RELIGIÃO COMO FENOMENO SOCIO ANTROPOLÓGICO

Embora possamos tomar a religião como um fenômeno sócio antropológico no processo histórico, nunca é demais lembrar que esta não está dissociada de uma imposição, seja, violenta (com a destruição física, política e cultural dos povos originários) como presenciamos na historiografia das chamadas colonizações européias no continente americano e africano, seja na sua imposição cultural sucessória do processo de colonização.

Assim ao trabalharmos este tema necessitaríamos de muito mais tempo para um aprofundamento do que dispomos e obviamente um mergulho em universo quase sempre indisponível sobre a resistência dos povos a aculturação seja meramente religiosa, seja a outros aspectos sociopolíticos.

 “Religião (em latim: religare, significando religação com o divino) é um conjunto de sistemas culturais e de crenças, além de visões de mundo, que estabelece os símbolos que relacionam a humanidade com a espiritualidade e os valores morais. Muitas religiões têm narrativas, símbolos, tradições e histórias sagradas que se destinam a dar sentido à vida ou explicar a sua origem e do universo. As religiões tendem a derivar a moralidade, a ética, as leis religiosas ou um estilo de vida preferido de suas ideias sobre o cosmos e a natureza humana.”[i]

Ao nos debruçarmos sobre o paradigma da religião encontraremos uma falsa convicção de consensualidade imposta pela secularização desta, principalmente no tocante a religião católica e protestante e desconhecemos ou não contabilizamos a esta secularização as diversas manifestações de ceticismo no seio da sociedade; esta sendo desconsiderada ou marcadamente renegada como pelo exemplo histórico da “Inquisição” ou pelo racionalismo e empirismo da Idade Média ou ainda pela não presença religiosa de parte da sociedade que simplesmente a ignora.

Assim vemos sendo dispensado o tratamento universalizante da “RELIGIÃO” esta que deriva do termo latino "Re-Ligare", que significa "religação" com o divino. Que por definição engloba necessariamente qualquer forma de aspecto místico e religioso, que tenham como característica fundamental um conteúdo Metafísico, ou seja, de além do mundo físico.

Encontraremos ainda na literatura sobre religiosidade a inerência do ser humano a esta, o que minimamente não obedece a nenhum critério justificativo desta afirmação, principalmente se tomarmos como exemplo que afirmações neste sentido observam apenas o posicionamento de uma suposta maioria auto-declarável de que praticantes de religião e desconsideram as pessoas que não declaram religiosidade, e que ainda parte destas declarações são divergentes da realidade vivida e que a própria situação de ter que declarar a religiosidade impõem ao entrevistado – quando entrevistado, visto que parte destes dados são obtidos por amostragem – a condição de constrangimento dentro de uma sociedade historicamente marcada pelos seus vínculos religiosos.

Levando em conta esta literatura podemos concluir inicialmente que o conceito de universalidade religiosa é falho e a sua própria definição de religião adéqua-se as mais diversas situações e muitas vezes classificando fé e crença dentro de um mesmo conceito. Porém não podemos desprezar que esta como fenômeno se impôs, como poderemos observar que parte significativa dos movimentos humanos tiveram a religião como impulsor, diversas guerras, tiveram legitimação religiosa, estruturas sociais foram definidas com base em religiões e grande parte do conhecimento científico, "filosófico" e artístico tiveram como vetores os grupos religiosos, que durante a maior parte da história da humanidade recente estiveram vinculados ao poder político e social.

Este aspecto é que caracteriza a religião como um fenômeno sócio antropológico independentemente da sua conceituação e mesmo da sua aceitação, fazendo com que a sua intervenção e interação na vida social apresentem-se como conquistas irreversíveis.

Esta interação social da religião que tem inicio no Estado Romano apossa-se de todos os Estados europeus na Idade Média e conseqüentemente se amplia ferozmente aos países invadidos/conquistados nos continentes americano e africano. Esta interação a bem dizer não significa a participação do todo da sociedade e sim do Estado, basicamente a nobreza, visto que os camponeses nem mesmo a religião dos nobres tinham aceso.

