Brasil, um país esquecido por Thêmis


Entende-se bem o ditado popular ? a Justiça é cega, quando se é possível contemplar a grandiosidade de um país como o Brasil e sua vasta área territorial, bem como sua desorganizada ocupação populacional. Quando falamos em Justiça, exercitamos nossa imaginação e a reportamos a figura de uma mulher com os olhos vendados, que traz em uma de suas mãos a balança e em outra a espada. Mas nem sempre foi assim, na mitologia grega as origens da Deusa da Justiça, está rodeada de divergências que geram dúvidas se realmente Thêmis, que era filha de Urano (Céu) e Gaia (Terra), é essa Deusa. A dúvida surge porque as primeiras esculturas e descrições de Thêmis, símbolo da ordem e do Direito divino, considerada a guardiã dos juramentos dos homens, a representavam somente com a balança ou segurando a balança em uma mão e a cornucópia (símbolo da abundância) na outra. Já a representação que conhecemos hoje, com a balança e a espada, é atribuída à sua filha, Diké (também conhecida como Astréia). Como reza a lenda, Thêmis teve três filhas: Eumônia (disciplina), Diké (justiça) e Eiriné (paz) e foi a Diké que coube a honra de ser considerada a Deusa da Justiça. A linguagem simbólica encontra dificuldades ainda hoje no meio da comunidade científica, responsável pelo estudo do assunto, porém, é tida como unanimidade devendo ela ser representada da mesma forma que consta em praticamente todos os Palácios de Justiça da atualidade ocidental: portando em suas mãos, como objetos simbólicos a alegóricos, a balança e a espada, sendo esta última uma necessária evolução em re relação à cornucópia.
Toda essa simbologia tem significado, sendo a venda em seus olhos, por exemplo, com função básica de evitar privilégios na aplicação da justiça, a balança o instrumento que pesa o direito que cabe a cada uma das partes e a espada item indispensável para defender os valores daquilo que é justo, considerando que somente a existência de normas seria ineficaz para a garantia do mínimo de harmonia social, visto que as mesmas devem ser precedidas de sansões, para que não dependam exclusivamente das regras de decência e convivência de cada sociedade. Podemos dizer então que a espada sem a balança é força brutal, assim como a balança sem a espada tornaria o Direito impotente perante a falta de valor que insiste em estar presente na história da humanidade.
Após todo esse detalhamento sobre a origem mitológica das características da "musa do direito" nos reportamos a uma realidade jurídica rodeada de lacunas, precedida de um longo caminho a ser percorrido até a satisfação da sociedade. Diante do clamor discreto, mas obrigatório, uma pergunta persiste: por que a Justiça é cega?
.Os artistas alemães do século XVI, vivendo ainda nos resquícios da Idade Média e cerceados por uma sociedade estamental que, além de impossibilitar a mobilidade social, utilizava o Direito como instrumento único e exclusivo para consolidar as conquistas dos que detinham o poder e por pura ironia, colocaram a faixa nos olhos da Deusa, explicitando o que era mais do que real na época: a total dissociação do Direito em relação à Justiça, aliada à parcialidade dos julgadores. Hoje, porém, muito se conquistou, muitas mudanças fizeram daquele cenário simplesmente um contexto histórico presente nos livros, mas talvez ainda estejamos longe de solucionar esse distanciamento e essa parcialidade.

O Judiciário, dificuldades e ineficácia pelo Brasil

A Constituição Federal de 1988 em vários momentos traz em sua redação muitas garantias fundamentais, tendo o amplo apoio dos poderes Executivo, Legislativo e principalmente do Judiciário, para que o Estado venha cumprir todas as determinações ali contidas com maior abrangência e da melhor forma possível.
A gratuidade jurídica ou justiça gratuita, por exemplo, que teve início por volta do século XVI, ainda no período colonial, momento em que se registra o surgimento de lides oriundas das mais diversas relações jurídicas existentes, sendo as partes impossibilitadas de arcar com as custas das mesmas. A partir desse momento na história, a chamada "Assistência Judiciária Gratuita" evoluiu junto com o Direito Pátrio e consolidou sua importância com o passar dos séculos, sendo garantida nas diversas Cartas Constitucionais.
Desta forma, entende-se o extenso benefício à disposição da população, conseguindo a Justiça, avançar mais um degrau rumo à igualdade, porém, no que tange a responsabilidade ao Estado, nos deparamos com uma realidade longe do ideal pretendido, muitas vezes cruel, a ponto de surgir a indagação: o Estado atende satisfatoriamente aos brasileiros no que toca a distribuição de justiça? Certamente, em resposta haveria uma negativa em massa, visto que o atendimento prestado pelo Judiciário de um modo geral é limitado e tido como de má qualidade, considerando vários fatores como a própria demora na prestação jurisdicional.
O processualista moderno tem um compromisso bem maior que outrora, é responsável pelas mudanças que venham a modificar a "máquina da justiça", fazendo com que a mesma evolua em conformidade com os acontecimentos da sociedade. Nesse sentido, sob sua ótica, é observado que o Processo Civil além de tudo é visto como um instrumento a serviço da paz social, contudo, seria inútil toda a estrutura envolta da ciência processual, que também é amparada pelo estudo de uma ampla doutrina, se o processo não atendesse seu propósito maior, que é o de distribuir a justiça.
Nesse sentido, também é o entendimento de Cappelletti e Garth:

(...) o acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido, ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.

