BAKHTIN E OS GÊNEROS PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS NO DISCURSO 

Atilio Borges Neto 

RESUMO

No estudo a seguir, pretendemos examinar os gêneros de discurso primário e secundário, partindo do ponto de vista do filósofo Bakhtin, mas também relativisando a concepção de Bakhtin com a de outros autores que discorrem a respeito de tais gêneros.

PALAVRAS- CHAVE: Bakhtin, gêneros, discurso.

ABSTRACT

In the study following, we intend to examine the genres of discourse primary and secondary from the point of view of the philosopher Bakhtin, but also to relativize the conception of Bakhtin with ideas of other authors who talk about such genres.

KEYWORDS: Bakhtin, genres, discourses.

 

Sem que haja exceções, as diversas esferas da atividade humana estão incessantemente relacionadas com a utilização da língua. Os modos dessa utilização, conforme explicita Bakhtin (1979), são variados tanto quanto as próprias esferas da ação humana. A utilização da língua se concretiza por meio de enunciados que procedem dos integrantes de uma ou de outra esfera social.  O enunciado repercute as condições particulares e as finalidades de qualquer esfera social que, ao fazer uso da língua, elabora tipos estáveis de enunciados, os quais são concebidos como gêneros do discurso.

            Segundo o autor, os gêneros do discurso se diferenciam de forma essencial em dois aspectos: o simples e o complexo. Sendo que os gêneros de aspecto simples são os de discurso primário e os de aspecto complexo são os de discurso secundário.  

Os gêneros secundários do discurso são os que aparecem em situações de uma comunicação culturalmente complexa e evoluída, transmutando e absorvendo, em seu processo de formação, os gêneros primários. Alguns dos gêneros tidos por secundários são: o teatro, o romance, o discurso ideológico, o discurso científico etc.

Dos gêneros secundários mencionados acima, podemos explicitar com brevidade que, de acordo com Moisés (2004), o romance consiste em um texto em prosa[1], dotado de complexidades em relação à linguagem, a começar pelo fato de que o romancista pode fazer uso de todas as formas conhecidas de diálogo (desde discurso direto até o monólogo interior) e ainda articular essas formas conforme a sua pretensão. Com isso, a linguagem em um romance pode se apresentar de diversas maneiras inclusive mesclada entre os modos formais e coloquiais que manifestam diversas funções: emotiva, apelativa, referencial etc..

Além disso, para Moisés (2004), o romance é como se fosse um gênero que absorve tudo o que existe, porque todas as formas de conhecimento cabem dentro do perímetro do romance. Fato este que o transforma em uma espécie de síntese do mundo, ou seja, um suporte que reflete a totalidade do mundo. Estruturalmente, o romance se caracteriza pela pluralidade de ação e se apresenta por critérios como: um enredo que diz respeito a tudo o que acontece na estória[2], revelando começo, meio e fim com a participação de personagens que podem vivenciar diversos conflitos.  

Geralmente, o romance possui um tempo e um espaço onde se desencadeiam os fatos da estória, possui também mais de uma célula dramática,  um narrador, um clímax em que os conflitos se aproximam de uma solução e um desfecho em que são solucionados ou não são solucionados os conflitos que fazem parte da estória. Esses são alguns dos critérios estruturais que fazem do romance um gênero complexo do discurso literário, o qual se diferencia de tantos outros gêneros.  

Sobre os gêneros primários, Bakhtin (1979) expõe que são os que se formaram em situações de uma comunicação verbal espontânea e eles servem de componentes aos gêneros secundários. Esses gêneros primários estão ligados ao diálogo oral. Entre outros, alguns dos gêneros primários são: a linguagem filosófica, a cotidiana, a familiar etc.. Com base nos aspectos de diálogo oral e comunicação verbal espontânea, um exemplo de linguagem cotidiana se faz visível nas frases feitas como os ditos populares. Nessa perspectiva, alguém que durante uma conversa usa um dito como: “O tiro saiu pela culatra”, está fazendo uso da linguagem cotidiana que, de acordo com Serraine (1959, p. 83), se assemelha à linguagem popular corrente: “A propósito do meio ou camada social em que circula o termo, quando anotamos que pertence ele à linguagem popular corrente, é por ser o mesmo usado comumente”.

Exposta de outro modo, a linguagem popular corrente é a fala do senso comum que se equivale aos chavões. Estes, de acordo com Lapa (1998), fazem parte de grupos fraseológicos que já estão formados há muito tempo:

[...] O homem tende a economizar o seu esforço, acha vantagem em que as palavras lhe ocorram por grupos, para as suas necessidades de expressão. É mais vantagem ainda, quando esses grupos já vêm formados desde o passado da língua em frases feitas [...] (LAPA, 1998, p. 66).

Essas terminologias (linguagem popular, chavões, frases feitas.) explicitam-nos um dos tipos de discurso primário: a linguagem cotidiana. E é por meio dessa explicitação que podemos entender melhor o critério de comunicação verbal espontânea, encontrado nos discursos primários.

Ainda com referência aos gêneros primários e secundários, Machado (2010), explicita que os contatos entre gêneros primários e secundários modificam esses gêneros e os complementam. Dessa forma, um diálogo pode perder a sua relação com o ordinário[3] contexto de comunicação quando se transforma em um texto artístico ou quando passa a fazer parte de um texto jornalístico. Então, ao passo que se modifica uma forma de enunciado do mundo cotidiano acaba sendo possível que tal forma participe de uma esfera da ciência, da filosofia ou da arte etc.

