento deve ser aplicado à experiência, desde que reconheçamos os seus limites; segundo Kant:
"O entendimento, que apenas se ocupa do seu uso empírico, que não reflete sobre as fontes do seu próprio conhecimento, pode, é certo, progredir muito, mas não pode determinar para si próprio as fronteiras do seu uso, e saber o que é possível encontrar dentro ou fora de sua esfera inteira, pois para tanto se requerem as indagações profundas que temos realizado".
É evidente que Kant considera importante o uso do entendimento, mas o fundamental em sua proposta, é determinar quais questões "se situam ou não no horizonte" de tal entendimento; ou seja, é necessário garantir aquilo que é certo como propriedade e de direito, como também, evitar produtos da imaginação fantasiosa.
Em seguida, Kant alerta para a distinção entre uso Transcendental do entendimento, e o uso empírico do entendimento; sendo o primeiro inadequado por si só, já que o entendimento só pode ser usado empiricamente.
Vejamos a definição que Kant apresenta nos dois usos:
· Uso Transcendental do entendimento: "é o uso de um conceito, em qualquer princípio, que consiste em referi-lo a coisas em geral e em si", ou seja, a objetos que não nos são dados em nenhuma intuição e são, portanto, não sensíveis.
· Uso Empírico do entendimento: é o "uso que se refere simplesmente aos fenômenos, ou seja, a objetos de uma experiência possível". Sendo aquele que "... se possa sempre verificar".
Considera-se que, segundo Kant, o uso lógico de um conceito só tem sentido, desde que exista um objeto da experiência, do contrário ele é vazio de conteúdo. Ora, mesmo que haja intuição pura a priori, só há validade e objetividade por intermédio da intuição empírica. Todos os conceitos a priori se referem a intuições empíricas, "isto é, a dados da experiência possível".
Nas palavras de Kant:
"Embora todos estes princípios e a representação do objeto, de que esta ciência se ocupa, sejam produzidos totalmente a priori no espírito, nada significariam, se não pudéssemos sempre mostrar o seu significado nos fenômenos (nos objetos empíricos)".
Kant exemplifica demonstrando com a matemática; ora, "o conceito de quantidade, procura apoio e sentido no número, e este, por sua vez, nos dedos, nas esferas de coral das tábuas de calcular, ou nos traços e pontos que se põem diante dos olhos".
Portanto, mesmo que o conceito seja a priori, é necessário que se realize na experiência sensível (fenômenos), pois do contrário seria um conceito vazio e sem sentido (isso se aplica a todas as categorias).
Ainda reforça sua tese, e exemplifica também com os conceitos de grandeza, de causalidade, pela contingência, de comunidade; e concluí que é uma ilusão tomar "a possibilidade lógica do conceito (onde não há contradição), pela possibilidade transcendental das coisas"; ora, todas as categorias só podem ser determinadas, significadas e realizadas, por meio de uma condição sensível (fenômeno). Daí, concluí-se que todos os conceitos puros do entendimento não são para o uso transcendental, e sim para o uso empírico.
Após evidenciar que não é possível ao entendimento ultrapassar os limites do sensível (fenômenos), Kant alerta para a ontologia, que "se arroga conhecimentos sintéticos a priori das coisas em si", de modo que, propõem a sua substituição pela "analítica do entendimento puro" [1]; Demonstra que as categorias puras não são suficientes para formar "princípios sintéticos a priori", "que os princípios do entendimento têm apenas uso empírico e nunca transcendental e que, para além do campo da experiência possível, não pode haver juízos sintéticos a priori".
Significa que as categorias puras, isto é, ausentes de condições sensíveis, possuem significado transcendental, porém, nunca o uso transcendental, ora, tal uso é impossível.
Em seguida, Kant define os númenos em dois modos:
· Númenos negativos: "uma coisa na medida em que não é objeto da nossa intuição sensível, abstraindo de nosso modo de a intuir".
· Númenos positivos: "como objeto de uma intuição não sensível, modo particular de intuição, a intelectual, que, todavia, não é a nossa, de que nem podemos encarar a possibilidade".
Kant admite os "númenos negativos", como que compondo a "doutrina da sensibilidade", pois são "as coisas que o entendimento deve pensar, independente da relação com nosso modo de intuir, portanto, não simplesmente como fenômenos, mas como coisa em si"; Tais "númenos negativos" são necessários para produção do conhecimento sensível e função das categorias; não admiti-los, nos levaria a intuir as coisas de outro modo, diferente da intuição sensível; "e o objeto seria então um númeno em sentido positivo", o que faria reconhecer a ontologia (citada acima) como possível.
Admitindo a intuição intelectual (racionalismo puro), onde as categorias ultrapassariam os objetos da experiência (o que é impossível), Kant, se restringe apenas ao "númeno negativo". Afinal, sem conhecimento empírico, não restaria conhecimento algum, pois não haveria objeto produzido pela afecção da sensibilidade.
Já que Kant concebe a necessidade dos númenos negativos na produção do conhecimento empírico (mesmo que exista fora da intuição sensível), vejamos o que diz acerca de sua compreensão:
"... não é possível compreender a possibilidade de tais númenos, e o que se estende para além da esfera dos fenômenos é (para nós) vazio; quer dizer, temos um entendimento que, problematicamente, se estende para além dos fenômenos, mas não temos nenhuma intuição, nem sequer o conceito de uma intuição possível, pelo meio da qual nos sejam dados conhecimentos fora do campo da sensibilidade, e assim o entendimento possa ser usado assertoricamente para além da sensibilidade".
Entretanto, nem por isso o númeno é "... uma ficção arbitrária, pelo contrário encadeia-se, com a limitação da sensibilidade, sem toda via poder estabelecer algo positivo fora do âmbito desta".
Segundo Kant, o númeno não pode ser considerado um objeto inteligível, apenas um problema, "uma possibilidade da qual não podemos ter a mínima representação".
Afinal, nossas sensibilidades são limitadas pelo entendimento de modo negativo, "em virtude de denominar númenos as coisas em si."
[1] "É importante esclarecer que tal crítica à "ontologia", não fere a ontologia clássica, pois se refere à ontologia racionalista ou dogmática, que é puramente tautológica; ora, a razão pura que exercita e procede só na base dos seus conceitos e dos seus princípios; de tal modo, ela não ultrapassa a possibilidade e a coerência de seu pensamento, a pensabilidade, e por isso não atinge a coisa em si ou o ser. Significa que uma ontologia que não atinge o ser, é uma ontologia que se auto-suprime: não é ontologia. Neste relevo a crítica Kantiana, embora negativa, é irrefutável; afinal, sem referencias ao ser, sem encontro com ele, toda ontologia é impossível, e no caso que se dê uma ontologia, é ilusória". ("Metafísica" – curso Sistemático; de Aniceto Molinaro; Ed, Paulus).