Avaliação e Potencial Terapêutico: Relato de Experiência sobre Avaliação em Núcleo de Avaliação e Parecer Técnico

Felipe tem 9 anos e está no 3º ano do Ensino Fundamental, sendo que foi retido por um ano no 2º ano, foi encaminhado a serviço de apoio e pesquisa ao processo de inclusão na região do vale do rio dos sinos (RS), pois mesmo apresentando-se interessado e  com grande capacidade de pensar soluções para as adversidades de seu cotidiano, evidencia significativa dificuldade de concentração e conservação de suas aprendizagens no que diz respeito ao conhecimento alfabético e numérico. O primeiro encontro foi realizado com os pais para entrevista inicial, neste momento eles trouxeram informações sobre a gestação, sendo que o bebê nasceu aos 6 meses devido a pré-eclâmpsia da mãe com possibilidade iminente de ambos não sobreviverem; a cesárea foi bem sucedida, a mãe ficou internada por 15 dias por paralisação de um dos rins, e o recém nascido foi encaminhado a UTI Neonatal, aos sete dias passou por uma intervenção cirúrgica gastrointestinal, tendo momentos mais agudos e de melhora ao longo dos 4 meses de internação. Após a alta hospitalar convulsionou pela primeira vez, desde então faz acompanhamento no setor de neurologia em hospital na capital, fazendo uso de medicação para controle até os 7 anos de idade, atualmente sem crise. Ao longo deste acompanhamento foi levantada a possibilidade diagnóstica de TDAH com introdução de medicação, porém não foi percebida nenhuma evolução no quadro, recebemos também laudo médico onde consta que Felipe tem transtorno de aprendizagem, dislexia e discalculia, com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, devido à epilepsia grave no período neonatal (Síndrome de West), sem retardo mental. Atualmente realiza sessões de fonoterapia, com profissional particular, por apresentar disfluência.

Em nosso primeiro encontro, deparo-me na sala de espera com um menino com cabelo loiro levemente encaracolado, muito branquinho e miudinho, o convido para subirmos até a sala, mesmo com o rosto avermelhado que demonstrava a sua vergonha, deu-me a mãe sem resistência, apresentei-lhe a sala e expliquei o que por 6 ou 7 encontros faríamos ali, nos apresentamos e logo propus HTP. Suas produções gráficas causaram-me uma primeira inquietação, onde encontro desenhos que evidenciam traços importantes de ansiedade, insegurança, perda afetiva, imaturidade e fixações em estágios anteriores do desenvolvimento, percebo também que não nomeia cores. Nos encontros seguintes, realiza Desenho da Família, onde pela primeira vez traz conteúdos de morte, realiza o Teste Gestáltico Bender, com 16 indicadores altamente significativos de organicidade neurológica, e realizo visita a sua escola.

Com a intensidade dos nossos encontros e seus conteúdos, e os sentimentos que por ali circulavam, hipóteses de transtornos severos rondavam as minhas supervisões o que me causava profundo desconforto, assim sob a orientação da minha supervisora a ideia inicial de 6 ou 7 encontros cai por terra e proponho a família que o atendimento passe a ser quinzenal para que possamos alcançar os 6 meses dos critérios diagnósticos. Nos encontros que se sucedem apresento-lhe a pintura com tinta, a casinha e família terapêutica e os animais domésticos e da fazenda, aceita bem os recursos, com a tinta usa os dedos e o pincel e com a casa explora a troca da mobília, pois a casa está em obras; escolhe poucos membros da família, sempre do gênero masculino e traz novamente conteúdos de morte, assim como quando brinca com animais, matando-os e os enterrando. A cada encontro que passava o vínculo se fortalecia, colos ‘roubados’ eram constantes e a vermelhidão que por vezes vinha em seu rosto, já não fazia mais parte de nossos encontros. Assim, entramos em uma nova fase de nosso processo, o que me causava angústia, pelo resultado que viria após a aplicação do WISC-III, levamos 5 encontros para terminá-lo, combinando sempre que iniciaríamos com as nossas atividades e encerraríamos com um jogo; sim agora jogávamos e muito, a casinha, os bonecos haviam sido deixados de lado e as regras e a competitividade prevaleciam. Ao final do processo realizei o levantamento da testagem, mas pelas experiências anteriores percebia as respostas e as construções satisfatórias a faixa etária, mesmo com os indicadores do Bender e o laudo médico que chegara a poucos dias antes da correção. E assim foi, na escala verbal obteve escore 71, que indica limítrofe, na escala de execução obteve escore 100, que indica média, alcançando assim um total de 83, que corresponde a um funcionamento cognitivo médio inferior.

Deste modo, o laudo foi escrito com muita satisfação e serviu como um grande alívio a todas as angústias experienciadas, pois desde o início tive a percepção e o sentimento que estava me deparando com uma conflitiva emocional e não com um transtorno severo ou com uma deficiência mental, assim sugerimos nos encaminhamentos que a escola pudesse fazer a flexibilização escolar, com a utilização de material concreto e potencialização da expressão verbal, seguir em acompanhamento médico e fonoaudiológico, atendimento psicopedagógico, atendimento psicoterápico em grupo a Felipe, e a família que seguisse participando do Grupo de Família, assim como a mãe participou em todo processo de avaliação, o que foi muito importante, possibilitando que neste período ele ganhasse um quarto só para ele, não dormindo mais no quarto com os pais.

