ATIVISMO JUDICIAL NA SÚMULA 719[1] DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: Quem nos protege da “motivação idônea”?

Laíse Marinho Lima[2]

Sumário: Introdução; 1 Ativismo judicial em matéria penal: sempre uma péssima opção; 2 A imposição do regime de cumprimento mais severo: um atentado aos direitos fundamentais do condenado; 3 A inaceitável amplitude da expressão “motivação idônea” em matéria penal; Conclusão. Referências.

Uma vez perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante ‘a priori’, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas...

           Agostinho Ramalho Marques Neto 

RESUMO

 

Objetiva-se com este trabalho analisar a súmula 719 editada pelo STF que diz “A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.” Nesse sentido, faremos uma abordagem sobre ativismo judicial e sua aplicabilidade na seara penal. Iremos desdobrar sobre as implicações dessa atuação do judiciário e os motivos que tornam tal ativismo uma opção indesejável no âmbito penal. Serão analisados alguns direitos do condenado, frente aos efeitos da súmula 719, já que o artigo 33, § 2º, “c” do Código Penal diz que o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.  E por fim, refutaremos a perigosa amplitude da expressão “motivação idônea” em matéria penal, tendo em vista a exigência de normas taxativas, afinal, o vínculo do juiz à mandamentos claros e definidos, constitui uma auto-limitação ao poder punitivo do Estado.

Palavras-chave: Ativismo judicial. Súmula 719 STF. Motivação idônea.

INTRODUÇÃO

A súmula nº 719 do Supremo Tribunal Federal - STF faz referência ao artigo 33, § 2º, alínea “c” do Código Penal que estabelece que “o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro), poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto”. A palavra “poderá” passa a ideia de discricionariedade conferida ao juiz, que assim, pode determinar o cumprimento da pena em regime aberto (menos severo), ou – como costumeiramente se faz - determinar um regime mais gravoso.

Chamado a se manifestar algumas vezes sobre a questão (HC 69929, HC 70650, HC 70998, HC 70904, HC 70784, HC 70662, HC 71190, HC 72381, HC 72106, HC 72589, HC 72937, HC 73068, HC 73174, HC 74896, HC 77613) a Corte Suprema decidiu editar a citada súmula de número 719 em atitude claramente ativista.

Não andou bem neste ponto. Confirmando o brocardo jurídico “Ativismo judicial é igual colesterol: tem do bom e tem do ruim”, essa súmula admite a imposição de um regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permite, transgredindo assim, princípios básicos do direito penal e ferindo direitos fundamentais do condenado.

No intuito de diminuir as demandas repetitivas que chegam à Suprema Corte os ministros têm assumido uma postura cada vez mais ativista (o que não representa em si um problema), utilizando costumeiramente o poder sumular que lhes é atribuído pela Constituição. O problema surge quando os ministros desconsideram os bens que estão em jogo quando se trata de matéria penal e processual penal, editando súmulas sem a preocupação que o tema exige. Neste sentido, foi aprovada em setembro de2003 asúmula nº 719 do Supremo Tribunal Federal, sobre a qual teceremos algumas considerações.

1 ATIVISMO JUDICIAL EM MATÉRIA PENAL: Sempre uma péssima opção

 

O ativismo judicial é um fenômeno complexo que pode ser entendido numa acepção ampla ou numa acepção mais estrita; ser elogiado ou energicamente criticado.

Nos “sistemas de comon law se adota uma conceituação ampla de ativismo judicial, que abarca desde o uso da interpretação teleológica, de sentido evolutivo, ou de integração de lacunas [...] até as situações [...] em que os limites impostos pelo legislador são claramente ultrapassados” (RAMOS, 2010, p. 110).

Por esclarecimento, neste trabalho o ativismo judicial deve ser entendido como o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos) (RAMOS, 2010, p. 129). Estando associado à ideia de exorbitância de competência por parte do Poder Judiciário (LEAL, 2010, p. 24).

