ATIVISMO JUDICIAL PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: Elemento integrante ou corpo estranho?[1]

Idbas Ribeiro de Araújo[2]

Natália Andrade Calderoni[3]

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Estado Democrático de Direito e a Tripartição de Poderes; 2. Princípios do Direito Penal e do Processo Penal; 3. Ativismo no Direito Penal; Conclusão; Referências.

 

 

"Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita”.


(Rui Barbosa - Jurista brasileiro)

 

 

RESUMO

Este estudo objetiva uma análise acerca da atuação do Poder Judiciário em matérias de natureza penal, levando-se em consideração as características que permeiam um Estado Democrático de Direito. O ativismo Judicial constitui elemento integrante desse Estado ou devemos considerá-lo como corpo estranho a essa estrutura? Far-se-á uma passagem pelos princípios norteadores do Direito Penal com a finalidade de demonstrar que, o ativismo judicial nesta seara constitui flagrante afronta à Carta Maior, principalmente porque este ramo do direito deve ser encarado como última ratio e, portanto, merecedor de um processo legislativo legítimo permeado por discussões aprofundadas, nos moldes da Constituição cidadã de 1988.   

 

 

Palavras-chaves: Ativismo Judicial – Constituição – Direito Penal

 

INTRODUÇÃO

 

O legislador constituinte estabeleceu no artigo 5°, inciso XXXV da Carta Maior que não devem ser excluídas de apreciação pelo Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direitos, garantindo desta forma o acesso do cidadão à justiça. Parece que tal dispositivo constitucional tem sido levado bastante a sério pela sociedade de um modo geral, avolumando desta forma o número de demandas que chegam todos os dias ao órgão julgador. É possível deduzirmos que essa crescente procura constitui característica de um estágio neoconstitucionalista que, no nosso entendimento, permeia o atual cenário do direito brasileiro, colocando o judiciário como ator principal.

Não sem justificar-se, este Poder julgador parece se agigantar em meio a este cenário, ocupando papéis que, nem sempre, aparentam ser legitimamente seus. Trata-se aqui do ativismo judicial em matéria penal, cujos efeitos desencadeiam uma série de discussões que nem de longe podem passar despercebidas. A essência do Estado Democrático de Direito preconizada pelo legislador constituinte estabelece diretrizes que devem ser observadas por todos os poderes que constituem esse Estado, a saber, Executivo, Legislativo e Judiciário. Neste contexto, faz-se necessário buscarmos explicações pormenorizadas capazes de identificar os limites de atuação do poder Judiciário, sobretudo em matéria penal, vez que, este ramo do direito deve ser utilizado pelo Estado como última ratio, bem como devem ser observadas as funções típicas de cada poder, em respeito à tripartição dos poderes.

Com este trabalho, pretendemos analisar os elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito, bem como analisar práticas ativistas em matéria penal realizadas pelo judiciário, com a finalidade de identificarmos se o ativismo judicial constitui um elemento integrante desse sistema ou se podemos falar de um corpo estranho que ameaça a harmonia entre os poderes, trazendo conseqüências maléficas à conjuntura estabelecida pelo constituinte de 1988. Neste contexto, cabe-nos ainda fazer uma passagem pelos princípios do Direito Penal objetivando justificar a atuação do poder Judiciário nesta área, nos limites constitucionais, não devendo, portanto, existir espaço reservado ao ativismo judicial penal, no Estado Democrático de Direito. 

  1. 1.      ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A TRIPARTIÇÃO DE PODERES

Observa-se o início do Estado Democrático de Direito, segundo RAMOS (2010, p.111), a partir do momento em que há a juridicização do poder, ou seja, o reconhecimento por parte do Estado e dos cidadãos de direitos e deveres, bem como, a institucionalização dos Órgãos de Poder do Estado na Constituição.