Esta experiência me possibilitou pensar ainda mais sobre o potencial das avaliações, que no contexto atual recebe tantas críticas, o que motiva pesquisas, onde acadêmicos de Psicologia consideram que os testes não são confiáveis e rotulam os sujeitos (ARAÚJO, 2007 apud PEREIRA; CARELLOS, 1995; GOMES, 2000), e que também laudos emitidos após estas testagens muitas vezes são moralistas e reducionistas, causando rótulos caros a professores e psicólogos que recebem estas crianças (PATTO, 1997). Acredito que estas sejam realidades e que estes ‘ranços’ que muitas vezes tem origem na academia enunciam as novas intervenções da Psicologia no contexto atual, que atravessam os processos de subjetivação, o social, a política, demandando constantes atualizações e revisões (ARAÚJO, 2007). Entretanto, avaliar um sujeito assumindo este compromisso ético, através de entrevista com a família, visita a sua escola, testes projetivos e psicométricos, brincadeiras, jogos, com duração de 6, 7 encontros ou até 6 meses se necessário, ou qualquer outra intervenção, também não pode cair no reducionismo de estar a serviço apenas  do rótulo.

Nesta avaliação, o potencial terapêutico da intervenção fez-se presente, pois antes do tempo cronológico que daria conta da tarefa de avaliá-lo, levamos em consideração seu tempo psíquico que vinha à tona em suas produções gráficas e simbolismos. “Quando o trauma do nascimento é significativo, cada um dos aspectos da intrusão e da reação é entalhado na memória do indivíduo” (MOREIRA, 2007, p. 94 apud WINNICOTT, 1949, p.265), esta citação ilustra e dá sentido a todas as vezes que no desenho, no brincar com a família terapêutica e com os animais a narrativa da morte, que já era enunciada pela equipe médica antes mesmo do seu nascimento, sendo evocada constantemente nos 4 meses de sua internação, pode tomar corpo a ponto de realizarmos o enterro daqueles que morreram, dando-lhe um novo sentido, através deste encontro singular que se deu através de uma via fantasmática que permite acesso ao imaginário que rememora sua própria história (RABELLO, 2005).

Na experiência do nascimento prematuro de Felipe, sua mãe que achava que nem conseguiria mais engravidar após 8 anos de tentativas, depara-se com a separação inicial de seu filho tão planejado e esperado. De modo geral, as mães de prematuros vivem uma experiência de angústia de separação muito intensa, onde as necessidades físicas de seus bebês são contidas através da incubadora aquecida, porém esta não dá conta da demanda psíquica pela falta do calor do colo dos familiares, no estabelecimento dos primeiros vínculos familiares (MOREIRA, 2007). Além disso, a mãe carrega consigo um sentimento de desvalia e culpa, por não ter conseguido levar a gestação adiante, sentindo-se responsável por tudo que o bebê está passando e incapaz de cuidá-lo, o que é reforçado por acreditar que médicos e equipe de apoio possam fazer isso de forma mais qualificada (BALDISSARELLA; DELL’AGLIO, 2009).

A construção subjetiva de Felipe já nos primeiros momentos de vida foi de angústia, suas primeiras inscrições foram feitas pelos opostos vida e morte e logo em seguida pelas crises epiléticas. Em nossos atendimentos estas questões puderam ser rememoradas, vindo à tona em um espaço que permitiu compreender que tudo que diria respeito ao crescer, como dar conta das questões escolares que foi o que motivou seu encaminhamento para a avaliação era muito difícil porque conflitos anteriores o fixavam em fases anteriores do desenvolvimento. Acredito que através de sua capacidade simbólica, pela relação terapêutica que se estabeleceu, muito se superou, auxiliado também pela disponibilidade psíquica da mãe em poder retornar também a suas angústias permitindo-se capaz de cuidar e deixar seu filho crescer.

Esta experiência foi uma rica oportunidade de aprendizado profissional, assim como um propulsor dos processos de ensino aprendizagem de Felipe, possibilitando um diálogo interdisciplinar, assim como com a família e a escola. O que fica marcado de forma especial é a capacidade terapêutica da avaliação, que impulsionou este sujeito para uma reorganização de sua saúde psíquica, diante de suas vivências traumáticas, possibilitando assim novos bons encontros com a vida.

REFERENCIAS

 

ARAÚJO, Maria de Fátima. Estratégias de diagnóstico e avaliação psicológica. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 126-141, 2007.

 

BALDISSARELLA, Lisiane; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. No limite entre a vida e a morte: um estudo de caso sobre a relação pais/bebê em uma UTI neonatal. Estilos da Clínica, São Paulo, vol. 14, n.26, p. 68-89, 2009.

 

MOREIRA, A ruptura do continuar a ser: o trauma do nascimento prematuro. Mental, Barbacena, p. 91-106, jun. 2007.

 

PATTO, Maria Helena Souza. Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 47-62, 1997.

 

RABELLO, Angela M. Construção subjetiva e prematuridade na UTI neonatal. Pulsional – Revista de Psicanálise, São Paulo, n. 181, p. 60-68, mar. 2005.