Como afirma o professor Elival da Silva Ramos - não há necessariamente um sentido negativo na expressão “ativismo”. Quer dizer, o “ativismo” não é por sua natureza algo negativo. No direito civil a atitude ativista dos magistrados tem representado significativo avanço para a compatibilização do direito à realidade.

Enquanto no direito privado é plenamente cabível (até desejável) que o juiz adote uma postura mais ativa na busca da “verdade”, em matéria penal isso representa uma verdadeira afronta à imparcialidade do julgador e, por consequência aos direitos do acusado. Tal se dá pela diferença substancial que separa os bens tutelados pelo direito civil (em regra disponíveis) e pelo direito penal (direitos indisponíveis por excelência).

O ativismo judicial é fruto dos poderes instrutórios do juiz pensados para o processo civil (onde caem bem) e, despreocupadamente transplantados para o processo penal. Porém, agindo assim, parte-se do “erro de pensar que podem ser transmitidas e aplicadas no processo penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irmã mais velha, cujas mangas se dobram, paga caber na irmã preterida” (LOPES JR. 2008, p. 32).

Em matéria penal quanto mais inerte permanecer o juiz, mais se aproximará da função que lhe é atribuída, bem como da realização da justiça. Vale dizer: quanto mais ativista, menos imparcial. Até porque, como ensina Paulo Rangel, nenhum juiz vai buscar provas para inocentar o réu, pois, se quisesse inocentá-lo, faria por falta de provas (RANGEL, 2010, p. 24). Portanto, se não houver provas suficientes (por qualquer motivo) deve o réu ser declarado inocente. Não condiz com a ordem jurídica e com os mandamentos constitucionais jogar sobre os ombros do acusado o peso da ineficiência do sistema.

As posturas judiciais ativas em matéria penal “extrapolam as funções institucionais do julgador, afetando sua imparcialidade e sendo potencialmente danosa à dignidade humana e desequilibradora de um processo penal justo: os poderes ativos do juiz em sede de persecução criminal” (TEBET, 2009, p. 260). A mera previsão legal (ou sumular) desses poderes revela direta violação ao princípio acusatório e da inércia da jurisdição penal. São dispositivos típicos de um processo penal de emergência, de um sistema inquisitório, como bem colocado por Jacinto Coutinho.[3]

 

2 A IMPOSIÇÃO DO REGIME DE CUMPRIMENTO MAIS SEVERO: Um atentado aos direitos do condenado

 

O artigo 33, § 2º, “c” do Código Penal diz que o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. O verbo utilizado (poderá) propiciou a aplicação tanto do regime inicial fechado como do regime aberto para o mesmo crime. Tentando solucionar a questão o Supremo Tribunal Federal editou a famigerada súmula 719. Por esta súmula, os ministros da Suprema Corte – convencidos de que estavam praticando ato de solidariedade jurídica – passaram a exigir “motivação idônea” para aplicação de regime mais severo do que a pena aplicada permite. Quanta bondade!

Ocorre, porém, que em hipótese alguma se justifica a imposição de regime de cumprimento mais severo do que e a pena aplicada permitir. Vejamos porquê.

Em primeiro lugar é preciso dizer que, quando o citado dispositivo afirma que o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, poderá desde o início cumpri-la em regime aberto, passa a falsa impressão de que se trata de discricionariedade do juiz e não, de direito do réu. Aqui reside o erro.

Esse artigo jamais poderia ser interpretado no sentido de permitir a imposição de regime mais gravoso do que a lei permite. Tal dispositivo foi criado com a finalidade de evitar o aprisionamento daqueles que foram condenados a penas de curta duração, evitando com isso, o convívio promíscuo e estigmatizante do cárcere. Trata-se, portanto, de direito público subjetivo do condenado e, nunca, de discricionariedade conferida ao julgador. Assim, dando uma interpretação conforme a Constituição, o verbo poderá” deve ser entendido como “deverá.”

