Danilo Lemos de Miranda

1 INTRODUÇÃO; 2 A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES NA ATUAL DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL; 3 O ATIVISMO JUDICIAL DENTRO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO; 4 PARÂMETROS DE ATUAÇÃO JUDICIAL FRENTE AOS PODERES POLÍTICOS; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.

RESUMO

Trata-se de artigo com o objetivo de apontar os limites jurídico-constitucionais à atuação do Poder Judiciário frente ao Executivo e ao Legislativo diante de crises políticas. Para isso, são abordados os aspectos constitucionais da tripartição dos Poderes; para, em seguida, ser produzido um estudo a respeito do ativismo judicial dentro do estado democrático de direito; e, por fim, estabelecer parâmetros de observação obrigatória na atuação do Poder Judiciário quando implica interferência na organização dos demais Poderes da República.

1 INTRODUÇÃO

O objetivo principal desse artigo é apontar os limites jurídico-constitucionais à interferência do Poder Judiciário na atuação dos demais Poderes da República no contexto de crise política. Assim, questiona-se: quais os parâmetros jurídico-constitucionais que devem ser observados pelo Poder Judiciário quando a sua atuação implicar em interferência na esfera de atribuição dos Poderes Legislativo e Executivo no contexto de crise política? Parte-se, pois, da premissa de que esses limites existem e, mesmo no contexto de crise de representatividade, devem ser respeitados no estado democrático de direito.

A Constituição Federal de 1988 consagra dentro dos princípios fundamentais da República a tripartição dos Poderes, preconizando uma atuação independente e harmônica entre eles. No próprio texto constitucional, são previstas diversas hipóteses de intromissões das funções estatais umas nas outras. Entretanto, em momentos de crise política e, notadamente, de insatisfação dos eleitores com os seus eleitos, observa-se um anseio maior da população pela atuação do Poder Judiciário nas esferas que, ordinariamente, deveriam competir aos Poderes Legislativo e Executivo, especificamente na elaboração e execução de políticas públicas e na sanção dos representantes políticos em caso de cometimento de infrações penais, político-administrativas ou mesmo cíveis.

Nesse sentido, o artigo organiza-se em três capítulos com objetivos específicos e todos voltados à solução do problema principal. No primeiro, verifica-se o desenho constitucional da separação dos Poderes na atual democracia constitucional; no segundo, identifica-se o conceito de ativismo judicial a partir do estado democrático de direito; e, no último, definem-se os parâmetros que devem ser observados na autuação do Poder Judiciário na esfera de atribuição dos demais Poderes a partir dos comandos jurídico-constitucionais correspondentes.

 

2 A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES NA ATUAL DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL

 

Nos termos do art. 2º da Constituição Federal brasileira, “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 107), “esse é um princípio geral do Direito Constitucional que a Constituição inscreve como um dos princípios fundamentais que ela adota”. Ou seja, trata-se de princípio inerente ao constitucionalismo contemporâneo, elevado à posição de princípio fundamental na República Federativa do Brasil.

Segundo Pedro Vieira Abramovay (2012, p. 38-39), o princípio da separação dos Poderes ainda constitui “elemento-chave” na concepção contemporânea de democracia e deve permitir uma “relação dinâmica e aberta” entre os órgãos do Estado, permitindo-se a governabilidade do país e garantindo-se os direitos fundamentais dos indivíduos.

Georg Jellinek (2004, p. 536-537), sem ignorar que nenhuma divisão das funções estatais atenderá com perfeição às exigências de sua atuação, defende a sua essencialidade em razão da complexidade do próprio Estado. De fato, o Estado foi concebido como instituto de importância fundamental na organização social da vida humana, sendo-lhe atribuída uma quantidade significativa de Poderes para nela interferir, desde a fixação de comportamentos e de acessos a determinados bens até a possibilidade de privação da liberdade de alguns sujeitos (a depender do Estado, até a privação da vida é possível). Daí porque a organização e a separação dos poderes é consequência dessa complexidade.

Para Hans Kelsen (2000, p. 385-386), apesar de a separação dos Poderes pressupor a distinção entre três funções estatais, a prática revela que o Estado possui apenas duas funções básicas: “a criação e a aplicação do Direito”. Em outras palavras, a tripartição dos Poderes parte de um pressuposto equivocado, pois as três funções estatais básicas (executar, legislar e julgar) decorrem de apenas duas e, em regra, correspondem a ambas ao mesmo tempo.