A formação do atual Estado Democrático encontra subsídio a partir do século XVIII e início do século XIX com as Revoluções Liberais Americana e Francesa que consolidaram a limitação do poder do Estado em relação ao indivíduo. O Estado Mínimo, como também é chamado o Estado Liberal formado nesta época, surge sob a influência do movimento iluminista que abrigou diversas teorias filosóficas calcadas em direitos como igualdade, liberdade e fraternidade. Nesse contexto, percebia-se uma supremacia do direito privado em detrimento do direito público, e o reconhecimento desses direitos reclamou uma postura negativa do poder do Estado. Já a partir da Revolução Industrial no século XIX, em virtude das grandes mudanças ocorridas no mundo e dos novos anseios sociais, o Estado Social passou a preocupar-se com questões de ordem social e econômica o que levou a ampliação dos direitos fundamentais individuais, consagrando os direitos sociais, e uma postura positiva do Estado que passou a não mais se abster, mas conceder condições dignas de subsistências aos seus cidadãos.

            Dessa maneira, entende-se que a formação do então Estado Democrático de Direito, representa além da somatória dos direitos adquiridos no Estado Liberal e no Estado Social, mas também a busca pela legitimação do poder democrático, bem como a efetivação da participação popular com o fito de atingir um ideal de justiça social. É nesse contexto que se revela a importância do Poder Judiciário, no que tange a fiscalização da efetivação desses direitos reconhecidos na Constituição, e para tanto, em virtude da crescente demanda no Estado Brasileiro tal Poder acaba exercendo uma espécie de “ativismo judicial”.

O Poder Judiciário representa apenas um dos poderes exercidos dentro de um Estado Democrático de Direito. Segundo a obra O Espírito das Leis de Montesquieu, para que um Estado seja exercido com organicidade suas funções devem ser divididas e fiscalizadas entre si, situação corrente no atual Estado Democrático Brasileiro com a previsão constitucional dos poderes Executivo, Legislativo, e Judiciário em que cada um desempenha uma função típica e essencial, e atípica, que consiste em qualquer outra atividade necessária para melhor funcionamento da atividade.

Diante de uma análise acerca daquilo que o Constituinte chamou de Estado Democrático de Direito, é possível perceber que um de seus mais importantes sustentáculos é a tripartição dos poderes, responsável pela “identificação das principais funções a serem desempenhadas pelo Estado, para a consecução de seus fins” (RAMOS, 2010, p. 112). Trata-se aqui de um sistema de freios e contrapesos responsável por inibir quaisquer abusos capazes de ferir os preceitos constitucionais. Ainda segundo RAMOS (2010, p. 116), “sempre haverá um núcleo essencial da função que não é passível de ser exercido senão pelo Poder competente.” Tem-se daí que não cabe ao órgão jurisdicional adentrar em funções sobre as quais o legislador confiou o “núcleo essencial” exclusivamente a outro Poder, assim como, não compete aos demais poderes adotarem com essencialidade a função de garantir a efetividade dos resultados enunciados nas normas de direito substancial.

Segundo MORAES (2010, p. 415) “não existirá, pois, um Estado Democrático de Direito sem que haja Poderes de Estado harmônicos entre si, pois a derrocada de um, fatalmente, acarretará a supressão dos demais, com o retorno do arbítrio e da ditadura.” Ainda segundo RAMOS (2010, p. 411) citando CANOTILHO e MOREIRA, “um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional. Tem-se daí que a lealdade constitucional mencionada pelos autores não devem permitir uma “guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira.” (grifo nosso)

O tema em análise assume tamanha importância que, segundo o princípio da indelegabilidade de atribuições, estas funções não podem ser delegadas a outro poder, seja pelo próprio poder, seja pelo constituinte derivado. Segundo LENZA (2003, p. 182), tal delegação só é permitida quando expressamente prevista pelo constituinte originário, sobretudo, porque a separação dos poderes foi elevada à categoria de cláusula pétrea, conforme podemos observar no artigo 60, §4°, III da Constituição Federal. Se nem mesmo o constituinte derivado pode atentar contra a tripartição dos poderes, e por conseqüência, contra o Estado Democrático de Direito, a intromissão de um poder em outro de forma espontânea, a exemplo do ativismo judicial praticado pelo Judiciário, com a expansão deliberada de sua fronteira de atuação, não coaduna com a vontade do legislador originário, sobretudo no Direito de última ratio, qual seja, o Direito Penal.