É preciso considerar também que “o legislador estabeleceu a quantidade da pena como principal critério orientador do regime prisional” (MARCÃO, 2009, p. 115). O que é correto, por se tratar de um critério objetivo e claro (como tem que ser em Direito Penal).

Como atores de um direito penal crítico e contemporâneo devemos ter a sensibilidade de perceber que o parágrafo terceiro do artigo 33 do Código Penal, ao fazer referência ao artigo 59 do mesmo diploma, transporta para a determinação do regime de cumprimento da pena, todos os inconvenientes do Direito Penal do Autor. Neste, pune-se o autor e não o fato criminoso, “pune-se o ladrão e não o furto, o assassino e não apenas o homicídio” (ZAFFARONI, 2003, p. 125). Isso é mais grave do que o transplante de categorias do processo civil para o processo penal.

Não é demais lembrar também que a liberdade é a regra, seu cerceamento é a exceção. Desse modo, constitui direito subjetivo do condenado a determinação do regime aberto, sendo a interpretação mais benéfica ao réu e a que mais se coaduna com os mandamentos constitucionais e com o principio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Para demonstrar a impropriedade do regime mais severo, poderíamos, ainda, como aquele juiz da cidade de Palmas/TO, invocar inúmeros fundamentos: “os ensinamento de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural” [4], o Minimalismo Penal, a sabedoria dos gregos, a concepção de direito de Ronald Dworkin, uma dezena de tratados internacionais, uma interpretação sistemática e mais humana das normas penais, as funções da pena, os princípios aqui elencados e também os esquecidos. Poderíamos alertar sobre os riscos de se colocar um réu primário em tempo integral numa penitenciária. Poderíamos criticar os artigos 33 e 59 do Código Penal, que incentivam a dupla aplicação do direito penal do inimigo. Poderíamos admitir nossa mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Em fim, são tantos os argumentos que, diante do texto da súmula e da falta de espaço, simplesmente diremos uma vez mais que a súmula 719 do Supremo Tribunal Federal é inconstitucional. E toda inconstitucionalidade (ainda que sumulada) deve ser rechaçada.

3 A INACEITÁVEL AMPLITUDE DA EXPRESSÃO “MOTIVAÇÃO IDÔNEA” EM MATÉRIA PENAL

 

Na esteira do importante questionamento feito por Agostinho Ramalho M. Neto[5] podemos nos perguntar qual o fundamento para se retirar o poder de decidir sobre qual o regime de cumprimento de pena de bases objetivas para colocá-lo ao arbítrio do julgador. Ou em outras palavras, quem nos protege da “idoneidade” das decisões judiciais?

Afinal, que é “motivação idônea”?

É o que o juiz quiser que seja.

Temos aqui um cheque em branco a ser preenchido pelo julgador quando for decidir sobre o regime inicial de cumprimento da pena.

É de conhecimento geral no mundo jurídico que o principio da taxatividade exige que as normas penais sejam precisas, claras, taxativas, de modo que não pairem dúvidas quanto a sua aplicação ao caso concreto. Segundo Luiz R. Prado, tem esse princípio, antes de tudo, uma função garantista, “pois o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante, constitui uma auto-limitação do poder punitivo judiciário” (PRADO, 2010, p. 114).

Por atingir diretamente a liberdade e a dignidade do condenado tal decisão deveria recair em critérios palpáveis, objetivos e previamente definidos, respeitando-se assim às regras do devido processo; “regras que realmente estejam conforme os valores constitucionais” (LOPES JR, 2008, p. 52). Pois, “considerando que risco, violência e insegurança sempre existirão, é sempre melhor risco com garantias processuais do que risco com autoritarismo” (LOPES JR, 2008, p. 53).