Na Idade Moderna na Europa surge um movimento de ruptura entre o Estado e a religião, com o racionalismo e a ciência, e encontraremos a religião ganhando o seu componente mais importante que é à aculturação dos povos, principalmente posterior a reforma protestante e à aculturação das religiões ao novo modelo de sociedade, adaptando-se dos aparelhos estatais e ao sistema econômico vigente, locupetrando-se das lacunas sociais e impondo-se como alternativa principalmente na ocupação dos serviços sociais, educação e saúde. Paralelo a isto encontramos nos estados colônias a imposição da fé religiosa dos seus colonizadores a ferro e fogo, contradizendo a própria realidade vivida nos seus países de origem.

Este processo de transformação passa a conceber a religião dentro de um aspecto público aonde ela não mais se restringe ao clero e aos estados, mas, através da imposição religiosa do Estado/Clero passa a ser pública, passando o Estado a punir violentamente aqueles que não reconhece-se esta, através das: guerras santas, inquisição, escravização, etc.

SEPARAÇÃO JURIDICA ESTADO E RELIGIÃO

A separação jurídica do estado religião para o ocidente é marcada mais explicitamente com a Revolução Francesa e se espalha pelo continente europeu com a privatização da religião e seu declínio na intervenção do Estado. Esta separação se desenvolve ainda dentro de um processo de secularização concebido como um processo teleológico universal.

“Embora a diferenciação das esferas sociais certamente constitua uma dimensão fundamental da ordem social moderna, não pode ser reduzida a um movimento de simples retração do religioso. Vários autores têm demonstrado que a secularização é apenas um dos elementos de um processo histórico amplo, que inclui a emergência de um mercado impessoal, de um Estado, mais distante da regulação moral, de uma vida intelectual que dispensa a idéia de Deus e de uma experiência de individualização urbana mais escolarizada e autônoma. O viés do legado protestante implícito no paradigma da secularização faz da emergência da sociedade civil uma extensão da lógica secularizadora do próprio protestantismo.” 

Assim a lógica intrínseca na separação jurídica entre Estado e religião está a nova ordem contida na revolução burguesa de estado e a sua necessidade de individualização do homem.

Para tanto era necessário garantir simultaneamente duas grandes conquistas a laicidade do estado e a liberdade de cada um, tornando assim a religião de domínio público.

“Para garantir simultaneamente a liberdade de todos e a liberdade de cada um, a laicidade distingue e separa domínio público, onde exerce a cidadania e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais). Pertencendo a todos, o espaço público é indivisível: nenhum cidadão ou grupo de cidadãos deve impor as suas convicções aos outros. Simetricamente, o Estado laico proíbe-se de intervir nas formas de organização coletiva (partidos, igrejas, associações, etc,) às quais qualquer cidadão pode aderir e que revelam do direito privado.”[ii]

Estas conquistas por sua vez dão vazão ao surgimento de duas novas correntes de pensamento dentro da esfera religiosa a liberdade e multiculturalismo. Estas novas correntes a princípio permite a coexistência de individualização da convicção religiosa e  de uma proteção às confissões minoritárias; embora este não tenha sido devidamente desenvolvido e mesmo cerceado tanto política como socialmente em muitos estados, que mesmo se auto-intitulando laico, preconizam discriminações por terem uma hegemonia religiosa, transformando assim o espaço público da religião em espaço privado.

SECULARIZAÇÃO

Através do processo de secularização – flexibilização dos dogmas religiosos e proliferação da fé acatando uma maior presença no seio popular ou seja da presença de leigos – pessoas dispensadas dos votos monásticos – a religião passa a impor a sua hegemonia através da tradição.

Para tanto, assistimos à assimilação de outras culturas e mesmo de cultos, rituais e de representantes de outras culturas convertidas ao cristianismo, o que contribuíram decisivamente na sua proliferação e popularização. Este processo não acontece isoladamente, passando mesmo a ser uma política desenvolvida pela Igreja Católica, a incorporação/assimilação de outras culturas e suas referências religiosas, que através da secularização e tradicionalismo, constituíram-se em hegemonia no ocidente.

Neste sentido o processo hegemonizante religioso tem sua presença marcada pelo tradicionalismo, imposto por uma série de fatos como: ignorância, desprezo a busca da verdade e acondicionamento cultural, que transforma a fé na transcendência ou seja, em algo exterior ao mundo da experiência ou mesmo o cotidiano humano.