Esclarecida a relação existente entre o Estado Democrático de Direito e a atuação dos Poderes do Estado harmoniosamente, de acordo com seus núcleos essenciais, trataremos agora de compreender a sutileza com que devem ser tratadas as matérias de ordem penal, carecedoras de aprofundadas discussões, de forma tal, a não permitir o ativismo do judiciário, sobretudo, ao interpretar o Texto Maior e dele extrair penas privativas de liberdade. Esse Direito de última ratio não deve ser construído por quem não tem incumbência constitucional para fazê-lo, sobretudo quando, quem se auto legitima, o faz com o intuito de penalizar o sujeito, pois, segundo BARATTA (2002, p. 35), “a pena não é o único meio de defesa social; antes, o maior esforço da sociedade deve ser colocado na prevenção do delito, através do melhoramento e desenvolvimento das condições de vida social.” Esse melhoramento advém das problemáticas discutidas exaustivamente quando da criação da lei penal, como forma de legitimar um verdadeiro processo legislativo cuja função essencial não compete ao órgão julgador.

  1. 2.      PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL E DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O período do Iluminismo com as diversas teorias filosóficas que permearam seu tempo trouxe um caráter menos bárbaro ao Direito Penal. A substituição de penas cruéis contra a vida e do processo penal inquisitório, para um processo penal misto, bem como a reivindicação dos direitos de liberdade e igualdade orientaram o legislador a idealizar um Direito Penal mais garantista e de menor intervenção, com reconhecimento constitucional e fundamentos para aplicação da pena nos limites da culpabilidade do agente (BITENCOURT, 2011, p.40). Os princípios que serão mencionados a seguir figuram como garantias do cidadão perante o poder punitivo Estatal, e encontram amparo na Constituição Federal de 1988. Trata-se aqui de um conglomerado de diretrizes que impedem a atuação na esfera penal de maneira desordenada, descabida, sem que haja efetivamente a necessidade de tutelar um bem jurídico por não mais existirem alternativas capazes de atender os anseios sociais.

O Princípio da legalidade representa o controle à aplicação do poder punitivo pelo Estado, pois este só poderá aplicar a pena ao infrator, na medida em que houver anterior previsão de que o fato praticado por ele é um fato típico, antijurídico e culpável, bem como, haja prévia cominação punitiva. Tal princípio encontra amparo constitucional no art. 5°, inciso XXXIX da CF/88. Embora as leis possam conter certo grau de abstração é imperativo na esfera penal a necessidade de leis claras e precisas, do contrário, a ambiguidade e indeterminação não protegerá o cidadão das arbitrariedades do ius puniendi estatal.

  O Princípio da intervenção mínima ou ultima ratio descreve que a criminalização de uma conduta só se justifica se tal medida constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Somente quando a proteção em outras esferas jurídicas não for eficaz, o direito penal deverá entrar em cena de forma subsidiária. No mesmo contexto, outros princípios do direito penal além de se ocuparem da proteção do bem jurídico, tutelam o direito do cidadão de ver limitado o poder punitivo Estatal, de maneira a garantir o direito à dignidade do indivíduo, a saber, princípio da fragmentariedade, da culpabilidade, da humanidade, da adequação social, da ofensividade, dentre outros.

Sob outro aspecto, mas, ainda na esfera penal, o Direito Processual Penal que representa a garantia para a aplicação do Direito Penal brasileiro, desde que haja o respeito da forma do processo pelo julgador (Teoria de Goldschimidt), encontra diversas garantias insculpidas na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, firmados pelo Brasil sob a figura de princípios (LIMA, 2011, p. 7), a saber: o Princípio da presunção de inocência ou não culpabilidade que consiste no direito de não ser declarado culpado antes de sentença transitada em julgado; Princípio do contraditório que possibilita à outra parte se pronunciar no processo oferecendo reação, manifestação ou contrariedade à manifestação da parte contrária; Principio da publicidade que garante o acesso a todos os atos processuais praticados possibilitando maior fiscalização do poder judiciário pelas partes e por outros interessados, garantindo dessa maneira uma postura democrática do Estado para com o cidadão; Princípio da busca pela verdade; da ampla defesa; do juiz natural, dentre outros.