Portanto, deve-se evitar, sobretudo em matéria penal, a existência de termos ambíguos e demasiadamente genéricos. Nestes, o juiz fica autorizado, por uma flexibilidade normativa, a um julgamento discricionário, o que é vedado em matéria penal. Naqueles, porque necessariamente passíveis de tradução, fica o juiz obrigado a exercício incompatível, nem sempre realizável, com a dinâmica do julgamento penal, de qualquer modo configurando cerceamento de defesa (RODRIGUES, 1996, p. 4).

Isso porque, as expressões genéricas ferem a igualdade, mesmo a formal, perante a lei, ofendem o princípio básico do Estado de Direito, violam o princípio da reserva legal e a [6]ampla defesa de previsão constitucional, impedindo assim, “uma verdadeira aplicação justa da lei penal” (RODRIGUES, 1996, p. 1). Maculando as normas penais que as contenham, de insuperável inconstitucionalidade.

CONCLUSÃO

 

Ao concluir este trabalho os autores esperam ter contribuído para a elucidação de algumas questões sobre o fenômeno do ativismo judicial e, principalmente, para uma mudança de atitude dos atores jurídicos frente ao “direito posto”. Lembramos que este trabalho não é um fim em si mesmo, nem pode (infelizmente) resolver o problema da profunda e ignorada desigualdade existente no processo penal brasileiro. É antes uma pequena contribuição em forma de provocação (e também um convite) a que façamos a pergunta que tanto impacto causou no grande professor Agostinho Ramalho: “Por que o Direito é esse e não outro? [7]

Agindo assim, estaremos aptos a perceber que a falência do Direito Penal e a Inquisitoriedade do Processo Penal não nasceram do acaso e do espontâneo, mas sim de uma construção histórico-ditatorial e repressora, que hoje, muito se alarga e se difunde camuflada, sorrateira e, infelizmente, legitimada por todos aqueles que simplesmente absorvem os normas penais e as interpretações equivocadas e antidemocráticas dos nossos tribunais superiores.

Para encerrar, diremos uma vez mais (mais por convicção e teimosia do que por necessidade) que a súmula 719 do Supremo Tribunal Federal é uma aberrante inconstitucionalidade, e, toda inconstitucionalidade (ainda que sumulada) deve ser questionada, rejeitada, banida da ordem jurídica.

 

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Subsecretaria de edições técnicas. Brasília: 2008.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de publicações, 2011.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mettere Il pubblico ministero al suo posto – ed anche il giudice. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM): São Paulo, ano 17, n. 200, p. 23-24, julho 2009.

LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010.

LOPES JR. Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I, 5. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011.

MARCÃO, Renato. Curso de execução penal. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: o juiz cidadão. In: Revista da ANAMATRA, São Paulo, nº 21, 1994.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 17. ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

RODRIGUES, Eduardo Silveira Melo. A linguagem do direito penal: uma abordagem crítica. In. Revista Justitia. nº. 58. São Paulo: 1996.

PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

TEBET, Diogo. Processo penal e ativismo judicial: supremo tribunal federal e a proteção à dignidade humana. In: Revista eletrônica de direito processual. Periódico semestral da pós-graduação stricto sensu em direito processual da UERJ. Rio de Janeiro: 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. v.1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.



[1] SÚMULA 719: A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.

[2] Acadêmica do 8º período de Direito na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB ([email protected])

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mettere Il pubblico ministero al suo posto – ed anche il giudice. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM): São Paulo, ano 17, n. 200, p. 23-24, julho 2009.

[4] Referência à sentença proferida pelo Juiz de Direito Rafael Gonçalves de Paula nos autos de nº 124/03 – 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO. Em setembro de 2003.

[5] Quem nos protege da bondade dos bons? O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: o juiz cidadão. In: Revista da ANAMATRA, São Paulo, nº 21, 1994.

 

[7] Em palestra proferida em agosto de 2009 no auditório da UNDB, o professor Agostinho Ramalho Marques Neto compartilhou com os ouvintes, que, em seu primeiro dia de aula na Faculdade de Direito, o professor escreveu essa pergunta no quadro negro.