Cabe aqui explicitarmos o conceito de tradição:

Tradição: continuidade, permanência de uma doutrina, visão de mundo, ou conjunto de valores de uma sociedade, grupo social ou escola de pensamento, que se mantêm vivos pela transmissão sucessiva através de seus membros (ex.: a tradição metafísica ocidental). A filosofia hermenêutica de H.G. Gadamer procura recuperar um sentido positivo para tradição, contra as criticas habituais a seu caráter conservador feitas sobretudo pelo iluminismo e pelo racionalismo critico. Para Gadamer, a tradição se mantêm por ser cultivada, aceita e justificada, e portanto continua a ter sentido, não sendo necessariamente transmitida de forma dogmática e nem sempre servindo aos interesses dos dominantes. No fundo, segundo essa visão, seria tão legitimo aceitar a tradição justificadamente quanto questioná-la. Além disso, a tradição seria a garantia da consciência histórica de uma cultura.”[iii]  

Dentro deste aspecto do tradicionalismo encontramos a imposição cultural que é conseqüência desta mesma tradição. Imposição que é administrada e aplicada através da doutrinação infantil, da convivência social aonde se é imposto uma política cultural baseada na religiosidade, como: festas religiosas, currículos escolares com conteúdos religiosos, legislação baseada na moral religiosa, etc., contradizendo a separação, Estado X religião da Idade Moderna.

Neste aspecto poderemos observar que mesmo com a suposta separação entre Estado e religião, os aspectos morais religiosos são predominantes no interior do Estado e muitas vezes se impõem e contradizem os princípios de laicidade do Estado, como podemos presenciar em dois casos recentes da historiografia do legislativo brasileiro, quanto ao aborto e união homossexual; estas duas questões tiveram a interferência direta das religiões condenando estas através da argumentação unicamente baseada na religiosidade, mostrando-se assim que o estado privado da religiosidade não deixa de imperar sobre o estado público.

O PRIVADO INTEGRANDO O PÚBLICO

O aspecto privado religioso através da imposição cultural, do tradicionalismo, da falsa laicidade do Estado e da doutrinação se apossa do aspecto publico, formando assim um falso Estado religioso, aonde a crença na transcendência se impõe conformando um universo único, propicio a proliferação religiosa das mais diversas matizes e que alguns ousam chamar de multiculturalismo.

“Habermas aponta que a partir do século XVIII emerge uma outra distinção, representada pela esfera das pessoas privadas reunidas em um público, a esfera publica burguesa ou sociedade civil, que tem como conseqüência mais expressiva a interiorização da família no espaço privado. Ainda que, segundo o autor, a sociedade de massa tenha fragilizado os fundamentos da esfera pública, turvando as distinções entre o público e privado, parece-me que se tomarmos essa concepção tripartite – Estado/sociedade/esfera privada – como intrínseca à ordem social moderna o problema das relações religião e sociedade pode ser proposto em termos analíticos mais adequados e não-normativos: em vez de admitir como pressuposto a privatização da prática religiosa – seu confinamento à esfera familiar -, trata-se de identificar as configurações especificas que as formas religiosas assumem em cada sociedade em função de seus modos particulares de produzir historicamente a diferenciação dessas esferas e articulá-las.”[iv]

 

Como podemos observar encontraremos a partir da fragilização dos fundamentos da esfera pública e a complacência do Estado o espaço necessário para a afirmação da condição de sociedade religiosa, seja na sua dualidade de ação – afirmando-se laico e impondo-se como referendo da religião hegemônica, seja na própria instituição de espaços físicos, educacionais, de políticas e ações sociais e até feriados em nome da religião hegemônica.

Concomitantemente esta imposição fragiliza e mesmo impede à liberdade de consciência visto que paralelo a associação Estado e religião hegemônica desenvolve-se um processo de idiotização da sociedade e flexibilização e ausência de uma educação que capacite o ser humano a uma tomada de consciência do seu cotidiano e da sociedade que o circunda.

