Bíblia Dake:
Tiro no Pé às Portas do Centenário

Por
Roberto dos Reis



Num dia desses, perguntaram-me se estava a par da controvérsia em torno da publicação da Bíblia de Estudo Dake, lançada no dia 21 de Setembro de 2009, por nossa Casa Publicadora, a CPAD. O lançamento, com a presença do presidente da Convenção Geral (CGADB), José Wellington Bezerra da Costa, ocorreu no Templo Sede da Assembleia de Deus Ministério do Belém, no bairro do Belenzinho, na cidade de São Paulo. Na crista das discussões está o fato de que Finis Jennings Dake, idealizador das notas de rodapé ? daí o sugestivo nome "Bíblia de Estudo Dake" ? possui afinidades com teologias antagônicas ao rol de doutrinas adotadas pelas Assembleias de Deus no Brasil.
À pergunta despretensiosa e inocente de quem simplesmente desejava saber minha posição em relação ao assunto, desferi uma resposta sarcástica: "Não". Minha resposta, por sua vez, possui tudo, menos despretensão ou inocência. Aliás, o que menos a resposta tem é despretensão, e a inocência, essa já não atua como filtro psicológico das ações alheias. Não dá para assistir a atos insanos e imaginar que tudo faz parte do contexto geral da normalidade; não dá para fechar os olhos e, como crianças inebriadas pela fantasia, acreditar que não há maldade nas palavras e gestos de quem rompe as regras bom senso em prol do desejo nefasto do benefício próprio.
Meu "não" é mais que negatividade ou declaração de desconhecimento dos fatos. É protesto. É manifestação clara de indignação e repúdio. É isso que sinto: indignação e repúdio. Explico:
O pentecostalismo, desde seu renascimento em Los Angeles, Califórnia (EUA), no início do século passado, tem enfrentado a resistência incrédula e odiosa de um grande número de pessoas. À semelhança do que ocorreu com os primeiros discípulos no Cenáculo em Jerusalém, por ocasião da manifestação do Espírito Santo e a evidente realidade do poder de Deus (At.2.12-13), muitos se levantaram arrogantemente contra a irrefutável prova da atualidade da promessa do derramamento do Espírito.
Sobre os participantes daquela que se tornaria a experiência fundante do pentecostalismo moderno, ocorrido de 1906 (em Los Angeles), ficando conhecido como o Avivamento da Rua Azusa, recaíram as acusações de comportamento escandaloso e pouco ortodoxo para o contexto da época. Tanto a mídia secular quanto teólogos protestantes e católicos, incessantemente, vociferavam duras críticas contra os cultos pentecostais, taxando seus membros de histéricos e seus líderes de antiintelectuais. Entretanto, as reações contrárias ao incipiente pentecostalismo não foram suficientes para impedir seu crescimento. As notícias do que ocorria naquele velho templo da Igreja Metodista Episcopal Africana, sugestivamente mudado para Missão de Fé Apostólica, atraíram multidões que, vindas de todas as partes dos Estados Unidos e de outros países, contribuíram para expansão da experiência e doutrina pentecostais.
O impacto do Avivamento da Rua Azusa, num curto espaço de tempo (dois anos), gerou denominações pentecostais em todas as cidades dos Estados Unidos e em mais de cinqüenta nações espalhadas pelo mundo. Segundo o Dr. Eddie L. Hayatt, em seu "Fire on the Earth" ("Fogo sobre a Terra"), estima-se que, dos quase seiscentos e sessenta milhões de cristãos protestantes no mundo, cerca de seiscentos milhões pertençam a denominações que, direta ou indiretamente, foram influenciadas pelo Avivamento da Rua Azusa.
No Brasil o reflexo do Avivamento da Rua Azusa assumiu contornos peculiares. As sementes da experiência pentecostal em solo brasileiro começaram a ser semeadas em 1911 quando, motivados por uma visão missionária, Daniel Berg e Gunnar Vingren, desembarcaram no porto de Belém, Pará. Suecos de nascimento e americanos pela experiência do batismo no Espírito Santo, Berg e Vingren enfrentaram grandes dificuldades no Norte do país. Seja pelas vicissitudes próprias que a mudança para uma nova nação proporciona, seja pelos percalços e perseguições que sofreram na execução da tarefa que Deus lhes outorgara, o inicio do trabalho pentecostal nesse lado do continente foi sofrível. É dessa obediência incondicional à voz de Deus que nasceu a Assembleia de Deus no Brasil. Pioneira do pentecostalismo clássico tornou-se a maior denominação pentecostal do Brasil e do mundo.
Desde os esforços iniciais dos nossos pioneiros, a Assembleia de Deus vem, gradativamente, construindo sua identidade e galgando espaços consideráveis no contexto religioso brasileiro e, ao longo de várias décadas, se legitimando como depositária de uma doutrina cristã-pentecostal sólida, equilibrada, coerente e, acima de tudo, honesta com os princípios bíblicos. E Hoje, mais do que nunca, enquanto representante majoritária do pentecostalismo clássico, a Assembleia de Deus brasileira desponta como guardiã, e por isso, referencial, dos princípios fundantes da experiência pentecostal nesse lado da América. É precisamente essa posição de vanguarda, e a respeitabilidade que a denominação conquistou neste quase um século de história, que tem sido golpeada pelo órgão que, acima de tudo, é gestora de uma parcela significativa da literatura-representativa da teologia pentecostal, e porta-voz oficial do pensamento bíblico-teológico-doutrinário da Assembleia de Deus no Brasil: a CPAD.
