Eça de Queirós foi um romancista por excelência, tendo produzido uma vasta obra nesse gênero textual. Escreveu, também, alguns contos, os quais foram reunidos e publicados postumamente, em 1902, num livro único intitulado Contos. O primeiro conto presente nessa obra intitula-se “Singularidades de uma rapariga loura” e será objeto desta análise.           

           “Singularidades de uma rapariga loura” é narrado sob o ponto de vista de um narrador participante, portanto em 1.ª pessoa do singular, que nos conta a história de um homem, Macário, o qual conhecera “numa estalagem do Minho” (QUEIRÓS, [1902], p. 2). Ainda que o narrador seja o de 1.ª pessoa do singular, o protagonista da narrativa é a personagem Macário, o que caracteriza o narrador como homodiegético, mas não autodiegético.

            O conto apresenta as personagens Macário e Luísa Vilaça – a rapariga loura por quem ele se apaixona –, que se caracterizam como principais. Entre os secundários, há o tio de Macário, um amigo de Macário e a mãe de Luísa. Pode-se dizer, ainda, que, com o desenvolvimento da história, Luísa revela-se a antagonista, por se opor a Macário.

            A narrativa desenvolve-se num tempo não linear, com algumas idas e vindas; numa organização cronológica, estende-se desde a chegada de Luísa ao apartamento em frente ao de Macário, passando pelo início e pelo desenvolvimento do relacionamento de ambos, pela sua separação, até o momento em que Macário conhece o narrador – do qual não se sabe o nome – e relembra sua desventurada história. Ainda sobre a questão do tempo, é possível deduzir que a duração cronológica da narrativa é de mais de um ano, visto que parte da história ocorre em julho, a outra em janeiro e o último mês citado é setembro.

            Quanto ao espaço, mais precisamente à ambientação, o conto passa-se na Lisboa do século XIX, cidade em que Francisco, tio de Macário, administra uma loja de panos e mora, juntamente com seu sobrinho, no piso superior.

            O conto inicia com um recuo no passado, em que Macário relembra uma paixão. Ele apaixona-se por uma jovem loura e muito bonita do edifício em frente ao seu, Luísa, e começa a ficar distraído e absorto no seu trabalho. Macário resolve casar-se com a moça, mas o seu tio, com quem trabalha, não aceita. Por insistir, Macário, então, é expulso de casa. Mais tarde, por vê-lo desesperado, sem emprego, o seu tio aceita-o de volta e deixa-o casar-se.

            Certo dia, Macário vai com Luísa a uma ourivesaria para reservar um anel. Ao saírem, o ourives dirige-se ao casal pedindo educadamente para pagarem o anel que Luísa tinha na mão. Macário pagou-o e levou Luísa para fora, onde lhe diz: "És uma ladra!" (QUEIRÓS, [1902], p. 19). E, então, volta-lhe as costas e vai embora.

            “Singularidades de uma rapariga loura” é uma clara crítica ao Romantismo, em que se pode observar a beleza posta em cheque ante o caráter; ao mesmo tempo, funciona como uma afirmação da estética Realista, como se pode notar no seguinte excerto:

          E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata, sobre côncavo silêncio noturno, ou a opressão da eletricidade que enchia as alturas, o fato é que eu — que sou naturalmente positivo e realista — tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nós, é certo — tão friamente educados que sejamos — um resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar — para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idéia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista — como um velho monge poeta (QUEIRÓS, [1902], p. 2). (negritos nossos)

            E isso não se revela somente a partir da voz do narrador, mas também pela própria construção da personagem Luísa, a qual se opõe às personagens românticas.

             Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono (QUEIRÓS, [1902], p. 2).  (negritos nossos)

            Luísa é antitética por excelência: por um lado, branca, loura e delicada; por outro, fria, indiferente e ladra. Em suma, “bonitinha mas ordinária”, como diria Nelson Rodrigues.

            Por fim, o texto permite que se destaque os detalhes e minúcias de suas descrições, característica própria das estéticas mais realistas. Transcrevo, a seguir, para finalizar, uma passagem em que se evidencia esse aspecto.

            Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e retidão — por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo — saíam as pregas moles de uma camisa bordada (QUEIRÓS, [1902], p. 2).

REFERÊNCIAS

QUEIRÓS, Eça de [1902]. Singularidades de uma rapariga loura. Disponível em: http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/348.pdf. Acessado em: 03 nov. 2013.

 

G.H.T.F.