Mais de 500 jogadores, vindos de todos os horizontes, participaram, em 6 de junho de 1974, da XXI Olimpíada em Nice. Nessa Olimpíada, comemorativa dos 50 anos da fundação Internacional de Xadrez, em Paris (1924), será relembrada a participação titânica, que durou 2 meses, entre Bobby Fischer e Spassky. O acontecimento, inesquecível na história dos jogos, provocou uma grande comoção.

À minha direita está Boris Spassky, 1,70 cm, 73 quilos, campeão mundial; à minha esquerda, Robert James Fischer, 1,90 cm, 75 quilos, o desafiante.

Não, não se trata de uma partida de boxe, mas podemos falar da partida do século entre os dois maiores jogadores de xadrez do mundo.

No momento do enfrentamento em Langardalur, Boris Spassky, com seus olhos verdes e cabelos loiros, se apresenta firme como uma rocha. Bob Fischer, com um olhar azul metálico, parece frágil, apesar de seus 75 quilos.

Inclinados sobre as 64 casas desse fascinante e misterioso jogo, os dois adversários engajam-se numa verdadeira maratona que deverá durar quase 2 meses, com 3 partidas por semana. Um especialista chega a afirmar que “Bob Fischer e Spassky disputam a coroa mundial da inteligência”.

Pela primeira vez em 25 anos, ocorre uma final sem ser exclusivamente entre russos. Um americano, de caráter desconfiado, teimoso e insuportável, enfrenta com boas chances de vencer, um dos grandes mestres do xadrez.

Seis meses antes, o “diabrete do Brooklyn” tinha arrazado um dos ases do xadrez, Tigran Pretrossian (6-0).

Hoje, depois de peripécias em que a opereta quase se transformou num drama, no 66o lance da 21a partida, Boris Spassky levanta-se e cumprimenta seu adversário. Bob Fischer acaba de lhe tirar o título de campeão mundial.

É interessante ressaltar, para compreender a importância da perda desse título para os russos, que na Rússia, o xadrez é oficialmente ensinado nas escolas, como meio de exercitar o raciocínio. Há, nesse país, mas de 4 milhões de jogadores, que recebem salários 4 vezes maior do que o do cidadão médio.

Um cabulador de aulas

 

Bob Fischer chegou a esse mundo um pouco irreal como um elefante que entra numa loja de porcelanas, ou seja, um Titã fabricado pelos EUA para enfrentar as “máquinas pensantes russas”.

Na realidade, um fenômeno desse tipo não se fabrica. Fischer nasceu com dotes para o xadrez como Einstein para as ciências exatas ou Mozart para a música.

Robert James Fischer nasceu no dia 9 de março de 1943, em Chicago. Seu pai, alemão de origem judaica, era físico. Sua mãe, Regina Wender, de caráter afirmativo e um pouco original, separou-se do marido quando Fischer tinha 2 anos. Ele cresceu no quarteirão pobre do Brooklyn, onde a senhora Wender trabalhava como professora e babá.

Foi Joana, a irmã mais velha de Bob, que, com a ajuda de um manual, ensinou-lhe os rudimentos do jogo de xadrez.

Constatando os progressos do menino, sua mãe pede a um jornalista do Brooklyn Eagle, para inscrever Bob Fischer em um torneio. A agressividade do garoto durante uma partida despertou a atenção do presidente do clube. Bob Fischer foi convidado a jogar regularmente. Assim, teve a oportunidade de encontrar, em Greenwich Village, os mestres Fajans, John Collins e Herman Helms.

Com esses contactos, ele progrediu rapidamente. Mas, seus primeiros resultados foram particularmente frustrantes para um rapaz que aos 15 anos tornar-se-ia campeão dos EUA.

Foi preciso esperar o ano de 1956 para vê-lo conquistar seu primeiro título júnior.

O xadrez se transforma na sua razão de viver, ele abandona o colégio, e, diz à sua mãe, preocupada, naturalmente, com a pobreza de sua bagagem intelectual: “os truques que me ensinam, não podem me servir, nem de uma maneira, nem de outra”.

Aos 14 anos, Bob Fischer, cujo q. i. é de 184, não passa de um cabulador!

  

São todos excêntricos?

 

Além das 64 casas do tabuleiro, é impossível o diálogo com ele. Fischer dividiu um mundo em duas partes: uma, dos que jogam xadrez, a outra, aqueles que o ignoram.

Lenine, excelente jogador, via no xadrez uma espécie de ginástica da inteligência.

Vários campeões deixaram, é verdade, a imagem de seres esdrúxulos, instáveis e desequilibrados. Paul Morphy, considerado um dos maiores competidores, morreu num asilo de loucos em Nova Orléans. O inglês Blackburn tentou esganar um adversário que não conseguiu vencer...

Felizmente, nem todos os jogadores têm esse comportamento, mas esses exemplos ajudarão a compreender as excentricidades e os ímpetos do Bob Fischer.

