Biblioteca (Crônica)
Publicado em 23 de maio de 2009 por Romano Dazzi
De Romano Dazzi
Era um livrinho insignificante.
Magrinho, mirrado, de tamanho pequeno, parecia ter sido feito com aparas de papel, dessas que sobram nas grandes edições.
O papel era amarelado, grosseiro, a impressão falha e sem graça.
O titulo até que era sugestivo: "Memórias de um pequeno amor".
Mas nem isso encaixava na sua aparência.
Fora deixado no meio de um enorme pacote de livros usados, na porta de serviço.
A bibliotecária, com a prática diária, separara rapidamente a maior parte deles e já os colocara nas diversas prateleiras.
Ele ficou largado no balcão, esperando seu destino.
Logo chegou a tarde, a luz apagou, a porta fechou com estrondo.
Era sexta feira, e aos sábados a biblioteca não abria.
Quando tudo se aquietou, começou um movimento inesperado.
Sim, porque os livros – todos sabem - dormem a maior parte do tempo, durante o dia. Só acordam quando alguém os abre, os folheia, ou se põe a lê-los.
Afinal, são ''apenas" arte, cultura, sabedoria; e visto que isso não se come e nem se bebe, poucas pessoas os procuram.
Só no setor de manuais há vida; as pessoas querem saber como se fazem certos produtos e objetos, para ganhar dinheiro.
Aquele setor, realmente, é o único que ficaacordado durante o dia.
Mas à noite..... à noite tudo é diferente; os livros saem ruidosamente das prateleiras e se espalham,se misturam e conversam.
Em geral, reúnem-se mais por tamanho, que por assunto.
A razão é simples: incompatibilidade de gênios; quando se fala sobre o mesmo assunto, ninguém entende ninguém.
A festa começara há tempos, quando dois obesos tomos, balofos, alegres, que quase não podiam andar devido às suas enormes barrigas, avançaram para o meio da sala e apresentaram-seao pequeno novato:
- Somosdicionários gêmeos -disseram - u sou o Tomo I, e vou de A a J; meu irmão, o Tomo II, vai de K a Z. Somos importantes; sabemos tudo!.....
Apostamos, por exemplo, que você não sabe o que quer dizer "amor", essa palavra que está na sua capa.
O pequeno livro, tímido e envergonhado, não tinha como responder; claro, que ele sabia – estava até no seu sobrenome!
- Deixe que nós explicamos, - continuou o gêmeo I :- "amor" é umsubstantivo masculino, proveniente do latim, que significa "sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outro"; viu como é fácil? É só nos consultar!"
O livrinho respirou fundo e, com voz trêmula, rebateu: - "Sim, mas amor é muito mais do que isso; é entrega, paixão, apego, amizade, simpatia, ternura, carinho...".
Os dicionários ficaram intrigados; "- temos que falar com o nosso primo, o dos sinônimos," - comentaram, enquanto se afastavam...
Logo apareceuum grupinho de senhoras de meia idade, quase todas gordinhas, bem tratadas, educadíssimas, mas não muito simpáticas: - "Somos as gramáticas, disseram em coro. Pouca gente gosta de nós, mas todos precisam consultar-nos, mais cedo ou mais tarde, para escrever menos bobagens. Ou melhor, para escrever as mesmas bobagens, mas
gramaticalmente corretas...".
Elas foram sentar num canto, conversando animadamente sobre verbos e conjugações, que são – é sabido - seus filhos e sobrinhos.
Outros volumes sérios passavam pelo balcão, para ir se juntar no canto da sala . O Memórias olhava, curioso.
-São os livros de religião – lhe sugeriu uma pequena Coletânea de prosa, que tinha evidentemente simpatizado com ele.
– Todas as sextas feiras se reúnempara longas discussões; aí vai a Bíblia, aquela senhora respeitável que parece bem firme, apesar do peso dos anos; em seguida vem o Alcorão, bem mais jovem, mas muito sério e compenetrado; e o mais magrinho, aí atrás, com o ar envelhecido, é o Evangelho, que foi escrito por bem mais que vinte mãos.... A briga deles todos, é infindável; nunca estão de acordo, nunca conseguirão ser irmãos. O que me chama a atenção, é que exaltam apobreza e a humildade, mas se apresentam com roupagens finas, papel rico, títulos bordados a ouro..."
O desfile continuava; formando um alegre grupo, bem heterogêneo, vários romances e novelas passaram saltitando; pareciam pessoas já não tão jovens, mas cheias de vontade de viver. Com certeza tinham organizado um baile.
Agora eram diversas matronas robustas e instruídas – a História, a Geografia, a Ciência, com uma infinita quantidade de filhos e filhas, todas muito compenetradas e sérias – que passaram sem dar a menor atenção; eram todas finíssimas intelectuais e não gostavam de se misturar.
E por fim, parecendo bailarinas, quase escorregando levemente pela sala, passaram as poesias, odes, sonetoscomseus passos suaves, seus rodeios silenciosos; e alguns aicais, tropeçando nos versos injustamente separados: uma perna curta, duas compridas.... .
A Coletânea virou-se pára o Memórias e:
– E você – perguntou – o que nos traz de bom?
A voz dela era como uma brisa bem leve e conseguia facilmente abrir suas páginas;
Memórias deixou-se folhear lentamente, sem pressa.
–" Oh, maravilha! Um amor ! Um pequeno amor!Isto é tudo de que o mundo precisa! É só com isso que poderemos sobreviver! Você não sabe como fazia falta. Como é bom tê-lo aqui! Me dê um abraço!"
Uma pequena folha seca, lembrança antiga de tempos felizes, deixada por algum leitor, escorregou graciosapara o chão.
A manhãjá chegava. Todos voltavam cansados aos seus postos e adormeciam.
Também o pequeno livro de Memórias pôde enfim descansar, e se sentiu orgulhoso, agora, pela primeira vez, por sua modesta contribuição.
Havia finalmente encontrado o seu lugar na silenciosa biblioteca.