Ressalte-se que tais limites e garantias constitucionais outrora citados são a base para o exercício e aplicação do Direito Penal. Se combinarmos estes princípios com o sistema de tripartição de poderes verifica-se a importância de cada poder exercer o núcleo essencial para o qual foi designado. A razão de existir do poder Judiciário é a prática da jurisdição, cuja função no Direito Penal é a de tutela dos bens jurídicos. Ao criar nova norma mediante interpretação, desprezando os trâmites formais, o juiz não só exerce função atípica como tende a concentrar o núcleo essencial de legislar ao judiciário, algo repelido pelo próprio Ordenamento Magno. Esta é a problemática enfrentada pelo ativismo judicial, que quando praticado na seara penal, torna-se duramente criticável à luz dos princípios supracitados.

  1. 3.      ATIVISMO JUDICIAL EM MATÉRIA PENAL

Segundo Elival Ramos, a prática do ativismo judicial ocorre quando o Poder Judiciário exerce atividades que vão além da sua função essencial, a de julgar, de forma a descaracterizar a função primeira do Poder e atentar contra o núcleo fundante do Estado Democrático de Direito.

Entende-se por ativismo judicial a ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento principalmente da função legislativa, mas, também, da função administrativa, e até mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício desabrido da legiferação [...] e sim, da descaracterização típica do Poder Judiciário. (Ramos, 2010, p. 116, 117)

Essa falsa judicialização consiste em resoluções de questões largamente políticas e sociais, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal, sem que estas passem pelo crivo das discussões nas casas legislativas, bem como pela apreciação da sociedade civil. Essa prática do judiciário ganhou força com a redemocratização do país, com o advento da Constituição de 1988, cujos direitos passaram a ser buscados pela sociedade junto ao órgão jurisdicional. Neste contexto, a criação do Ministério Público e a sua exclusividade na titularidade da ação penal também exigiram do Judiciário maior atuação, em função da larga constitucionalização de direitos presentes no Estado brasileiro, e, portanto, passíveis de serem apreciados pelo órgão julgador. Para BARROSO[5], “na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial”. Embora a judicialização na esfera penal possa se justificar em determinadas situações, não há que se confundir com o ativismo judicial (falsa judicialização) que, ainda segundo BARROSO, embora frequentem os mesmos lugares, não tem a mesma origem. Enquanto a primeira decorre do modelo constitucional adotado, este deriva de deliberada vontade política do poder Judiciário em aplicar penas oriundas de interpretações com caráter largamente punitivo. Enquanto o legislador, pautado nos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, delimitou a tutela de bens jurídicos através do Direito Penal, como última ratio, o Judiciário se comporta de forma a trazer sérios riscos para a legitimidade democrática, politizando de forma indevida a justiça penal, e, saindo dos limites institucionais preconizados pelo ordenamento constitucional e consequentemente penal.     

  1. 4.      CONCLUSÃO

Em meio às normas penais oriundas do poder Judiciário, faz-se necessário identificar o ativismo judicial como corpo estranho ao Estado Democrático de Direito, sobretudo porque atinge frontalmente garantias básicas insculpidas categoricamente no Texto Maior, a exemplo da liberdade, da vida, dentre tantas outras. Permitir deliberada atuação do órgão julgador na esfera penal significa trazer para o Estado brasileiro, nos moldes do artigo 1° da Constituição, elemento novo que afronta a separação dos poderes e coloca o indivíduo às margens da tão almejada dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf. Acesso em: 10 de outubro de 2011.

BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm> Consulta em 10 out. 2011.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal, vol.1. Niterói, RJ: Impetus, 2011.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2010.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2007.



[1] Paper apresentado à disciplina Processo Penal, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Aluno do 6° periodo do Curso de Direito, da UNDB.

[3] Aluna do 6° periodo do Curso de Direito, da UNDB.

[4] Professor Doutorando, orientador.

[5] Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf. Acesso em: 10 de outubro de 2011.