BONITINHA MAS ORDINÁRIA: UMA ANÁLISE DO CONTO SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA, DE EÇA DE QUEIRÓS
Publicado em 25 de maio de 2014 por Gustavo Henrique de Toledo Ferreira
Eça de Queirós foi um romancista por excelência, tendo produzido uma vasta obra nesse gênero textual. Escreveu, também, alguns contos, os quais foram reunidos e publicados postumamente, em 1902, num livro único intitulado Contos. O primeiro conto presente nessa obra intitula-se “Singularidades de uma rapariga loura” e será objeto desta análise.
“Singularidades de uma rapariga loura” é narrado sob o ponto de vista de um narrador participante, portanto em 1.ª pessoa do singular, que nos conta a história de um homem, Macário, o qual conhecera “numa estalagem do Minho” (QUEIRÓS, [1902], p. 2). Ainda que o narrador seja o de 1.ª pessoa do singular, o protagonista da narrativa é a personagem Macário, o que caracteriza o narrador como homodiegético, mas não autodiegético.
O conto apresenta as personagens Macário e Luísa Vilaça – a rapariga loura por quem ele se apaixona –, que se caracterizam como principais. Entre os secundários, há o tio de Macário, um amigo de Macário e a mãe de Luísa. Pode-se dizer, ainda, que, com o desenvolvimento da história, Luísa revela-se a antagonista, por se opor a Macário.
A narrativa desenvolve-se num tempo não linear, com algumas idas e vindas; numa organização cronológica, estende-se desde a chegada de Luísa ao apartamento em frente ao de Macário, passando pelo início e pelo desenvolvimento do relacionamento de ambos, pela sua separação, até o momento em que Macário conhece o narrador – do qual não se sabe o nome – e relembra sua desventurada história. Ainda sobre a questão do tempo, é possível deduzir que a duração cronológica da narrativa é de mais de um ano, visto que parte da história ocorre em julho, a outra em janeiro e o último mês citado é setembro.
Quanto ao espaço, mais precisamente à ambientação, o conto passa-se na Lisboa do século XIX, cidade em que Francisco, tio de Macário, administra uma loja de panos e mora, juntamente com seu sobrinho, no piso superior.
O conto inicia com um recuo no passado, em que Macário relembra uma paixão. Ele apaixona-se por uma jovem loura e muito bonita do edifício em frente ao seu, Luísa, e começa a ficar distraído e absorto no seu trabalho. Macário resolve casar-se com a moça, mas o seu tio, com quem trabalha, não aceita. Por insistir, Macário, então, é expulso de casa. Mais tarde, por vê-lo desesperado, sem emprego, o seu tio aceita-o de volta e deixa-o casar-se.
Certo dia, Macário vai com Luísa a uma ourivesaria para reservar um anel. Ao saírem, o ourives dirige-se ao casal pedindo educadamente para pagarem o anel que Luísa tinha na mão. Macário pagou-o e levou Luísa para fora, onde lhe diz: "És uma ladra!" (QUEIRÓS, [1902], p. 19). E, então, volta-lhe as costas e vai embora.
“Singularidades de uma rapariga loura” é uma clara crítica ao Romantismo, em que se pode observar a beleza posta em cheque ante o caráter; ao mesmo tempo, funciona como uma afirmação da estética Realista, como se pode notar no seguinte excerto:
E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata, sobre côncavo silêncio noturno, ou a opressão da eletricidade que enchia as alturas, o fato é que eu — que sou naturalmente positivo e realista — tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras. Existe no fundo de cada um de nós, é certo — tão friamente educados que sejamos — um resto de misticismo; e basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar — para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a idéia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista — como um velho monge poeta (QUEIRÓS, [1902], p. 2). (negritos nossos)
E isso não se revela somente a partir da voz do narrador, mas também pela própria construção da personagem Luísa, a qual se opõe às personagens românticas.
Amava decerto Macário, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza débil, aguada, nula. Era como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e às vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono (QUEIRÓS, [1902], p. 2). (negritos nossos)
Luísa é antitética por excelência: por um lado, branca, loura e delicada; por outro, fria, indiferente e ladra. Em suma, “bonitinha mas ordinária”, como diria Nelson Rodrigues.
Por fim, o texto permite que se destaque os detalhes e minúcias de suas descrições, característica própria das estéticas mais realistas. Transcrevo, a seguir, para finalizar, uma passagem em que se evidencia esse aspecto.
Devo contar que conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e lisa, com repas brancas que se lhe eriçavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e retidão — por trás dos seus óculos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma gravata de cetim negro apertada por trás com uma fivela; um casaco comprido cor de pinhão, com as mangas estreitas e justas e canhões de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde reluzia um grilhão antigo — saíam as pregas moles de uma camisa bordada (QUEIRÓS, [1902], p. 2).
REFERÊNCIAS
QUEIRÓS, Eça de [1902]. Singularidades de uma rapariga loura. Disponível em: http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/348.pdf. Acessado em: 03 nov. 2013.
G.H.T.F.