Realmente, as funções de executar e julgar referem-se, essencialmente, à aplicação da lei sob perspectivas distintas; e a função de legislar, principalmente, à criação da norma jurídica. Por outro lado, se a norma jurídica “é um conjunto de palavras que têm um significado” (BOBBIO, 2001, p. 74), o Estado também cria Direito ao aplicá-la (o executor e o julgador, sem dúvidas, precisam interpretar a lei para aplicá-la); e, do mesmo modo, dada a organização hierarquizada do ordenamento jurídico (KELSEN, 2000, p. 181), o Estado precisa aplicar o correspondente fundamento de validade ao produzir uma nova lei.

Nada obstante, ainda que sejam apenas duas as funções estatais, certo é que a teoria geral do Estado moldou-se tendo em vista o seu desdobramento em três atividades essenciais: a de criar leis dentro do Estado; a de administrar o Estado a partir dessas leis; e a de solucionar conflitos dentro do Estado a partir dessas leis. Ainda que tudo redunde na criação e na aplicação do Direito, há evidentes desdobramentos que justificaram a tripartição, ainda que para fins meramente organizacionais.

Portanto, observa-se que a histórica tripartição dos poderes continua sendo característica típica da atual democracia constitucional. No caso brasileiro, possui a qualidade de princípio republicano fundamental que deve guiar o próprio funcionamento do Estado e a sua relação com os jurisdicionados.

 

3 O ATIVISMO JUDICIAL DENTRO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

Segundo José Luis Bolsan de Morais e Lenio Luiz Streck (2003, p. 163), a clássica separação dos poderes tem se alterado durante o curso da história e, notadamente no estado democrático de direito após a segunda guerra mundial, a esfera de tensão que era típica do Poder Legislativo e do Poder Executivo tem se deslocado para o Poder Judiciário, especialmente em países que adotam constituições dirigentes. Com isso, observa-se que o Poder Judiciário acabou assumindo uma posição mais ativa dentro da definição das políticas estatais que, evidentemente, não pode caracterizar-se pela ausência de parâmetros normativos sob pena de desvirtuar o próprio espírito democrático.

Elival da Silva Ramos (2015, p. 131), numa visão bastante crítica do fenômeno estudado, conceitua ativismo judicial como o "o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar". Ou seja, segundo o autor, ativismo judicial seria a atuação judicial além dos limites constitucionais.

Na realidade, observa-se um movimento majoritário da doutrina especializada contrário ao ativismo judicial, isso é, à atuação do Poder Judiciário além do que o texto constitucional deseja. Por exemplo, segundo Hans Kelsen (2000, p. 385), “a revisão judicial de legislação é uma transgressão evidente do princípio da separação de poderes”. Esse posicionamento lastreia-se também no temor de que um “superpoder” (no caso, o Poder Judiciário) poderia levar a situações de abuso, evidentemente lesivas e indesejadas num estado democrático de direito.

Contudo, a realidade demonstra que a clássica separação dos Poderes não mais atende às necessidades atuais da sociedade, cada vez mais complexas. Nesse sentido, de acordo com Luigi Ferrajoli (2013, p. 395), a separação dos Poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário não mais atende às necessidades atuais e, como uma das medidas de solução à atual crise de representatividade da democracia constitucional, deveria ser substituída por uma divisão entre funções e instituições de governo e de garantias:

[...] as primeiras investidas de funções políticas de escolha e de inovações em razão daquilo que chamei de “esfera do decidível”, e, por isso, legitimada pela representação popular; as segundas voltadas à garantia dos direitos fundamentais, quer dizer, daquilo que chamei de “esfera do não decidível” e, por isso, legitimada, pela aplicação da lei, seja ordinária ou constitucional.

Notadamente em tempos de crise política – ou, em outras palavras, de crise dos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo) –, cria-se no Poder Judiciário um caminho para a sua superação. A perda da legitimidade popular dos governantes em momentos como esses leva a população a cobrar dos magistrados uma postura mais ativa na solução de seus anseios. Daí porque, apesar de indesejado em tempos de normalidade, não se pode ignorar o ativismo judicial, atualmente, como resposta viável e necessária em determinados momentos de turbulência estatal.