Este processo não apenas fragiliza a sociedade como um todo, como também dá lugar ao florescimento das mais diversas formas religiosas em um ato permissivo de pluralismo religioso, aonde a busca pelo transcendentalismo substitui uma tomada de consciência da realidade vivida e corrobora na busca constante da felicidade espiritual individualizada.

PLURALISMO RELIGIOSO

“A literatura sobre o campo religioso brasileiro tem demonstrado que as fronteiras institucionais que distinguem as religiões não-católicas entre si resultam de um processo histórico de alianças e conflitos entre atores religiosos e não-religiosos. Nesse processo, as formas as religiosas foram se constituindo e se modificando em função de um jogo de forças que opôs a eficácia simbólica daquilo que contextualmente fosse definido como mágico e a legitimidade social do que fosse assumido como religioso. Assim, embora as análises antropológicas mais recentes tendam a fixar essas cosmovisões e seus rituais como inerentes às identidades religiosas – supondo implicitamente que essas práticas já nasceram como “religiões” definidas -, pode-se perceber a partir dos dados históricos apresentados pela literatura que as particularidades dos contextos locais, as personalidades e as trajetórias dos agentes mediadores que procuram institucionalizar certas práticas e os limites colocados pelas diretrizes jurídico-políticas do Estado promoveram arranjos muitas vezes difíceis de enquadrar nas tipologias religiosas produzidas pelos modelos acadêmicos, como veremos adiante.”[v]  

Dentro deste contexto encontraremos a constituição de um pluralismo religioso brasileiro ainda sobre a ótica da religião hegemônica, como observamos na transcrição abaixo:

“...as particularidades da formação do Estado e da sociedade no Brasil construíram o pluralismo religioso a partir da repressão médico-legal a práticas percebidas como mágicas, ameaçadoras da moralidade pública. Dessa forma, o modo como hoje se apresentam as “alternativas” religiosas resulta em grande parte de um processo de codificação de práticas no qual médiuns e pais e mães-de-santo levaram em conta os constrangimentos de um quadro jurídico-legal em transformação, os consensos historicamente construídos sobre o que oferece perigo e o que pode ser aceito como pratica religiosa, os repertórios de práticas pessoais construídos ao longo de suas trajetórias de vida e as expectativas do público e dos concorrentes. Configuram-se assim “estilos” de culto derivados de determinadas combinações dos códigos culturais disponíveis. Procuraremos demonstrar a seguir que as noções de “fronteiras’” ou “alternativas” religiosas perdem muito de sua consistência empírica quando analisadas desse ponto de vista”[vi] 

Encontramos assim, a construção do pluralismo religioso condicionado a hegemonia religiosa perpetrada pela Igreja Católica e a conivência do Estado, ainda sobre as influências eurocêntristas de mundo, ou seja, a necessidade de europeização vista por nós imputa a sociedade conceitos de uma cultura eurocêntrica, aonde religião e Estado se complementam na descaracterização de uma sociedade multicultural e miscigenada.

“Vimos que no processo formação do espaço público brasileiro apresentar-se como religião foi a única forma de institucionalização possível para a expressão de práticas que associavam formas heteróclitas de cura e rituais centrados no tanse.”[vii]  

É neste contexto que o Estado brasileiro constrói um arcabouço jurídico-legal definindo o “religioso” em referência ao católico.

“Nesse sentido, a “crença em Deus”, unidade mínima do que pode ser aceito como  

“religião”, é um referente universal de todas as práticas: “Todas as religiões são boas porque todas conduzem a Deus”, diz um lema kardecista – ou, diríamos nós, todas as religiões são percebidas porque supõem a crença em Deus.”[viii]

Encontramos aqui a justificação necessária para o abandono da laicidade do Estado e sua regulação religiosa, podemos dizer que passa o Estado a normatizar o funcionamento das religiões dentro de leis que se mantêm fiel ao conceito hegemônico de religião, ou seja, o Estado passa a se comportar dentro de uma permissividade para outros segmentos religiosos dentro do seu conceito hegemônico de religião ou religiosidade, como analisaremos abaixo:

