AUTONOMIA PRIVADA E O TESTAMENTO VITAL: um descaso com o fundamento constitutivo da Constituição Pátria – dignidade da pessoa humana, ou um atraso em relação ao direito de manifestação de vontade? Uma abordagem constitucional, tratadista e principiológica.

 

Luiz Rodrigo de Araújo Fontoura

Julio Cesar Costa Ferreira Neto[1]

Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques ²

RESUMO

O paper diz respeito à aplicabilidade do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade frente ao testamento vital. Aqui será tratado do instituto do testamento vital e suas peculiaridades, bem como a resolução 1995/2012 elaborada pelo Conselho Federal de Medicina. De maneira clara e fundamentada, o texto demonstra os principais elemento e formalidades que envolvem essa questão de maneira a contribuir para um melhor entendimento do assunto, além de ser explanado legislação de países estrangeiros.

Palavras chaves: Testamento vital; dignidade da pessoa humana; autonomia da vontade; liberdade; resolução 1995/2012;

INTRODUÇÃO

O testamento vital é algo novo, principalmente no Brasil que não possui normas dispondo sobre este assunto, envolve diversas questões e passeia por vários direitos fundamentais da Constituição Federal. O Conselho Federal de Medicina elaborou a resolução 1995/2012 numa tentativa de elucidar a questão, no entanto a Resolução não possui força de lei, fazendo com que renomados doutrinadores questionassem tal diretriz.

Neste sentido, o testamento vital é alvo de inúmeras críticas e debates em todo território Nacional.  Trata-se de um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser submetida quando estiver diante de um diagnóstico de doença. Não resta dúvida que envolve necessariamente o principio da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade, pois estes são à base do testamento vital, refletindo a apoio das correntes que concordam ou não concordam com este testamento. Portanto, o objetivo maior aqui trabalhado é esclarecer de maneira satisfatória os pontos positivos e negativos acerca do testamento vital, utilizando principalmente os princípios-base, a resolução 1995, legislação alienígena, assim como uma pincelada sociológica, com a perspectiva de contribuir para esclarecer os diversos pontos controvertidos que envolvem a questão.

 

  1. TESTAMENTO VITAL: conceito, estrutura, e legislação alienígena sobre o tema

Primeiramente, antes de adentrar-se no estudo do testamento vital, abordando conceito, estrutura, criação histórica e sua aplicação em Estados alienígenas, faz-se mister entender um conceito anterior, qual seja, o conceito de testamento, e, após essa explanação passar-se-á a diferenciar os dois institutos.

Pois bem.

O sucessão testamentária – instrumentada pelo testamento – e a sucessão legítima – de herdeiros aqueles ditos como tal – são formas de consolidar aquela família no cenário mundial, desse modo, é algo ad infinitum, com intuito de situar aquela família por gerações e gerações, avôs para pais e pais para filhos, no mundo terrestre e que o legado seja continuado ainda que a morte venha para os antigos protetores, ocorrendo a denominada popularmente “passagem do bastão”, assim:

Tem a sucessão, portanto, um sentido transcendente, eis que responde ao triunfo do amor familiar e fortifica a família constituída por aquele que morreu. O próprio Estado tem interesse na sucessão, pois na medida em que protege a família, assegura a sua própria economia, pois só existe um Estado forte se existem a família e o direito à Herança, pois s em a herança estaria comprometida a capacidade de produção das pessoas e seu interesse em produzir e poupar, pois de nada adiantaria um ingente esforço e uma vida dedicada ao trabalho, se sua família não seria a final destinatária de suas riquezas materiais.[2]

Outrossim, o testamento é um ato de vontade ao qual o testador irá, em regra, dispor de seus bens no pós-morte, incluindo terceiros e excluindo sucessores – na hermenêutica aqui análoga à teoria dos poderes implícitos, onde “quem pode mais, pode menos” -, logo, também poderá o testando diminuir cotas de sucessores etc.

Inobstante a regra, como explicitado em nosso código anterior, ser a disposição de patrimônio no testamento, é totalmente viável situação não patrimonial, assim, “embora a finalidade precípua do testamento seja dispor dos bens para após morte, pode o ato conter disposições sem cunho patrimonial, como reconhecimento de filiação, a nomeação de um tutor ou curador, a atribuição de um título honorífico”[3]

Portanto, o testamento, como supracitado é um ato de vontade. Mas, vai além do que isso, ele é um ato de última vontade, ou mortis causa, isso porque só irá produzir efeitos, por mais que formalmente esteja apto a fazê-lo, após a morte do testador, como bem assevera Tartuce e Simão: “antes da morte do testador, o testamento existe (plano da existência), é válido (se seguir as formalidades prescritas em lei – plano da validade) e apenas é ineficaz (plano da eficácia).” [4] Assim, é condição sine qua non para produção dos efeitos do testamento a morte do testador.