Esse entendimento nos reporta rapidamente a uma reflexão mais ampla sobre as formas de pacificação dos conflitos e nessa escala de evolução da vida social, significa ressaltar que os benefícios quanto à distribuição e a administração da justiça é significativa, mas, não traz ainda contentamento a um povo que vive a margem da lei.
O regime da autotutela ou autodefesa (no qual o Juiz, que também é parte, impõe a outra a sua decisão) fora substituída, surgindo a figura do Árbitro que trazia confiança às partes, por julgar com imparcialidade e ser estranho à lide. Era uma figura facultativa nas lides, mas com a proibição total da autotutela e o fortalecimento do Estado, passou a ser obrigatória, até ser criada a Jurisdição, onde o Juiz, representante do Estado, examinava a questão e decidia, conforme ensina Cândido Rangel Dinamasco:

(...) tutela jurisdicional é o amparo que, por obra dos Juízes, o Estado ministra a quem tem razão num litígio deduzido em processo. Ela consiste na melhoria da situação de uma pessoa, pessoas ou grupo de pessoas, em relação ao bem pretendido ou a situação imaterial desejada ou indesejada. Receber tutela jurisdicional significa obter sensações felizes e favoráveis, propiciadas pelo Estado mediante o exercício da jurisdição.

Na atualidade, vivendo sob o amparo do Estado de Direito, o homem sem poder fazer justiça com as próprias mãos, entrega parte de sua liberdade à soberania estatal, que através de seus órgãos competentes agem em substituição às partes, devendo promover a paz social, através da ampla distribuição de justiça.

Limitações do acesso à Justiça

A Constituição Federal, em seu art. 2º, dispõe: "Art 2º - são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Ao Poder Judiciário é incumbindo a missão de parar todo e qualquer tipo de arbitrariedade, inclusive as oriundas do próprio Estado, portanto ter uma independência absoluta é necessidade imperiosa para que, imparcialmente, possa o Poder Judiciário desempenhar de forma correta a sua função principal: julgar.
Ocorre que, com dotação orçamentária muito reduzida, atualmente liberada pelo Poder Executivo, a relação de dependência existente torna-se nítida, considerando a possibilidade fictícia de interferência entre os poderes, mas sempre esperando que tal liame não fira de maneira alguma, a independência e a harmonia entre os mesmos.
Nesse sentido, ensina José Roberto dos Santos Bedaque:

(...) em primeiro lugar, enquanto não se destinar ao Poder Judiciário percentual razoável do orçamento estatal, a fim de que ele possa fazer frente às suas necessidades, qualquer outra medida corre sério risco de não alcançar os objetivos desejados. É preciso examinar dados estatísticos de países onde a Justiça se mostre eficiente, para verificar as causas da morosidade do processo brasileiro. Sabe-se, por exemplo, que o número de juízes no Brasil é muito inferior aos padrões ideais.

Em concordância com a sábia observação feita pelo ilustre professor é primordial observarmos essa questão relevante, no que toca o acesso à justiça. O número de juízes e serventuários da justiça encontra-se realmente muito aquém das necessidades (em média, o Brasil possui um Juiz para cada 30.000 habitantes). Considerando a grande extensão territorial do país e a má distribuição populacional, visto que, as regiões possuem muitas limitações, principalmente de ordem econômica, o que podemos constatar é uma desigualdade deliberada acerca da distribuição da justiça, bem como às leis aplicadas. Em muitos municípios, o Judiciário, um dos três mais importantes poderes da nação, encontra-se obrigado a fazer ?barganha? com o executivo local para funcionar, dependendo muitas vezes de transporte, material de apoio e da disponibilidade de funcionários, que apesar da honrosa contribuição para alavancar a máquina, contribuem ainda mais para a morosidade já tão criticada, haja vista o despreparo que os acompanha, aumentando assim o descrédito da prestação jurisdicional.
Outros doutrinadores defendem simplesmente a idéia de que antes da criação de milhares de novos cargos, o que seria presunção de mais gastos, deveria ser criadas novas alternativas aceleradoras da produtividade do equipamento judicial. Em verdade, podemos afirmar que ambas as correntes estão corretas, considerando que em muitos locais deste imenso país, a justiça se quer existe, sendo ainda imperado o poder do coronelismo, a autodefesa e em alguns locais, até mesmo a Lei de Talião é aplicada como forma de resolução das lides, pois, muitos deles nunca estiveram nas estatísticas dos governos, padecendo, jogados a própria sorte, sem poder contar ou nem mesmo ter conhecido a figura de um Defensor Público, Juiz ou Promotor.

Conclusão

Analisando todo contexto, podemos concluir que vivemos em um país onde se encontra estabelecido a ?crise do Estado?, ou seja, nas mais diferentes esferas, sejam Executivo, Legislativo ou Judiciário, impera o desdenho e mau funcionamento de suas atribuições. O Estado como protetor dos direitos e garantias da população, já não consegue apresentar bons resultados em relação à segurança pública, saúde, educação, previdência, entre outros aspectos essenciais e que visam o bem comum, e a prestação jurisdicional, dever do Estado, não se encontra em situação muito diferente.