“...desde os primeiros momentos da constituição da república o combate a feitiçaria e ao curandeirismo fez parte do processo de estabelecimento de uma ordem pública moderna. A jovem republica tinha diante de si a difícil tarefa de transformar as naturezas brutas de negros, mulatos e índios (e imigrantes) em uma só sociedade civil, a qual se fundamentaria sobretudo na produção de sujeitos passíveis de serem submetidos à normatividade das leis e na moralidade da religião (cristã). Tratou-se então de absorver e reinterpretar o conhecimento antropológico disponível para discernir o mais claramente possível aqueles que poderiam ser objetos da normatividade legal: feiticeiros, curandeiros, charlatões, exploradores da credulidade pública ou simples vitimas. (...) tal exercício classificatório foi amplamente empreendido pela jurisprudência brasileira, que, auxiliada pelas autoridades policiais, esquadrinhou os espaços públicos e privados para que os hábitos da população fossem conhecidos, classificados e disciplinados ou tipificados criminalmente.”[ix]

Encontramos no Brasil a prerrogativa de laicidade do Estado limitada a separação dos atos civis, dos atos religiosos (batismo, matrimônio, sepultamento, educação, saúde etc.), porém, a luta entre laicização e secularização do Estado é permanente como poderemos observar nas intervenções da Igreja Católica através da institucionalização do ensino religioso, na indissolubilidade do matrimônio e mais recentemente na luta contra o aborto e a união civil entre homossexuais.

A contradição da laicidade do Estado brasileiro pode ser notado logo no preâmbulo da Constituição Federal e nas constituições estaduais ao expressar a invocação de proteção de Deus e que é justificado e mesmo foi julgado pelo STF – Supremo Tribunal Federal, como algo sedimentado na cultura, matéria de longa data pacificada na jurisprudência e na doutrina constitucionais brasileiras.

Encontraremos especificamente a luta contra a laicidade do Estado brasileiro na polêmica do ensino religioso.

“De inicio, a primeira Constituição republicana vedou o ensino nas escolas públicas, bem como qualquer subvenção de estabelecimentos de ensino confessionais, Porém, nas constituições que se seguiram (1934, 1937, 1946 e 1967), houve uma tendência à atenuação da laicidade estatal, passando-se a admitir certas contribuições entre o Estado e institutos educacionais confessionais, com possibilidade de reconhecimento de filantropia e com concessão de bolsas de estudos. O abrandamento foi justificado pela necessidade de proporcionar às famílias menos abastadas a opção por um ensino confessional sem que o Estado o oferecesse diretamente. Os mesmos textos constitucionais passaram a assegurar (1934, 1946, 1967) ou a de facultar (1937) a oferta da disciplina ensino religioso nos currículos das escolas públicas, sempre com matricula ou freqüência facultativa. Porém, é preciso atentar para o fato de muitas normas constitucionais, inclusive Cartas inteiras, terem sido meramente simbólicas ou, até mesmo, perniciosas. Nessa ótica, é muito pertinente colacionar o rigoroso estudo empreendido pelo brasilianista Keneth Serbin. Analisando as relações Estado/Igreja Católica no Brasil no período 1930-1964, o autor concluiu que se processou uma intensa simbiose entre Estado e Igreja Católica. Em uma via, a Igreja fornecia o aparato moral necessário à sustentação dos governos, e, como retorno, recebia fundos públicos que garantiam a sua hegemonia. Os fundos destinavam-se a três áreas preferenciais: a) educação (colégios católicos, universidades pontifícias e seminários); b) assistência social, inclusive no âmbito da saúde (Santas Casas); c) cultura. Ademais, as isenções e imunidades fiscais não eram concedidas mediante requisitos objetivos, mas, segundo padrões que ofereciam ampla margem interpretativa. No campo educacional, Serbin detectou que tais benefícios foram ligados à capacidade de preparação moral dos estudantes e, por conseguinte, privilegiaram os educandários católicos. Nas primeiras fases do regime militar, o pacto moral continuou, sendo atingindo apenas no processo de abertura. Com a Constituição de 1988, houve objetivação de critérios para o reconhecimento de instituições filantrópicas e de assistência social e conseqüente perda do espaço católico nos três campos referidos. Como exemplo das reações aos elos entre Igreja e Estado na educação pública, pode-se citar os pleitos do Movimento Escola Nova. FISCHMANN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a reflexão sobre o Estado laico, a escola pública e a proteção do direito à liberdade de crença e culto. ComCiência: Revista Eletrônica  de Jornalismo Cientifico, São Paulo, v. 56, p. 1–7, 2004. FISCHMANN, Roseli. Ainda o ensino religioso em escolas públicas: subsídios para a elaboração de memória sobre o tema. FISCHMANN, Roseli. Revista Contemporânea de Educação. Rio de Janeiro, v. 2, p. 1-10, 2006. SERBIN, Keneth. The catholic church, religious pluralism, and democracy in Brazil. [S.I.]: The Helen Kellog Institute for international Studies, 1999. (Working Paper 263). SERBI, Kenneth. Church-State reciprocity in conteporary Brazil: the convening of International Eucaristic Congresso f 1955 in Rio de Janeiro. [S.I.]: The Helen Institute for International Studies, 1996. (working Paper 229).”[x]      