Além de mortis causa, o testamento é caracterizado como gratuito, unilateral, solene, revogável e personalíssimo.

É gratuito porque não pode criar para o herdeiro ou legatário contraprestações que ultrapassem a própria herança. Unilateral porque convalidará com somente a vontade do testador, independente de qualquer outra. Revogável pois a qualquer tempo, pela própria finalidade do testamento, poderá o testador revogá-lo, sendo, inclusive, nula cláusula de vedação a revogabilidade do instituto. Mas como bem é asseverado, algumas situações não-patrimoniais podem ser irrevogáveis, como o reconhecimento de filiação.[5]

Pela natureza de negócio jurídico o testamento só poderá ser exercitado por alguém capaz, ou seja, que tenha a capacidade testamentária. O Código Civil Brasileiro taxa as pessoas que não podem testar em seu artigo 1860, assim, somente essas pessoas que não poderão testar, sendo um rol taxativo, e o descumprimento acarretará abusos de decorrentes de restrições a direitos sem norma que assim legitime.

Art. 1860. Além dos incapazes, não podem testar os que, no ato de fazê-lo, não tiverem pleno discernimento.

Parágrafo único. Podem testar os maiores de 16 anos.

 

Outra situação merecedora de pincela é o momento de perquirição da capacidade para se exercer o direito de testar.

Esta (a capacidade) deve ser percebida no momento da feitura do testamento, “pois a incapacidade superveniente não invalida o testamento eficaz, nem o testamento feito por alguém, enquanto incapaz, valida-se com a superveniência da capacidade. (CC, art. 1.861)”[6]

Perpassada esta abordagem prévia tem-se a explanação sobre o testamento vital e suas peculiaridades.

É importante o marco de que o testamento vital, por mais único que seja, não pode ser retirado do rol dos testamentos, como querem alguns, pois é possui todas as características dos outros testamentos (solenidade, ato de última vontade, gratuidade, unilateralidade), diferenciando-se em seu fundamento existencial, o de aceitar ou não tratamentos medicinais em situação irreversível em vez de disposição patrimonial, em regra.

Como bem conceitua o Mestre Adriano Marteleto Godinho:

O testamento vital consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade.[7]

Assim, além de da diferenciação de seu fundamento há outra peculiaridade inerente a este testamento faltante aos demais – o momento dos efeitos-. O testamento vital ao contrário dos demais testamentos não tem como tempo para produção dos efeitos a morte do testador, mas sim quando este não puder mais manifestar sua vontade, dessarte, os testamentos do Código Civil tem sua eficácia garantida no momento de morte do testador enquanto o testamento vital precisa somente que o testador se encontre impossibilitado de exprimir sua vontade.

Situação notável é que o testamento vital só poderá ser válido se feito por sujeito plenamente capaz, ainda que o Código Civil coloque a idade de 16 anos para os demais testamentos,[8] isso porque se está a dispor do bem da vida, considerado por grande parte doutrinária o maior e mais precioso bem, e, por isso, por cautela justificada, somente àquele que tenha capacidade plena é que será facultado o testamento vital.

A grande discussão acerca do tema não recai sobre o dito acima, mas sobre como se dará formalmente o testamento vital. Isso porque o testamento vital não deixa de seguir as características dos demais testamentos, dentre elas a solenidade, e, assim, caso não tenha uma formalidade, mesmo que mínima, a ser seguida não poderá no plano da validade convalescer.

O Mestre Adriano Marteleto Godinho, em trabalho ímpar, esclarece o assunto: “Para evitar o risco de ser proclamada a invalidade do testamento vital, pode-se entender que, no mínimo, o documento deve cumprir os requisitos de validade da mais “informal” das modalidades ordinárias de testamento – o particular”[9].

Então, para que fosse válido o testamento vital, este, caso escrito a punho, deveria ser lido e assinado por quem escreveu, e, na forma mecânica não poderá conter rasuras ou espaços em branco, ambas às modalidades são necessárias a presença do mínimo de três testemunhas, conforme regulamento legal do testamento particular (art. 1876, CC).