 

4 PARÂMETROS DE ATUAÇÃO JUDICIAL FRENTE AOS PODERES POLÍTICOS

 

Comumente, relaciona-se o ativismo judicial à judicialização de políticas públicas, em conflitos jurídicos de jurisdicionados frente ao Estado pela garantia de direitos individuais e, principalmente, sociais. Nesses casos, acontece de o Poder Judiciário determinar a realização de políticas públicas que, a princípio, deveriam estar a cargo dos Poderes Políticos.

Recentemente, outra vertente do ativismo judicial tem chamado atenção: as intervenções do Poder Judiciário no próprio funcionamento dos Poderes Políticos, especialmente mediante o afastamento de autoridades de cúpula envolvidas em infrações penais ou político-administrativas. Sem ignorar o ativismo judicial como expediente plausível em momentos de crise, devem ser questionados os parâmetros que autorizam intervenções dessa ordem sem que se transbordem em abusos.

Na realidade, a solução para esse problema tangencia outro questionamento: a crise de representatividade e o anseio popular por uma participação judicial mais ativa diante das crises políticas alteram os limites jurídico-constitucionais à separação dos Poderes? Não que casuísmos justifiquem interpretações distintas da norma jurídica em momentos diferentes, mas não há como negar que momentos de crises demandam soluções estatais diversas dos momentos de normalidade.

Separando as funções estatais em apenas duas (“a criação e a aplicação do Direito”), Hans Kelsen (2000, p. 386) entende que não é possível definir fronteiras entre elas. Em outras palavras, não é possível delimitar – ao menos não com precisão – os limites à separação dos Poderes, pois relativamente normal que as atividades do Estado criem e apliquem as normas jurídicas a um só tempo. Barreiras rígidas desse tipo acabariam por inviabilizar a própria atividade estatal.

Por outro lado, não se pode olvidar que a Constituição, como o Direito em geral, é forma de limitação do poder estatal, ou seja, de definição dos limites de sua atuação (FERREIRA FILHO, 2009, p. 16-17). Ainda que essa perspectiva de limitação tenha mais em vista o poder do Estado diante do cidadão, pode e deve ser utilizada para a limitação dos poderes entre os órgãos estatais. Assim, os parâmetros buscados devem ser encontrados dentro do próprio texto constitucional.

Nesse sentido, o respeito à harmonia e à independência dos Poderes, ainda que em tempos de crise política, representa barreira intransponível à intervenção do Poder Judiciário no Executivo e no Legislativo. Não significa dizer que essa ingerência não é possível, até porque ela é prevista expressamente pelo texto constitucional em alguns casos (como no julgamento dos governantes e parlamentares por crimes comuns), mas deve estar guiada – de modo constante – por finalidades democrático-constitucionais.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O princípio da separação dos Poderes tem por objetivo limitar o poder dentro do próprio Estado, ou seja, na relação entre seus próprios órgãos. Embora secular, continua revestido de relevância teórica no atual estágio da democracia contemporânea e, no caso brasileiro, ocupa a posição de princípio fundamental da República.

Por outro lado, a tradicional tripartição com suas tensões concentradas no Poder Legislativo ou no Poder Executivo tem dado lugar a cobranças maiores em relação ao Poder Judiciário, notadamente em Estados que adotam constituições programáticas e em momentos de crise política, de perda de representatividade popular dos governantes. Isso tem gerado uma atuação mais ativa dos magistrados que, por vezes, tem extrapolado os limites de suas atribuições no que se chama de ativismo judicial.

Embora criticado por boa parte da doutrina especializada, o ativismo judicial é uma realidade contemporânea e, em momentos de crises institucionais, serve como caminho viável para a superação das instabilidades. Além da judicialização de políticas públicas, o ativismo judicial tem se manifestado por meio da interferência do Poder Judiciário na própria organização dos Poderes Políticos. Nesse caso, a atuação dos magistrados deve estar balizada sempre pelo texto constitucional e, apesar de difícil a definição exata de limites, sempre que o exceder deve ser repelido, por mais crítica que seja a crise política eventualmente verificada.

 

REFERÊNCIAS

 

ABRAMOVAY, Pedro Vieira. Separação dos poderes e medidas provisórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. O futuro da democracia na Europa. Direitos e poderes na economia global. Revista Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijuí, ano 1, nº 2, jul./dez. 2013. p. 386-399. Disponível em: Acesso em: 18 abr. 2017.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

JELLINEK, Georg. Teoría general Del Estado. Tradução de Fernando de los Ríos. México: FCE, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Tradução de Carlos Borges. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MORAIS, José Luís Bolzan de; STRECK. Ciência Política e teoria geral do Estado. 3ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.