"Muitas vezes as coisas que me pareceram verdadeiras quando comecei a
 
concebê-las tornaram-se falsas quando quis colocá-las sobre o papel." (Descartes)

Primeira Meditação: Das coisas que se pode por em dúvida.

§§ 1 a 6 – Toma a resolução de por em dúvida todas as opiniões recebidas desde a infância, para poder, desde os fundamentos, estabelecer algo de firme e constante nas ciências, e não tomar o falso como verdadeiro. A função da dúvida é destruir todas as suas opiniões antigas (se essas suscitarem qualquer dúvida): dúvida hiperbólica sistemática e generalizada. Vai dedicar a sua empresa aos princípios que fundamentam suas antigas opiniões. Sentidos: concebidos até então como o mais seguro conhecimento, porém esses já o enganaram alguma vez, portanto devem ser colocados em dúvida. Sonhos: devido aos seus conteúdos, na maior parte das vezes, reais, o que ocorre nos sonhos, então, não é muito diferente do que ocorre quando se está desperto. As coisas representadas nos sonhos são reais e verdadeiras – analogia da pintura: mesmo que os pintores se empenham em representar figuras não-existentes, como sereias, quimeras..., elas não serão algo novo, mas uma mistura de membros de diversos animais; se fizer algo novo, coisa que ninguém tenha visto, pelo menos as cores com que pinta o quadro serão reais.

§§ 7 a 10 – Idéias simples e compostas: as idéias compostas, diferentemente das simples, são mais passíveis de terem sido imaginadas, portanto as simples são mais universais, verdadeiras e existentes; as ciências como a física, astronomia, medicina, que dependem de idéias compostas, são mais duvidosas e incertas do que as matemáticas (aritmética e geometria), que tratam de idéias simples e gerais, independentes de existirem ou não na natureza e independentes de qualquer coisa (2+3=5). Mas pode haver um Deus enganador que nos iluda até mesmo em coisas tão certas como 2+3=5; contudo, se Deus é soberanamente bom, não pode ser enganador, mas sem sua bondade pode. Quanto menos perfeito for Deus, mais corre-se o risco de ser imperfeito a ponto de enganar-se sempre. Assim, não há nenhuma de suas velhas opiniões que não mereça ser colocada em dúvida.

§§ 11 a 13 – Suspensão da dúvida: ao considerar a própria dúvida, por mais que pareça real a crença na matemática, ela pode ser posta em dúvida. Gênio maligno: Deus, sendo fonte de verdades, não pode ser enganador; mas se existisse esse Gênio que causa ria a ilusão de todas as coisas exteriores, dos próprios membros do corpo? Deve suspender os seus juízos para, a partir daí, cuidar para que nenhuma de suas crenças recebidas, a partir de então, sejam falsas; preparará seu espírito contra as intenções desse Gênio, por mais poderoso e embusteiro que ele seja, não poderá impô-lo nada. O trabalho árduo da dúvida: desapegar-se das velhas opiniões e cuidar para que a preguiça não empeça de fazer isso.

 

Segunda Meditação: da natureza do espírito humano; e de como ele é mais fácil de conhecer que o corpo.

§§ 1 a 10 - Continuará a dúvida até achar algo de certo ou ver que não há nada de certo no mundo. Supõe como falsas todas as coisas que vê: poderiam ser elas ficções do espírito. Pergunta se existe um Deus que coloque nele todos os seus pensamentos: mas isso não é necessário, pois pode ele mesmo produzir tais pensamentos. Pergunta novamente: pode negar a própria existência, depois de ter colocado tudo em dúvida, seus sentidos, seu corpo? : Não, pois mesmo que esteja sendo enganado por um “gênio maligno”, não pode negar que existe pelo menos enquanto duvida – Cogito: eu penso, eu existo – 1ª verdade da cadeia de razões. Existe, mas ainda não sabe o que ele é realmente. Corpo: tudo que é limitado por alguma figura, ocupa um lugar no espaço e pode ser sentido por algum dos cinco sentidos. Alma: o que permeia o corpo, algo sutil que está disseminado por todo ele; é causa do movimento do corpo. Existe enquanto pensa (pensamento esse que é distinto do imaginar e do sentir, ou melhor, esses últimos pendentes do primeiro), se deixar de pensar, deixa de existir – 2ª verdade da cadeia de razões: existe somente enquanto pensa. Imaginação: ato de contemplar uma determinada figura de algo corporal, porém, pode ser esta imagem análoga ao sonho ou uma quimera; essa forma de conhecimento não o levará a conhecer o que ele é realmente, conhecer distintamente sua natureza. Se afirma como uma coisa que pensa: que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer ou não quer, que imagina e sente. As coisas corpóreas são menos passíveis de serem conhecidas que as do espírito.