A atual Constituição Federal prevê a oferta de disciplina de ensino religioso,através de matricula facultativa, o que também não elimina a polêmica e mesmo a contradição em um Estado laico.

“As polêmicas podem ser facilmente ilustradas pelo histórico da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que, originalmente, definira que a disciplina deveria ser oferecida “sem ônus para os cofres públicos”, de modo confessional (separação por grupos religiosos, cada qual sendo educado por autoridade de sua denominação) ou interconfessional (a partir de pontos de acordo entre diversas entidades religiosas). O impacto causado pelo texto, especialmente quanto a desoneração do Estado, levou à aprovação, no ano seguinte, de nova redação, suprimindo a ausência de ônus aos cofres públicos, vedando o proselitismo e delegando aos sistemas de educação a tarefa de estabelecer os conteúdos e as qualificações profissionais exigidas, desde que ouvida entidade civil especifica. CURY, Carlos Roberto Jamil. Ensino religioso e  escola pública: o retorno de uma polemica recorrente. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n.27, p.183-191, set./out.nov./dez. 2004. FISCHMANN, Roseli. Escolas ... op. Cit. Há inúmeras matérias na mídia impressa e eletrônica sobre o ensino religioso nas escolas públicas e nas universidades. Por exemplo: MARTINS, Elisa; FRANÇA, Valéria. Rosinha contra Darwin: Governo do Rio de Janeiro instituiu aulas que questionam a evolução das espécies. Revista Época, Rio de Janeiro, n. 314, 24 maio, 2002. MINC, Carlos. Só faltam a inquisição e o óleo fervente. O Globo, Rio de Janeiro, 01 abril, 2005. PEREIRA, Aldo. Subversão teocrática. Folha de São Paulo, São Paulo, 04 dez. 2006. FISCHMANN, Roseli. Ameaça ao Estado laico. Folha de São Paulo, 14 nov. 2006. Editorial. Religião e Estado. Folha de São Paulo, 15 maio, 2004.[xi]

Dentro do até aqui apresentado, podemos verificar a impossibilidade de existência de um Estado laico brasileiro, que nega-se a romper com o hegemonismo da Igreja Católica e que cria condições factuais para a existência de uma multiplicidade religiosa, contando que encontrem-se dentro de princípios sanitários e morais, sobre um pretexto de uma liberdade religiosa inexistente e que é forjada através da alienação da sociedade.

LIBERDADE RELIGIOSA

“A liberdade religiosa foi tradicionalmente definida como um direito negativo, Isto é, um direito cuja essência é a exclusão de intervenção estatal em seu gozo, com a criação de um ambiente de autonomia para o sujeito titular. Outrossim, enquanto direito (quase em todas as jurisdições) de alçada constitucional, a liberdade religiosa constitui igualmente um “compromisso jurídico-moral” do Estado, que não deve apenas respeitar (negativamente) o direito dos cidadãos e das coletividades de cidadãos, mas também como princípio.”[xii]  

Ao tomarmos a definição acima como correta, já nos encontraremos em um caminho sem volta aonde fica estabelecido a obrigatoriedade de todo e qualquer cidadão professa uma religião. Obviamente, é de conhecimento geral das perseguições, assassinatos e um sem número de atrocidades cometidas principalmente pela Igreja Católica na imposição de sua fé religiosa e que a não aceitação desta inevitavelmente traria o desaparecimento dos que se opusessem a esta.