Segundo Machado (2010), os estudos dos gêneros discursivos levam em consideração a natureza do enunciado na sua diversidade e nas diversas esferas da atividade de comunicação, isso porque “os enunciados configuram tipos de gêneros discursivos e funcionam, em relação a eles, como ‘correias de transmissão’ entre a história da sociedade e a história da língua”. (BAKHTIN apud MACHADO, 2010, p. 156). Assim, as esferas de uso da linguagem acabam não sendo uma noção abstrata e sim uma referência direta aos enunciados que expõem os discursos.

Considerando a função comunicativa, Bakhtin apud Machado (2010) estudou o dialogismo entre falante e ouvinte como sendo um processo de interação em atividade. A questão do dialogismo, para o autor, diz respeito a um processo interativo: “O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso imediatamente assume em relação a ele uma postura ativa de resposta” (BAKHTIN apud MACHADO, 2010, p. 156).

O autor verifica entre discurso e enunciado a necessidade de se pensar o discurso dentro de um contexto enunciativo da comunicação e não como uma unidade de estruturas linguísticas. O enunciado e o discurso supõem uma dinâmica dialógica de troca entre sujeitos discursivos no processo de comunicação, isso pode acontecer tanto no diálogo cotidiano como no gênero secundário. Dessa forma, há uma grande importância do contexto comunicativo para que exista a assimilação de um repertório enunciativo que se pode dispor para enunciar uma determinada mensagem. E essa importância do contexto comunicativo ocorre porque os gêneros discursivos são formas comunicativas que não se adquirem em manuais, mas se adquirem nas situações interativas:

[...] a língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não os conhecemos por meio dos dicionários ou manuais de gramática, mas sim graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação discursiva efetiva com as pessoas que nos rodeiam [...] (BAKHTIN apud MACHADO, p. 157).

Segundo Machado (2010), quanto maior for o conhecimento das formas discursivas maior será a liberdade de usar os gêneros e isso é um fato de manifestação de uma conduta ativa do usuário da língua para produzir efeitos comunicativos e expressivos. É importante frisar que, em termos de efeitos expressivos, a própria entonação expressiva é específica do enunciado e não pode ser pensada fora do enunciado. De certa maneira, esse fato confere ao gênero discursivo uma forma enunciativa que não é independente do contexto comunicativo e da cultura, mas, sim, dependente de ambos.

O gênero discursivo considerado como o uso de finalidades comunicativas e expressivas deve ser colocado como manifestação da cultura. Nessa acepção, os gêneros discursivos não são entendidos como uma modalidade de composição nem como uma espécie de discurso, mas como um dispositivo de organização, de divulgação, de armazenamento, de troca, de transmissão e, além de tudo, de criação de mensagens em contextos culturais determinados. Com isso, o gênero não deve ser refletido fora de uma esfera espaço-temporal, porque as formas de representação que nele se abrigam são orientadas pelo tempo e pelo espaço.

O gênero, então, na teoria dialógica, acaba sendo inserido na cultura em relação a qual ele se manifesta como sendo uma memória criativa em que estão depositadas as conquistas das civilizações e as descobertas significativas sobre os homens e suas ações no espaço e no tempo.  Assim, na cultura a experiência e a representação são manifestações marcadas pela temporalidade. Com relação a uma existência, o gênero discursivo ganha uma existência cultural que elimina, por sua vez, o pensamento da origem dele e também do seu fim, pois os gêneros se constituem a partir de situações particulares e recorrentes e por esse motivo são tão antigos quanto as organizações sociais.

Para Bakhtin apud Machado (2010), a cultura é concebida como unidade aberta e dessa forma ela é atravessada por deslocamentos e transformações. Nessa ótica, as formas de discurso podem sofrer modificações.

Partindo disso, podemos dizer que os gêneros discursivos indicam possibilidades de combinação entre os modos de comunicação oral imediatos e as formas escritas de comunicação. Logo, os gêneros secundários e primários são misturas, o que nos permite pensar nos gêneros discursivos como realizações das interações geradas na esfera da comunicação verbal. Assim, é possível acompanhar a expansão deles, para outras esferas de comunicação, realizada pela versatilidade de outros códigos culturais que se constituem em relação à palavra. Disso, tem-se que as esferas de uso da linguagem podem ser configuradas de forma dialógica em função do sistema de signos que as realiza. 

REFERÊNCIAS 

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI Escolar: O minidicionário da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

LAPA, Manoel Rodrigues. Estilística Da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LIMA, Maria Cecília. Leitura e Escrita como Práticas Discursivas: Ensino, Discurso e Mudança da Prática Discursiva e Social. Pelotas: Educat, 2001.

MACHADO, Irene. Gêneros Discursivos. In: BETH, Brait. (org) Conceitos-Chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Confluência, 1952.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

NASCENTES, Antenor. Dicionário Etimológico Resumido. Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro; Ministério da Educação e Cultura, 1966.

RIOS, Dermival Ribeiro. Minidicionário Escolar da Língua Portuguesa. São Paulo: DCL, 2008.

SERRAINE, Florival. Dicionário de Termos Populares. Rio de Janeiro: Simões, 1959.

SPITZER, Carlos. Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Porto Alegre: Livrario do Globo, 1953.



[1] O termo prosa está usado em relação à narrativa  "correspondente à narrativa de ficção como o conto e a novela"  (MOISÉS, 2004, p. 371)

[2]  Segundo  Rios (2008), o termo estória diz respeito a uma narrativa fictícia.

[3]   O termo ordinário significa habitual (RIOS, 2008, p. 365).