Ao lançar no final do ano passado a Bíblia de Estudo Dake, a Casa Publicadora das Assembleias de Deus não apenas lançou no mercado editorial brasileiro mais uma obra literária, injetou nas veias da própria denominação um vírus capaz de minar da quase centenária Assembleia de Deus a legitimidade representativa da teologia bíblico-pentecostal brasileira, uma vez que as ideias defendidas por Finis Jennings Dake não representam, nem de longe, o pensamento doutrinário da denominação, seja americana ou brasileira.
Nascido em 1902, nos Estados Unidos, Finis Dake converteu-se a Cristo em 1919, na cidade de Tulsa, estado de Oklahoma, época em que, segundo ele, teria recebido um dom sobrenatural que lhe conferia capacidade para recitar centenas de passagens bíblicas sem nunca tê-las memorizado. Ordenado pela Assembleia de Deus americana, em 1926, ao ministério pastoral, Dake trabalhou em várias igrejas, tanto em Oklahoma quanto nos estados do Texas e Illinois onde, em 1935, foi acusado de crime sexual contra uma menina de 16 anos. Expulso da Assembleia de Deus, e declarando-se culpado, Dake foi condenado pelo tribunal do júri a seis meses de reclusão na Casa de Correções Milwaukee, onde teria iniciado a redação de suas trinta e cinco mil notas que, posteriormente, formariam o rodapé de sua famosa Bíblia.
A "Dake Annotated Reference Bible" ("Bíblia de Estudo Dake") passou por algumas alterações antes de ser traduzida para o português, segundo a própria CPAD, objetivando expurgá-la dos graves erros teológicos e doutrinários existentes em várias de suas notas. Entretanto, o problema não pode ser resolvido pela mera subtração das notas controversas, essa atitude é, no mínimo, simplória e desrespeitosa, dou duas razões: Em primeiro lugar porque, independentemente de quem quer que seja, extrair elementos de uma obra literária (ou artística, musical etc.) sem que isso seja feito pelo próprio autor, constitui-se mutilação de obra alheia, desonestidade para com o produto intelectual do autor. Em segundo lugar, o produto literário não se resume nas páginas impressas, ele transcende seu formato ortodoxo e evoca a vida do próprio autor, ou seja, tirem-se todas as notas obscuras e controversas da Bíblia de Estudo Dake e, ainda assim, teremos o pensamento de um teólogo, no mínimo, suspeito. Então, o mais sensato e honesto a fazer é, simplesmente, não publicar a obra que se constitui flagrante ofensa às crenças e princípios bíblico-doutrinários do público ao qual se destina.
Dake, a toda evidência, não compartilha da visão teológico-doutrinária da Assembleia de Deus em vários pontos, muitos deles centrais e inegociáveis para o Cristianismo. É o que acontece, por exemplo, com a Cristologia, a Soterologia, a Trindade e outras doutrinas fundamentais. Em relação a Cristologia, Dake acredita que, a despeito do que ensina a Bíblia, Jesus teria se tornado Filho de Deus no momento de Sua encarnação, e Messias por ocasião de Seu batismo no rio Jordão. Posição claramente anti-bíblica e condenada pela Igreja Cristã já nos seus primórdios, e hoje adotada pelas Testemunhas de Jeová, é conhecida como "Doceptismo?. A Soterologia ensinada por Dake é, semelhantemente, divorciada dos parâmetros bíblicos. Segundo ele, não obstante a vida eterna ser um dom gratuito de Deus, ela, por sua vez, é insuficiente para operar a salvação no indivíduo. Se a Cristologia e a Soterologia de Dake são contraditórias, o que não dizer de seu posicionamento em relação a Trindade e a Natureza Própria de Deus
Completamente oposta à concepção assembleiana a cerca da Trindade, Dake advoga que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem, cada um deles, corpo, alma e espírito. E, como se não bastasse, a única diferença entre o "corpo" de Deus e o corpo do homem é que o corpo de Deus é composto por uma substância espiritual e o corpo do homem, por uma substância material.
Por tudo isso, e uma infinidade de outras anomalias não mencionadas aqui, a Bíblia de Estudo Dake torna-se nociva e antagônica à postura bíblico-teológico-doutrinária da Assembleia de Deus, não representando, por nenhum viés ou ângulo, o pensamento teológico do Pentecostalismo Clássico representado pelo Assembleia de Deus no Brasil. E sua publicação, um ano antes do Primeiro Centenário constitui, nada mais e nada menos, que um ato desvairado e inconsequente de quem, devendo engrandecer a denominação por suas ricas contribuições para o Reino de Deus e a história da Igreja no Brasil, dá um tiro no próprio pé.