O Advogado Fernando Borges Vieira em notável artigo acrescenta outros requisitos para que se possa falar em testamento vital – abreviar o sofrimento do paciente, garantir a dignidade da pessoa humana e inexistir oportunidade de cura[10], portanto, além de todos aqueles requisitos formais, existem os materiais, que é intrínseco à própria vontade de testar e ao próprio efeito do testamento, e não na forma como essa vontade se dá, destarte, o desrespeito desses requisitos pelo médico poderá tipificar homicídio privilegiado.

Impossível deixar de destacar que não só o Brasil está debatendo sobre o tema, ao contrário, o Brasil está atrasado nesse debate!

Outros países como o Uruguai, Estados Unidos, e vários países da Europa já possibilitam o testamento vital em seus estatutos.

A lei uruguaia 18.473 regulamenta o tema:

Artículo 1º.- Toda persona mayor de edad y psíquicamente apta, en forma voluntaria, consciente y libre, tiene o derecho a oponerse a la aplicacion de tratamientos y procedimientos médicos salvo que con ello afecte o pueda afectar la salud de terceros.

Del mismo modo, tiene derecho de expresar anticipadamente su voluntad en el sentido de oponerse a la futura aplicación de tratamientos y procedimientos médicos que prolonguen su vida em detrimento de la calidad de la misma, si se encontrare enferma de una patología terminal, incurable e irreversible.[11]

 

A segunda parte desse artigo permite de modo expresso o testamento vital, colocando o mesmo quando a doença for terminal, incurável e irreversível. Também dispõe sobre o procedimento a ser seguido, onde será necessário o mínimo de 2 testemunhas, que não pode ser o médico a realizar o tratamento e seus funcionários (ajudantes na operação), deverá, também, ser escrita, podendo ser passada em cartório.

É necessário que a pessoa a fazer tal testamento seja totalmente capaz na feitura do mesmo, e, para retirar esse condão de capacidade somente a unanimidade familiar, no caso de menores somente o tutor poderá fazê-lo.

Nos Estados Unidos também é permitido o testamento vital (living will), sendo necessárias formalidades diversas a depender do Estado Federativo. O Estado de Louisiana (Title 40 Public Health and Safety Code, Part XXIV-A, §1299.58.1) firma o entendimento a respeito do living will afirmando:

The legislature finds that all persons have the fundamental right to control the decisions relating to their own medical care including the decision to have life-sustaining procedures withheld or withdrawn in instances where such person are diagnosed as having a terminal and irreversible condition.[12]

Mais uma vez os termos terminal e irreversível se fazem presentes no texto legal de um país que permite o testamento vital, sendo, como dito acima, necessário que seja perscrutado minuciosamente estas situações  - terminal e irreversível – e que, além disso, que esteja dificultando de modo significativo a vida do sujeito, a ponto de não manifestar sua vontade.

Os legisladores de Louisiana também utilizaram para fins de procedimento que qualquer pessoa adulta com capacidade para tal poderá exercer esse direito e a presença de 2 testemunhas (§1299.58.3), contudo diferenciaram-se no §1299.58.3.A.3 onde autoriza expressamente o testamento vital oral, desde que na presença de 2 testemunhas: “An oral or nonverbal declaration may be made by an adult in the presence of two witness by any nonwritten means of communication at any tim esubsequent to the diagnosis of a terminal and irreversible condition.[13]

Nesse diapasão percebe-se que o Brasil através da resolução que se tratará em tópico próprio está tão somente abrindo os olhos para o que acontece no mundo fático e transportando isso ao mundo jurídico, pois como sabido é o direito nada mais é do que um instrumento para se chegar ao bem comum da sociedade.

  1. TESTAMENTO VITAL E FILTRO PRINCIPIOLÓGICO CONSTITUCIONAL, SOCIOLÓGICO, ALÉM DE FUNDAMENTO EM TRATADO.

Depois de uma abordagem conceitual do testamento vital, seus requisitos, e leis alienígenas que abordam o tema, tem-se um olhar lupado aos fundamentos principiológicos, sociológicos e legais que direcionam o testamento em pauta.

O primeiro princípio a se tratar, por questões que beiram a obviedade, antes mesmo que a autonomia da vontade, é o fundamento do nosso Estado democrático de Direito – p. da Dignidade Humana.

Princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes.”[14]. Desse modo, sempre que possível e não em choque com outros princípios deverá ser respeitado na maior medida, sem que haja restrições absurdas e temerárias.

E o princípio da dignidade da pessoa humana não é exceção, contrariamente, deve ser restringido quando for “extremamente” necessário por se tratar também de fundamento do Estado Democrático de Direito Brasileiro (CF, art. 1º, III).

Assim, por se tratar de direito fundamental é notório que se tenha a aplicação imediata (art. 5, §1º, CF), desse modo, na concepção do ilustre Ingo Wolfgang Sarlet:

Cremos ser possível atribuir ao preceito em exame o efeito de gerar uma presunção em favor da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte que eventual recusa de aplicação, em virtude da ausência de ato concretizador, deverá (por ser excepcional) ser necessariamente fundamentada e justificada.[15]

Ora, ninguém em estado mental perfeito duvida que estar alojado em uma ala hospitalar, mesmo que da melhor qualidade, em Estado terminal, onde respirar não mais é uma dádiva, mas sim um fardo, não está, em absoluto, abarcado pelo princípio da dignidade humana, pelo contrário, está entranhado nos mais profundos afrontamentos ao próprio direito fundamental.

O que ocorre com parte significativa da doutrina é um temor pessoal vinculado com simpatia inerente aos humanos, ou seja, por temerem a morte e o peso que ela carrega, e trocarem de lugar com o sujeito terminal, pensam que continuar em um mundo conhecido, ainda que nessas circunstâncias, é melhor que trilhar em um mundo totalmente desconhecido, ou, ainda, na escuridão eterna.

Deduz, outrossim, que a vida digna pressupõe (pela lógica que carrega o próprio termo) uma morte digna, ou seja, de nada adianta viver abarcado pelo direito fundamental se, no momento em que é preciso de tal, no último momento de sua passagem mundana, joga-se no lixo tudo defendido pela Carta Magma e permitirem uma morte indigna e cruel.

Válido, também o desdobramento desse princípio no art. 5º, III, da CF, onde é expressamente vedado um tratamento desumano a um sujeito a um ser humano, destaca-se que tratamento aqui refere-se tanto na parte comissiva e omissiva que importe em uma conduta que cause dor, sofrimento, tristeza, angústia e desespero. Termina-se com uma frase, com o perdão da indução, é humano deixar um ser humano que está debilitado em uma cama, sem possibilidade de manifestar sua vontade, a sofrer com uma doença terminal, incurável e devastadora, onde, em um ato de vontade, o sofredor já solicitou que não prolongassem sua miséria com aparelhos e máquinas, por simples temor da morte?

Imagina-se que todos sabem a resposta.

Outro princípio severamente restringido pela não adoção do testamento vital é o da liberdade pessoal (art. 5º, II), que na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica –, que o Brasil é signatário, é assim protegido: “Art. 7º 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.”[16]

Logo, o Estado ilegitimamente, voltando aos tempos dos déspotas, restringe um direito (direito, pois não há no Ordenamento qualquer disposição que proíba, e pela existência da própria resolução do Conselho de Medicina, tópico ao qual remete-se o leitor) de modo infundado e abusando da própria soberania estatal e hipossuficiência dos meros mortais.

Ora, se há em peça inequívoca vontade do agente capaz em não ter sua vida prolongada por meios indignos e cruéis, por mais que o objetivo seja bem intencionado, não pode o Estado por mero temor do desconhecido usurpar esse Direito sem a devida fundamentação, e nem sequer com o formalismo adequado (processo legislativo).

Por fim direito muito restringido pela não aceitação do testamento vital é a própria autonomia da vontade. Inegável é que esse direito, talvez, seja o que sofre mais restrições do Estado, mas, como bem disposto acima, em todas essas vezes o é pela proibição expressa de conduta atentatória à lei.

Autonomia nas palavras de Rachel Sztajn é “A atividade e o poder de dar, a si mesmo, regramento definindo os próprios interesses. Autonomia é, portanto, poder exercido com absoluta independência pelo sujeito.”[17]

Desse modo, haja vista o princípio inerente a Administração Pública – da legalidade – não há como se impor pensamento contrário, data venia aos pensadores antagônicos, ao da possibilidade jurídica e moral do testamento vital no nosso Ordenamento Jurídico, sendo direcionado por princípios inseridos na Carta Magma, e, por conseguinte, serem constitucionais na mais pura forma da adjetivação.