§§11 a 18 – Análise das coisas mais comuns - Pedaço de cera: tem ele todas as características dos corpos ( forma, odor, cor, grandeza, dureza...). Mas depois de esquentá-lo, muda muito sua anterior configuração, perde o odor, sabor, altera a forma, expande no que se refere à grandeza, torna-se líquido; mas independente de toda a transformação, é inegável que aquela é a mesma cera de antes. O que garante que a cera seja a mesma são sua características mais essenciais, extensão, flexibilidade, imutabilidade... Pela imaginação pode-se a idéia de várias formas que essa cera pode assumir, mas a imaginação é limitada até certo ponto, posto não ser possível imaginar a infinidade de formas que a cera pode tomar. O que é a extensão? : não pode ser conhecida pela imaginação, mas pelo entendimento – exemplo da cera onde se conhece por meio de uma inspeção do espírito (imperfeita e confusa ou clara e distinta), conforme a atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta. É levado a pensar que por ventura se conheça a cera pela visão; contudo uma analogia para mostrar que a visão acaba por depender da faculdade de julgar: vê homens passando na rua com chapéus e casacos, estes poderiam ser espectros ou homens fictícios, no entanto, julga-se que são homens verdadeiros. O que há de essencial na cera deve ser apreendido através do espírito, não pelos sentidos. A cera (os objetos em geral) enquanto é pensada. Conhecer as coisas do espírito é mais fácil que as coisas corpóreas, posto ser o conhecimento dessas últimas dependente das primeiras. Do espírito depende a concepção dos corpos.

Terceira Meditação: De Deus; que ele existe.

§§1 a 5 – Pretende familiarizar-se consigo: é uma coisa que pensa, que duvida... Qual é o critério para tomá-lo certo de alguma coisa? : Regra geral – Todas as coisas concebidas clara e distintamente são verdadeiras. Mesmo tendo sido postas em dúvida, as coisas percebidas por intermédio dos sentidos, é claro e distinto que as idéias e pensamentos de tais coisas se apresentam ao espírito. O engano em coisas até então certas e indubitáveis, tais como 2+2=4, seria possível se um Deus enganador lhe criasse ilusões, até aí, onde não parece haver erro: mas independente disso ele existe enquanto pensa. Não há razões para acreditar que Deus seja enganador, mesmo sem provas que haja um; portanto deve investigar se há um Deus e em seguida investigar se Ele é enganador.

§§ 6 a 11 – Pensamentos: alguns são imagens das coisas, são designados idéias; outros são vontades (afecções) e juízos. Em nota: os conteúdos nos quais uma ação do espírito se acrescenta às idéias. Idéias: não podem ser falsas; se imaginarmos uma cabra ou uma quimera é verdadeiro que se imagina uma e outra. Vontades (afecções): também não podem ser falsas, mesmo sendo más, é verdadeiro que se deseja. Juízos: deve-se ter cautela, pois neles pode haver erro; o principal deles é julgar que as idéias que estão no sujeito são semelhantes às coisas exteriores. Idéias: umas são nascidas no próprio sujeito, outras provem de fora e outras são inventadas por ele; no tocante às vindas de objetos fora do sujeito: por que acreditar que elas são semelhantes a esses objetos? Respostas: primeiro porque parece ser ensinado pela natureza e as idéias não dependem da vontade.

§§ 12 a 15 – Crítica ao senso comum: 1ª - entende-se por natureza uma certa inclinação que leva a acreditar nessa coisa, não uma luz natural que faça conhecer que ela é verdadeira. As inclinações não servem para distinguir bem x mal, nem verdadeiro x falso. 2ª – a independência das idéias em relação à vontade faz pensar que elas provenham de coisas exteriores, mas há a possibilidade de haver uma faculdade que produza por si só tais idéias. 3ª – mesmo a idéia tendo sido causada pelo objeto, ela não é necessariamente semelhante a ele (há duas idéias de sol, uma pelos sentidos, outra pelos conhecimentos em astronomia). Das coisas que existem fora do sujeito, pode-se conceder-lhes realidade objetiva?: As coisas que representam substâncias contêm mais realidade objetiva. Em nota: a perfeição é um bem que se deve possuir naturalmente – pertence ao ser. A idéia de um Deus soberano, eterno e infinito (...), possua mais realidade objetiva que qualquer outra idéia.

