Balzac tem aspectos de um admirável artista. Possui uma natureza vulgar, robusta e exuberante. Ele tem uma necessidade intensa de atividade. Primeiro, como escrivão, onde adquiriu o gosto das detestáveis zombarias que ele prolixamente empregou em seus romances. Mais tarde inicia um trabalho em sociedade com um gráfico que redunda em fracasso. Ele se imagina homem de negócios: passa longas horas inventando combinações que gerariam fortunas. Mas é completamente desprovido de senso prático: não faz outra coisa senão endividar-se durante boa parte de sua vida. Essa imaginação, perigosa na realidade, transforma-se numa grande qualidade literária que irá representar em romance uma sociedade que se ocupa largamente com negócios e dinheiro.

Para saldar suas dívidas e viver, Balzac deve trabalhar e produzir incessantemente. “Em 12 horas coloco o preto sobre o branco, escrevia à sua irmã, e ao cabo de um mês, terei cumprido uma boa tarefa”. Deita-se às seis horas, logo após o jantar, acorda à meia-noite, toma café e trabalha até o meio-dia. Assim, em 20 anos (1829-1850) é feita a Comédia Humana: obra colossal, inédita, não sem alguns defeitos, é preciso que se diga.

Em primeiro lugar, falta estilo. Nesse ponto Balzac não tem nada de artista. Como literato ele é detestável e ridículo. Ele desenvolve uma fraseologia pomposa, ornada de metáforas empoladas ou banais. Isso lhe dificulta as descrições delicadas de sentimentos poéticos, as requintadas análises de paixões ternas, de exaltações idealistas. Em vez disso, Balzac mergulha na pior retórica, exibe um pastoso galimatias. Leiam o “Lys dans la vallée”. Sua incapacidade surge exatamente onde a perfeição do estilo que valoriza a idéia seria mais necessária.

Há mais. Balzac é um pensador. Ele se crê um iluminador dos espíritos mais ou menos como um médico que, com gravidade, tateia o pulso do século. Ele reflete, discute, expõe, interrompe sua narração com digressões sociais ou filosóficas, e, assim, enfraquece e dilui as observações exatamente na ação do romance que pediria uma expressão concreta.

Outro ponto. Como G. Sand, Balzac peca pela falta de sobriedade. Mesmo nos aspectos em que ele é excelente, discorre exageradamente, sem gosto e sem medida. À dissolução do pensador sucede a intemperança do artista, que nunca se cansa daquilo que o agrada, que procura abarcar de um só lance toda a realidade. São descrições intermináveis de mobiliários e propriedades, conversações de porteiros e empregados. Aqui Balzac é prolixo e sensaborão.

Mais ainda. Ausência total de sentimento da natureza. Suas paisagens não passam de meros inventários de administrador. Diante dos campos e dos bosques, esse grande pintor tem emoções de caixeiro-viajante.

Num sentido, ele é a tradição clássica. Só o homem e tudo o que o acompanha, interessa-lhe. Se o examinarmos no que tem de melhor, ele é exclusivamente o pintor das relações sociais e dos tipos humanos.

Mas, aqui também, é preciso assinalar defeitos e lacunas. Balzac é deploravelmente romântico. Metade de sua obra é composta de um romantismo trivial, de inverossimilhanças ou ficções insípidas que ele desenvolve seriamente. Melodrama, romance feuilleton, todos os piores epítetos são fracos para caracterizar a lamentável extravagância das fantasiosas intrigas de Balzac. Uma só vez ele extraiu de um caso extraordinário um trecho de valor: a história do Coronel Chabert.

Balzac, com seu gênio robusto e prosaico, é incapaz de reproduzir os caracteres e os costumes, cujo traço dominante é a delicadeza. Sua aristocracia da Restauração, suas grandes damas, viúvas ricas ou galanteadoras, deixam o leitor desconfiado, sem que se conheça o original. Elas nos dão a impressão de comediante representando o papel de duquesas num teatro de um sub-distrito qualquer. Suas moças são réplicas de uma jovem insignificante e ingênua. Donzelas modestas, pacientes e amantes sem graça. Balzac dá-se mal com a virtude e a elegância. Seu gênio começa com a vulgaridade e o vício.

Até aqui apresentamos as lacunas do nosso romancista. No seu campo, que é a descrição das características gerais da classe burguesa e popular, ele é inigualável. Ele é dotado de um raro poder de imaginação sintética. Pela clareza de sua visão e convicção de sua descrição, consegue, como poucos, dar vida intensa a um personagem. Sem dúvida, não faz psicologia profunda. Não entra no âmago de uma ação interior que faz ou desfaz uma alma. Está longe de destrinçar os elementos que implicam numa vontade ou desejo. Ele compõe solidamente seu personagem, coloca-lhe uma paixão forte que norteará seus atos, forçará todas as resistências dos deveres domésticos ou sociais, até mesmo dos interesses. Nunca se representará de forma tão vigorosa a devastação de toda uma vida, a destruição de uma família por causa da incoercível mania de um indivíduo. Jamais se terá tirado, de um sujeito de temperamento imutável, desdobramentos lógicos mais variados e impressionantes. É a avareza de Grandet, a devassidão de Hulot, a inveja da prima Bette, o amor paternal de Goriot, a tirania de uma invenção de Balthazar Claes. Em tudo, um irresistível instinto, nobre ou vil, virtuoso ou perverso, que faz do personagem um gênio de bondade ou um monstro do vício.