Por fim necessária a transcrição do trecho da Rachel, por mais extenso que seja, por delinear perfeitamente a situação:

A capacidade do paciente (agente) tem que ver, pois, como desenvolvimento psíquico individual e não com a faixa etária em que esteja no momento. O paciente pode optar por suportar o sofrimento da moléstia e não o do tratamento, por exemplo; pode preferir morrer a expor a família a presenciar longa agonia que cause dano emocional permanente. [18]

Desse modo, mais do que legítimo o testamento vital no Ordenamento Jurídico Brasileiro. E alegra-se o fato de numerosos juristas e magistrados estarem sendo a favor da possibilidade do testamento vital, deixando os pensadores conservadores em sua minoria merecida.

  1. 3.      O TESTAMENTO VITAL EM FACE DA RESOLUÇÃO 1995/2012

A única certeza que o ser humano possui desde o momento em que nasce é que ninguém vive eternamente e um dia vai, mas ninguém sabe quando nem de que forma vai acontecer. Neste sentido, criou-se um mecanismo que possibilita a escolha, isto é, a manifestação de vontade do sujeito de dispor como sua morte deve ocorrer. O chamado testamento vital, como já exposto anteriormente, trata de uma declaração prévia de vontade do paciente terminal no intuito de assegurar o direito a optar por uma morte digna, ao lado da família e dos amigos, sem sondas, aparelhos e procedimentos medicamentosos que prolonguem o sofrimento quando não existe mais possibilidade de vida.

Adriano Marteleto Godinho[19] dispõe que o testamento vital consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma. Ao contrário dos testamentos em geral, que são atos jurídicos destinados à produção de efeitos post mortem, os testamentos vitais são dirigidos à eficácia jurídica antes da morte do interessado.

Como qualquer outro testamento, excetuando que este aqui trabalhado não tem disposição normativa, precisa do cumprimento de certos pressupostos gerais.  Segundo Rolf Madaleno[20] e Diego Alves Barbosa[21], a falta de norma regulamentadora não desvalida a concepção do testamento vital. Por não vigorar, quanto aos atos jurídicos, o princípio da tipicidade, os particulares têm ampla liberdade para instituir categorias não contempladas em lei, contanto que não venha a afrontar o ordenamento. Devem-se observar as formalidades testamentárias dispostas em nosso Código Civil e analogias aos artigos das leis estrangeiras que já tipificam o testamento vital como: Capacidade, consentimento de forma livre e espontânea, objeto lícito, o devido registro e a revogabilidade a qualquer tempo.

Ocorre que, por conta do objeto do testamento vital, a disposição da vida, abre-se um leque de divergências e debates. Todo nosso ordenamento jurídico foi construído de maneira a preservar a vida, pois esta é o bem jurídico mais importante de todos, deve ser protegida a todo custo, mesmo contra a vontade do sujeito. Por outro lado, vem ganhando força a corrente que defende a autonomia da vontade humana, mitigando o posicionamento anterior, pois o sujeito poderá manifestar seu interesse em morrer dignamente quando a vida não é mais possível.

Assim, primando pela autonomia da vontade humana, o Conselho Federal de Medicina aprovou no dia 30.08.2012 a resolução n°. 1995/12 que permite ao paciente registrar seu testamento vital na ficha médica ou no prontuário. Mesmo a legislação brasileira não dispondo sobre este testamento, alguns médicos e hospitais vêm aceitando-o. Em Belo Horizonte, os hospitais das Clínicas da UFMG, Alberto Cavalcanti, Universitário Risoleta Neves e Paulo de Tarso têm abraçado essa ideia.[22]

O núcleo de referida resolução pode ser sintetizado da seguinte forma: o paciente pode manifestar expressamente se deseja ou não receber cuidados e tratamentos no momento em que não puder mais expressar livre e autonomamente sua vontade; o médico responsável levará em consideração as diretrizes antecipadas de vontade, sendo que o paciente poderá designar um representante para que manifeste sua vontade, e o desejo manifestado por intermédio deste será considerado; o médico deixará de considerar a manifestação de vontade se contrária aos preceitos do Código de Ética Médica; as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares e o médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente; e por fim, não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente e nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao comitê de bioética ou à comissão de ética médica do hospital ou, ainda, aos conselhos regional e federal de medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender que esta medida é necessária e conveniente.[23]