§§16 a 19 - Deve haver tanta realidade objetiva na causa quanto em seu efeito; todo efeito deve ter uma causa, e esta última tem que ter mais realidade (ser mais perfeita) que o seu dependente, o efeito. A idéia que se tem desse objeto que é efeito, tem que ter sido colocada no sujeito por alguma causa. Conclui: se a realidade objetiva de alguma idéia é tal que se reconheça claramente que ela não esta no sujeito (nem formal nem eminentemente), e que não pode ele mesmo ser-lhe causa, então ele não está sozinho no mundo, mas há algo que é causa dessa idéia, caso contrário não pode provar a existência de nada além dele mesmo. Gênero de idéias: existem as que representam o próprio sujeito, que representam a Deus, que representam coisas corporais e inanimadas, anjos, os homens e animais; as últimas podem ser formadas por idéias que se encontram no sujeito, a partir da idéia de Deus e outras coisas corporais. As corporais podem também vir dele mesmo, pois pouco se sabe delas clara e distintamente. Quanto às apreendidas pelo tacto, são mais obscuras ainda: além dos juízos, aqui também se pode encontrar alguma falsidade material, advinda do espírito.

§§ 20 a 27 – Algumas idéias claras e distintas das coisas corporais parecem ter sido criadas no próprio sujeito: substância, duração, número... Por outro lado, extensão, figura, situação, movimento de lugar, não estão formalmente no sujeito, pois este é apenas alguma coisa que pensa; são modos de substância, mas sendo ele mesmo substância, elas podem estar contidas nele. Deus: substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente, pelo qual, todas as coisas existentes foram criadas e produzidas; Ele existe pelo fato de, se pode o sujeito ter idéia desse ser infinito, sendo ele finito, a idéia tem que ter sido colocada nele por alguma substância realmente infinita. Há mais realidade na substância infinita do que na finita, assim, têm-se a noção de Deus antes mesmo da noção de si. A idéia de Deus é verdadeira mesmo que não represente nada de real; tudo que o espírito concebe clara e distintamente está contida e encerrada nessa idéia. Em nota: pode-se conhecer o infinito sem o compreender, mas o conhecimento dessa incompreensibilidade concede-o um conhecimento verdadeiro e inteiro do infinito, embora tenha apenas um conhecimento parcial do que ele contém.

§§ 28 a 42 – A perfeição atribuída a Deus pode estar em potência no próprio sujeito, daí poder ter alguma idéia dela: seu conhecimento aumenta pouco a pouco, mas esse aumento nunca vai poder chegar ao infinito, à perfeição de Deus. A idéia de um ser perfeito tem que ter sido colocada nele por um ser que realmente seja mais perfeito que ele. Investigando se ele pode existir sem um Deus: se fosse autor do seu próprio ser não teria motivos para duvidar de nada, seria perfeito – o próprio Deus. Há uma mudança constante nas pessoas, em dados momentos da vida isolados ela não será a mesma pessoa necessariamente; esses momentos são, de certa forma, independentes uns dos outros, então, para haver uma conservação da pessoa, algo de essencial nela, é preciso Deus. Para a conservação da substância é necessário o mesmo poder de ação para criá-la. Esse poder se existisse no sujeito, deveria ele poder pensá-lo e conhecê-lo, mas este não tem qualquer sentimento de haver nele tal poder, logo, depende de algo diferente dele. Na cadeia de causas, a última (ou a primeira) é Deus. Atributos de Deus: unidade, simplicidade, inseparabilidade, é causa de si mesmo, perfeito. A idéia de Deus é inata e não poderia estar no sujeito se Ele não existisse realmente. E por fim, se Deus é perfeito (...) não pode ser embusteiro.

 

Referências Bibliográficas:

  • DESCARTES, R. Discurso do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As paixões da Alma & Cartas. [introdução. de Gilles-Gaston G.; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior.]. 3 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.