Mas esses tipos são reais. Veja o avarento: é o bonacheirão Grandet, camponês de Saumur, com tal fisionomia, tal roupa, tal pronúncia ou tartamudeio, enfronhado em negócios pessoais. Veja a invejosa Bette, uma camponesona rude, morena de olhos negros e fixos. Toda a parte sensível do romance, as descrições e as ações, dão a medida da qualidade e energia de um principio moral.

O fracassado homem de negócios que havia em Balzac proporcionou-lhe um inapreciável serviço. Ao contrário da maioria dos literatos que só tratam de amor para caracterizar seus personagens, Balzac lança os seus pelo mundo, cada um na sua profissão. Ele descreve em detalhes todas as operações profissionais pelas quais um indivíduo revela seu temperamento, e tira disso a sua felicidade: o perfumista Popinot inventa uma água especial para os cabelos. O sub-chefe Rabourdin medita sobre a reforma da administração e do imposto: aqui está todo o seu plano, como se tratasse de algo de cumprimento obrigatório. Tudo não passa de relatos de processos, de falências e especulações. Mas, no fim de tudo, acredita-se que o investimento deu algum resultado.

Balzac é incomparável também em caracterizar seus personagens pelo ambiente em que vivem. Pode-se dizer que o melhor de sua psicologia está nas descrições dos interiores, por exemplo, quando descreve a gráfica do tio Séchard, a residência do bom Grandet, a casa do Chat qui pelote, um apartamento de padre ou de uma solteirona, os papéis de parede suntuosos ou gastos de um salão. Analisar os hábitos morais das pessoas pelas formas do ambiente interior, é um método totalmente balzaquiano[1]. Balzac era extremamente escrupuloso na observação das verossimilhanças das partes exteriores. Ele percorria o cemitério Père-Lachaise para procurar nos túmulos os nomes expressivos. Escrevia a uma amiga (Mme. J. Carraud) pedindo informações sobre determinada rua que vai dar na praça do palácio da Justiça, depois o nome da porta que desemboca na catedral...

Balzac distingue muito bem os grupos sociais, o mundo elegante, a burguesia rica, o povo de Paris, a aristocracia e burguesia provinciana, camponeses, empregados, jornalistas, todas as “panelinhas”. Em cada grupo, os indivíduos arquétipos, que revelam sejam os caprichos, as manias, os instintos ou os segredinhos desses grupos. Ora vemos camponeses ávidos de lucros, nos quais a ânsia de possuir sempre mais, faz diminuir um pouco o peso da natureza rude. Ora vemos os empregados e a estúpida vida de escritório: o empregado recitador de canções engraçadas, o galhofeiro, o brutamonte, o intrigante chato que sobe de posição, o trabalhador honesto e ingênuo que fica marcando passo, as “fofocas”, as proteções, etc., etc.,... Ora vemos os salões e as sociedades das pequenas cidades, com suas maledicências, calúnias, invejas, espionagens, marchas e contramarchas envolvendo heranças, o sucesso de uma eleição. “Le curé de Tours, César Birotteau, La vieille fille, Paysans, Un grande homme de province à Paris”, etc., contém curiosas cenas de costumes locais ou profissionais. Mesmo nessa extravagante “Femme de trente ans”, há alguns quadros de uma intensa realidade.

Balzac descreve com vigor e fidelidade um determinado momento e uma parte da sociedade francesa. Ele representou a burguesia parisiense e provinciana como trabalhadora, intrigante, servil, egoísta, que queria dinheiro e poder, que fazia fortuna através do comércio e indústria, que na segunda geração limpava o nome com títulos e cargos. Feitas as devidas reservas, esse seu poder de criatividade impressiona. Todos os indivíduos que encontramos em suas obras, em todas as épocas de suas carreiras, famílias que crescem, se elevam e depois entra em decadência, tudo isso forma um quadro que dá a sensação de vida. Todos os defeitos desaparecem ao lado da grandeza do conjunto, e quando folheamos a Comédia Humana, temos dificuldade em distinguir o que é ficção e realidade histórica. A obra de Balzac, por esta coesão e poder de ilusão que causa, é única.

Aqui vemos por onde Balzac passou a ser considerado o pai do realismo contemporâneo. Ele foi desastradamente romântico, mas, como lhe falta senso artístico, gênio poético e estilo, os cenários de inspiração romântica são justamente as partes inexpressivas de sua obra. Por outro lado ele representou com perfeição os tipos medíocres e vulgares, os hábitos burgueses ou populares, as coisas materiais e sensíveis, o que condiz admiravelmente com arte realista da França. Assim, através de suas lacunas e de seu grande talento, Balzac realizou em sua obra a separação do romantismo e do realismo.

(Histoire de la littérature française - G. Lanson – Hachette – Paris – ps. 1000 e segs.)

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[1] - Nota: Mais tarde, o historiador G. Lenotre, da Academia Francesa e fundador da “Petite Histoire”, utilizaria esse método.