Na prática, o testamento vital com base na resolução 1995 traz diretrizes para a equipe de saúde sobre como o paciente deseja receber atendimento durante seu processo de terminalidade, quando não há possibilidade de decidir por si só. A ideia é respeitar a autonomia do paciente, algo que está sendo muito enfatizado no novo código de ética. Segundo Maria Júlia Kovács, docente de bioética da Faculdade de Psicologia e coordenadora do Laboratório da Morte do Instituto de Psicologia da USP apud Pamella Indaiá, é necessário entender que a missão do profissional da área médica não está restrita apenas a salvar vidas, mas também a fazer que a finalização da vida seja mais digna. “É preciso começar a mudar as mentalidades e a forma como se considera a morte e a morte como final da vida. Não é questão de acelerar o processo, e sim respeitar quando ele se instala.”[24]

Assim se manifesta Ricardo Henriques Pereira Amorim quando diz:

Morrer constitui o ato final da biografia pessoal de cada ser humano e não pode ser separada daquela como algo distinto. Portanto o imperativo de uma vida digna alcança também a morte. Uma vida digna requer uma morte digna. O direito a uma vida humana digna não pode ser truncado com uma morte indigna. O ordenamento jurídico está, por conseguinte, chamado também a concretizar e proteger este ideal da morte digna.[25]

Portanto, esta resolução dispõe sobre as hipóteses que autorizam o testamento vital de modo que protege também uma morte digna. Neste sentido, é importante ressaltar que se deve seguir o que dispõe o testamento vital quando o paciente estiver em estado terminal, isto é, todo aquele cuja doença é irreversível de modo que com ou sem tratamento o paciente chegará ao óbito.  Esta definição é importante, pois a prática da eutanásia, em que se praticam atos para abreviar a vida, é vedada no Brasil.  Assim, quando se fala em disposição da vida ou sobre interrupção ou suspensão do tratamento, está se falando da prática de ortotanásia, reconhecida como lícita pelo Conselho Federal de Medicina no artigo 41 do Código de Ética Médica.

Aqueles que primam pela indisposição da vida defendem que esta é de fato um direito irrenunciável e inviolável, está acima de tudo inclusive da autonomia da vontade. Os doutrinadores lembram a conduta capitulada no artigo 135 do Código Penal sob a rubrica de Omissão de Socorro, que caracteriza como crime deixar de socorrer alguém sem o risco pessoal de fazê-lo. Questionam, deve prevalecer a resolução do Conselho Federal de Medicina ou a Constituição Federal e o Código Penal? Do ponto de vista do conflito aparente de normas é certo que a resolução não se sustenta, pois a resolução sequer força de lei conserva e, mesmo que conservasse, não sobreporia à norma fundamental. É nesse sentido que se poderia apontar na direção da inconstitucionalidade, e, portanto, ilegalidade das orientações do Conselho Federal de Medicina[26]. Entretanto, noutro sentido, a Resolução nº 1.995 do Conselho Federal de Medicina está em vigor e oferece égide aos profissionais da medicina, são regras consideradas como mandatárias para os médicos. Ao desobedecê-las, pode ser interpretado como quebra do Código de Ética Médica, podendo acarretar sérios contratempos, até a cassação da permissão para exercer a medicina.[27]

O certo é que por qualquer lado que se analise a questão haverá divergências. A melhor interpretação seria apoiar os avanços da resolução 1995, de forma a regulamentação da ortotanásia no Código de Ética Médica não abrevia a luta no cuidado dos pacientes terminais, mas certamente reforça o direito social à morte digna e o direito subjetivo à vida, que deve ser gozada de forma especial e harmônica respeitando os limites do corpo, dos sentimentos e do tempo. Esta resolução representa uma evolução no Brasil, pois garante e vincula o médico à vontade do paciente. No entanto, é necessária a edição de uma lei específica, principalmente para guiar o viés jurídico da questão, e para esclarecer o procedimento de registro em cartório, a capacidade do outorgante, a existência ou não de prazo de validade, e a criação de um Registro Nacional de Testamento Vital.