Esta imposição religiosa, não limitou-se apenas ao aspecto físico, aonde a tortura e assassinatos foram medidas comuns, como também, intelectual, assim sendo, a Inquisição teve um papel ímpar na história mundial de censor do que poderia ser escrito e lido, o que obviamente se reflete até aos nossos dias aonde não se busca literatura que trate de uma laicidade ou agnosticismo de Estado, ou mesmo um aprofundamento dos estudos de Epicuro, que foi considerado durante muito tempo como um ateu e execrado pela a Igreja Católica.

O Estado brasileiro através do Direito Civil, reconhece as “organizações religiosa” com a obtenção de personalidade jurídica, de direito privado e delas exige-se apenas:

“[...] o minimo de dados que assegurem ao Estado que tal grupo ou organização tem efetivamente natureza religiosa e que seus fins também são religiosos, assim para [dar a] conhecer os possíveis interlocutores genuínos de cada instituição, caso o Estado pretenda dialogar com os representantes oficiais de cada grupo”.[xiii]

Constitucionalmente encontraremos o direito a liberdade religiosa coletiva no Art. 5º. VI da vigente Constituição Federal ao assegurar “o livre exercício dos cultos religiosos” e garantir “na forma da lei a proteção os locais de culto e as suas liturgias”. Este direito também é reconhecido pela ONU – Organização das Nações Unidas, aonde se pretende como meta o respeito aos direitos humanos e às liberdade fundamentais de todos, explicito no seu artigo 18 no texto do Direito Humanitário, aprovado em 10 de dezembro de 1948.

“Todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela pratica pelo culto e pelos ritos”.[xiv]

A Declaração Universal estabelece ainda a obrigação estatal para suas garantias através do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966 e ratificado pelo Brasil em 2 de janeiro de 1992.

“1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha e a liberdade de professa sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou adotar a religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita a penas de limitações previstas em leis e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais – e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar aos filhos a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.”[xv]

Alguns aspectos mostram-se carentes de uma observação sejam por seus aspectos transcendentais, sejam pela sua imposição familiar ou doutrinação infantil, seja pela sua própria institucionalização.

Dentro do aspecto transcendental nos fica a dúvida de como definir o que é ou não religioso e como caracterizar este, entendendo que não é possível empiricamente a constatação destes fatos, por outro lado, quais os limites do que é a própria religião e sua interferência no Estado.

Assistimos por outro lado a regulação da doutrinação infantil como forma de liberdade dos pais ou tutores de educarem seus filhos, menosprezando obviamente a própria liberdade dos filhos e as condições do tradicionalismo intrínseco especialmente a cultura brasileira. E, por último e não menos preocupante a inexistência de parâmetros mínimos para a própria instituição das organizações religiosas que com esta ausência são transformadas em verdadeiras corporações que beneficiadas com isenções e repasses governamentais, terminam por perder o seu caráter “religioso” e transformam-se em verdadeiros apêndices de um sistema econômico e político.

Estes aspectos necessitariam ser solucionados no interior do Estado brasileiro, para que garantissem minimamente o seu perfil laico e independente dos fatores religiosos.

Porém, se nos debruçarmos historicamente constataremos a impossibilidade de separação entre estes pelas suas implicações intrínsecas que nos trouxeram a constituição do estado atual que vivemos.

O processo de institucionalização da religião no Brasil, passa inicialmente pelo período da República velha, aonde o Estado dissolve o vínculo com a Igreja e suprimi as subvenções  oficiais; em seguida no processo repressivo de 1920 à 1940, este passa ao reconhecimento do estatuto religioso, reconhecendo inclusive as praticas espíritas, sendo que estas conviveram com um processo de disputa judicial na comprovação do não ferimento da ordem pública, que se deu mais tarde com a descriminalização da mediunidade e das praticas curativas a ela associadas.