Vedete numa idade em que a maioria dos meninos estão na sala de aula, precocemente atirado no universo glacial do xadrez, ele parece ter perdido, na adolescência, essa alegria de viver, esse “paraíso de garotos”, em que as preocupações da vida vão minando lentamente...

Fischer aprendeu o russo, como também outras línguas, para melhor aprofundar na literatura de jogos de xadrez. Quando ele precisava refletir nos problemas surgidos  de uma partida difícil, ele costumava ficar duas horas ou mais, fechado em um quarto escuro.

Sua fama começou em Havana, no clube Capablanca, nome do célebre jogador, através do qual, segundo dizem, Fischer sempre se inspirou. Nesse torneio de 1955, ele ganhou 10 partidas e anulou 2.

Nos torneios dos Estados Unidos, ele ganhou todos os campeonatos, principalmente o de 1963-64, pelo impressionante placar de 11 a 0.

Uma cabeça “um pouco mascarada”

 

Nesse meio tempo ele entrou em contacto com os grandes mestres. Em 1960,  Fischer encontra, pela primeira vez, Boris Spassky, num torneio em Mar del Plata, na Argentina. Mas, somente 1972, é que ele teria a oportunidade de disputar o título mundial.

Fischer se prepara para enfrentar Boris Spassky. Ele o faz à maneira esportista, ou seja, praticando intensos exercícios físicos. Para isso, ele se hospeda no hotel Grossinger, no monte Catskill, perto de Nova York.

Nesse hotel-palácio,  Fischer passará 7 meses ocupados numa bateria de exercícios esportivos: ping-pong, natação, saltos, e para encerrar, luvas na mão, e golpes em sacos de areia.

Spassky e  Fischer comunicam, finalmente, que estão prontos, e o campeonato é marcado para 2/7/1972. Mas o local ainda não foi escolhido.

Bob  Fischer iniciará um irritante jogo, recusando categoricamente as cidades que lhe são propostas. Ele quer jogar em Belgrado. Mas suas exigências financeiras assustam os organizadores sérvios. Por fim, Bobby aceita jogar em Reykjavik.

Boris Spassky chega na capital islandesa 10 dias antes do encontro, para poder aclimatar-se. Fischer desaparece... No dia 2 de julho, os organizadores começam a inquietar-se quando recebem um telegrama de Fischer pedindo um adiantamento de 30% do preço das entradas. A Federação islandesa não tem condições de atender essa exigência.

Max Euwé, presidente da Federação internacional, irritado com as pretensões do americano, dá-lhe um ultimato: “Se você não comparecer no dia 4 às 17 horas, perderá o campeonato por abandono”.

Começa o suspense. Ele virá?

Nesse momento, o banqueiro londrino Jin Slater, um apaixonado por xadrez, oferece a soma exigida por Bobby.

No dia 4 de julho, às 15:00 horas, Bobby desembarca no aeródromo de Reykjavik.

Kissinger telefona: “Não faça papel de imbecil”

 

Contudo, ainda não acabaram as dificuldades dos organizadores. Spassky, furioso com o comportamento de seu adversário, pede uma punição.

Transmitem o recado a Fischer. Ah, pois não! Ele redige às pressas um pedido de  desculpas, vai até o quarto do campeão do mundo e, tranquilamente bate à sua porta. Spassky levanta-se resmungando, abra a porta e fica alguns minutos estarrecido. Fischer cumprimenta-o, entrega-lhe o bilhete e vai embora. O russo consulta o relógio. São 4 horas da madrugada. Ele bate a porta com raiva.

Os apreciadores do xadrez voltam a sorrir. A partida mais fantástica do século irá começar. Isso, sem contar com as fantasiosas exigências de Bobby, que pede, entre outras coisas, a retirada das câmaras de TV.

Chester Fox pagou um preço alto pelos direitos de retransmissão de todas partidas e a Federação islandesa não suportaria uma catástrofe financeira.

Mais uma vez, Max Euwé intervém, advertindo-o de que seu comportamento poderá criar um incidente diplomático.

Washington reage e Kissinger telefona pedindo a Fischer para acabar com seus caprichos de diva:

“Não se faça de imbecil, Bob! Os islandeses poderão tomar seu mau humor como pretexto para um incidente diplomático. Não se esqueça que temos nesse país uma base com 3 mil soldados”.

Fischer aceita, afinal, dirigir-se a Hangardalur, para participar das 24 partidas do campeonato, não sem fazer algumas pequenas exigências.

Ele pede para trocar a cadeira, o tabuleiro e a iluminação...

“Esse circo me deixa cansado”, declara com irritação Boris Spassky.

O campeão russo resolve ir pescar salmão, até que seu caprichoso adversário recupere os bons sentimentos.

Fischer ainda pede que a partida seja realizada às 17:00, porque de manhã ele ainda não está em forma. Ah, e também não poderá ser no sábado, “por causa da sua religião”.

Os organizadores modificam o seu cronograma.

A partida irá começar afinal?

Ledo engano, pois na hora do sorteio, Fischer está dormindo. Deverá comparecer o seu instrutor técnico, William Lombardy.