Neste mesmo sentido, se manifesta Aucélio Gusmão[28] quando analisou os dados de uma pesquisa realizada por professores e alunos da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Curso de Medicina, onde se ouviu médicos, advogados e estudantes a propósito de como se sentiriam ante a possibilidade do paciente terminal, sobre os limites dos cuidados médicos que estavam dispostos a se submeter. Essa pesquisa demonstrou o seguinte resultado: 61% levariam em conta e aceitariam o testamento vital.  Em outros países que fizeram pesquisas semelhantes, este nível de aprovação chegou a 90%. A leitura que ele faz é de que os avanços científicos e tecnológicos devem ser adotados com parcimônia, sem exageros, nem tanto nem tão pouco, numa primeira visão avaliativa, até que o assunto esteja pacificado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O testamento vital, sem dúvida alguma, representa um avanço na medicina, contudo, com base em todas as considerações já realizadas, este deve ser aplicado de forma regularizada, de maneira a garantir não só o que dispõe a medicina, mas também a área jurídica. Para Adriano Marteleto Godinho[29] a vida humana não pode ser analisada à margem da discussão sobre a dignidade do indivíduo, muito embora ainda sejam necessárias profundas e urgentes reformas na legislação brasileira, com o objetivo de determinar quais condutas seriam permitidas ou vedadas nessa área. Se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um dever de viver a todo custo, o que significa, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, diante das bases expostas, resta concluir que o testamento vital não somente deve encontrar espaço no ordenamento brasileiro, como urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter.

 

 

 

REFERÊNCIA

 

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AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. O novo Código de Ética Médica e o direito à morte digna. Jus Navigandi, Teresina, ano 15n. 262710 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17381>. Acesso em: 21 de maio 2013.

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LOUSIANA, United States. Title 40 Public Health and Safety Code, Part XXIV-A, §1299.58.1.]

 

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[1] Alunos do 6º período do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

² Professora orientadora da disciplina de Direito de Família e Sucessões.

[2]MADALENO. Rolf. Testamento: expressão de última vontade.

[3] VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 6 ed. p. 175

[4]TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civi, v. 6: Direito das Sucessões.  3 ed.

[5] VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil: direito das sucessões. 6 ed. p. 177

[6] RODRIGUES, Silvio. Direito civil, v. 7: direito das sucessões. 25 ed. p. 150.

[7] GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010.

[8] GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010.

[9] GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010.

[10] VIEIRA. Fernando Borges. Testamento vital e tutela da vida.

[11] URUGUAI. Ley n° 18.473. Voluntad Antecipada. 21 de abril de 2009.

[12] LOUSIANA, United States. Title 40 Public Health and Safety Code, Part XXIV-A, §1299.58.1.

[13] LOUSIANA, United States. Title 40 Public Health and Safety Code, Part XXIV-A, §1299.58.1.

[14] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2 ed. p. 90

[15]  SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. p. 271

[16]  CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: Pacto de San  José da Costa Rica. 1969.

[17] Sztajn, Rachel, 1942- Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista: Universidade Cidade de São Paulo, 2002. p. 25

[18] Sztajn, Rachel, 1942- Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista: Universidade Cidade de São Paulo, 2002. p. 29

[19] GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010.

[20] MADALENO, Rolf. Testamento: Expressão de Última Vontade. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/701>.

[21] BARBOSA, Diego Alves. Testamento Vital. JurisWay. Minas Gerais, 04 março 2013. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=10151>.

[22] JORNAL O TEMPO. Testamento Vital em questão. 2010. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/imprensa/direito-de-familia-na-midia/detalhe/3859>.

[23] VIEIRA. Fernando Borges. Testamento vital e tutela da vida. 2012. Disponível em: <http://alfonsin.com.br/testamento-vital-e-a-tutela-da-vida/>.

[24] INDAIÁ, Pamella. Direito de morrer: Profissionais da medicina e do direito buscam a melhor forma de garantir as vontades do paciente terminal. Rev.MedAtual. Disponível em: <http://www.medatual.com.br/revista/etica_3.html>. Acesso em: 17 de maio 2013.

[25] AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. O novo Código de Ética Médica e o direito à morte digna. Jus Navigandi, Teresina, ano 15n. 262710 set. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17381>.

[26] VIEIRA. Fernando Borges. Testamento vital e tutela da vida. 2012. Disponível em: <http://alfonsin.com.br/testamento-vital-e-a-tutela-da-vida/>.

[27] GUSMÃO, Aucélio. Testamento Vital. Porta Médico, CFM – Conselho Nacional de Medicina. 2013. Disponível em: < http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23585:testamento-vital&catid=46>.

[28] GUSMÃO, Aucélio. Testamento Vital. Porta Médico, CFM – Conselho Nacional de Medicina. 2013. Disponível em: < http://www.portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23585:testamento-vital&catid=46>.

[29] GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010.