“Niet!” Declara Spassky,  Fischer deverá estar presente. Começa a partida. Bobby perde.

 

Ele irá recuperar-se?

 

Na segunda partida, ele reclama do barulho dos aparelhos de TV e não se apresenta na abertura. O juiz alemão, Sr. Schimidt aperta o ponteiro e o americano perde por (forfait) penalização.

Dois a zero! Os americanos ficam preocupados. Nixon e Kissinger telefonam-lhe exortando-o a lutar.

Fischer reclama do frio. Ele deseja uma temperatura de 24 graus. Spassky quer 21. Acabam aceitando 22.

Na terceira partida, Bob começa o seu impressionante trabalho de sapa, ou melhor, de “demolição”.

Altivo, com o ombro direito recuado, o queixo apoiado na mão esquerda, o olhar perdido num horizonte distante, ele gira metodicamente sua cadeira para dissipar a atenção de Spassky. Depois, levanta-se e dá uma volta para reduzir a vigilância de seu adversário.

No 41o lance, Fischer vira o jogo e ganha.

Os russos sentem um calafrio na espinha. Os conselheiros técnicos de Spassky reúnem-se para analisar as desconcertantes jogadas de Fischer.

O americano deixa os analistas russos boquiabertos pelo seu genial desempenho no meio e no final da partida.

Spassky, por sua vez, fica atônito pela rapidez fulminante com que Fischer analisa todas as situações novas. Para reanimá-lo, mandam trazer sua esposa Larissa.

Bobby sorri. Em determinado momento, apresentaram-lhe uma bela moça. Ele reagiu dizendo que as mulheres não compreendem nada do jogo de xadrez. “Eu devo viver como um monje” teria declarado nessa ocasião.

A verdade é que o campeão americano vive quase como um asceta. Não fuma, não bebe, ao contrário de Spassky, que tem uma fraqueza pelos velhos conhaques.

Alguns até chegam a comentar que Fischer gosta de ceder a rainha o quanto antes, para eliminar a única personagem feminina do jogo de xadrez.

Na quinta partida, Spassky aperta o botão de abandono no 27o lance.

Na sexta, o americano faz uma esplêndida partida. Spassky não consegue articular o menor contra-ataque e no 41o lance, ele se diz derrotado e muito esportivamente aplaude de pé seu vencedor.

Max Euwé afirma: “Fischer é o melhor de todos os tempos”!

Boris Spassky, formado em jornalismo pela universidade de Leningrado, apaixonado por literatura, confessa sentir uma espécie de mal-estar diante desse americano inculto.

Um mal-estar que se acentua durante a oitava partida. O atual campeão do mundo mergulha em reflexões por uma hora... para, em seguida, cometer um tremendo equívoco no 17o lance. Erro, que ele repete no 19o lance. Por fim, ele se levanta com o olhar meio esgazeado e com um sorriso contrafeito cumprimenta Fischer.

“Seu olhar me paralisa”, declara Spassky ao seu conselheiro Krogins.

Espalha-se a notícia de que Fischer teria hipnotizado Spassky.

Meu “caro canibal”

 

Verdadeira ou não, a notícia causou sensação e preocupação entre os russos, que talvez não percebessem que Fischer seria um daqueles conhecidos esportivamente como “battants”.

Fischer declara abertamente: “O melhor momento numa partida é quando eu sinto que posso arrasar a personalidade de meu adversário...”

O russo mal consegue tempo para equilibrar a situação, quando o americano, por um lance audacioso, sente a moral do campeão do mundo titubear-se... Fischer não perdoa a menor imprecisão e acompanha a tomada de peças com onomatopéias como “grounch”, “slap”, o que deixa Spassky irritado.

O russo está esgotado. Cada partida transforma-se num verdadeiro combate em que Fischer, com lampejos de gênio, dá lances que desafiam as regras clássicas.

“O mundo do xadrez seria bem monótono sem Fischer...”, suspira Boris Spassky, falando daquele que chamou de “meu caro canibal”.

Sobre quais critérios devemos nos apoiar para julgar e analisar a impressionante “performance” exibida por Bob Fischer? Dois especialistas, Robert Wade e Kevin O’Connell, após ter constatado que Fischer, desde os 15 anos tinha se revelado mais forte no jogo de posição do que no jogo de tática, destacam que um jogador de posição tem mais facilidade de se transformar num grande jogador.

Em 1 de setembro de 1972, Boris Spassky, depois de ter passado boa parte da noite, analisando com seu Estado-maior, todas as defesas possíveis, telefona para o juiz Schmidt, anunciando sua desistência.

Por 12,5 a 8,5 na 21a partida de um total de 24, Bob Fischer torna-se o novo campeão mundial.

Alguns “experts” criticaram Spassky pela desistência. Mas, repetindo friamente os lances, eles chegaram a um acordo: o russo não teria a menor chance de defesa. Ele sairia derrotado, qualquer que fosse a manobra tentada.

Bibliografia

Euloge Boissonade – In Historia n. 332 – ps. 101 e segs.

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