“Portanto, a noção genérica de “religião” a partir da qual se garantiram legalmente a liberdade religiosa e a expressão dos cultos teve como matriz o intenso debate jurídico sobre a melhor maneira de regular bens, as obras e as formas de associação da Igreja Católica. Na formulação de Giumberlli, as disputas em torno da liberdade religiosa que constituíram o espaço civil republica nunca versaram sobre “qual religião teria liberdade, mas quase sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião [católica]”, uma vez que não havia então qualquer outro culto estabelecido, nem se concebiam outras praticas populares como religiosas. A Igreja Católica temia a influência do positivismo e das ideologias secularizantes e agnósticas sobre a nova constitucionalidade do regime republicano. Assim, começou desde cedo a se mover em diversas frentes, procurando influenciar por meios pensantes, os escalões governamentais e as elites por meio da criação de colégios católicos. Em sua tentativa de “cristianizar” a Constituição, a Igreja apoiava-se no exemplo norte-america: “Como aos americanos, nos assiste a nós o ‘jus’ de considerar o principio cristão como elemento essencial e fundamental do direito brasileiro, escrevia em 1931 o pensador católico Tristão de Athayde, citando Rui Barbosa”.[xvi]

Poderemos agora, compreender a imposição religiosa e a consolidação da hegemonia da Igreja Católica dentro do Estado brasileiro, mesmo após a implantação do regime republicano nascido com fortes influências do positivismo de Augusto Comte.

Neste sentido, ao invés de liberdade religiosa, o Estado brasileiro construiu todo um processo de tolerância com outras crenças/religiões sobre a hegemonia da Igreja Católica, mesmo assim esta tolerância apenas se dá em torno do campo jurídico-legal, dentro do conceito de um direito subjetivo do ser humano. Este direito, justificado, não apenas, como uma derivação necessária da liberdade de consciência, mas também, e principalmente, justificada nos acordos e pactos internacionais ratificados pelo Brasil diante da ONU.

            Esta situação é constatada no processo histórico de luta dos centros espíritas, umbandistas e terreiros de candomblé na sua consolidação como religiões, qual necessitaram de criar “estrategicamente diversos arranjos rituais que funcionassem para o tenso equilíbrio entre aquilo que devia ser evitado para não sofrer acusações que pudessem cair na órbita do poder público”.[xvii]

Este processo, no entanto, que perpassou por várias décadas foram acompanhados pelas “diversas correntes das ciências em formação no período – antropologia, a medicina e a psicologia – que se ocuparam do problema das práticas mágicas”[xviii]. No caso do espiritismo , foi por muito tempo tratado pelas teorias psiquiátricas e psicológicas como fenômeno patológico ou hipnótico; no caso das práticas categorizadas genericamente como “macumba” o debate se desenvolveu preferencialmente no campo das ciências jurídicas, pois, estas foram relacionadas às praticas de feitiçaria e eram percebidos como formas de possessão demoníaca e associadas a bruxaria conforme o modelo europeu, condenada pela Inquisição. “Dessa forma, matriz cristã contribuiu para a condenação moral desse tipo deformado e invertido de transe, concebido como uma ruptura patológica da individualidade humana”.[xix]

“... Na chave da ciência, se o transe espírita podia ser concebido como fenômeno universal da mente humana – o hipnotismo – operado por mãos incompetentes, incorrendo no crime de exercício ilegal da medicina (charlatanismo), a “possessão” era da ordem das patologias raciais, podendo levar à degeneração e ao crime. Na chave da religião, se o espiritismo pôde ser aceito como crença foi porque ao atender pobers e doentes não evidenciava intenção de dolo. Já as práticas de negros, uma vez centradas em possessão, batuques e danças “diabólicos”, não podiam ser percebidos como ritos religiosos, derivando pois, para a categoria inversa, a magia, voltada para o mal e francamente ameaçadora. Assim, pelo menos nas cidades remodeladas sob as políticas higienistas e o controle disciplinar do espaço público, como no Rio de Janeiro e São Paulo, as práticas desses agrupamentos de negros forma associadas ao crime e duramente combatidas”.[xx] 

É neste contexto de hegemonização da Igreja Católica e a eurocentrização da sociedade brasileira que encontraremos diferentes processos de caracterização do que seja religioso, assim o “processo de descriminalização das práticas mediúnicas espíritas se deu mediante um debate médico-juridico que terminou por dissociação entre “fraude” (exercício ilegal da medicina) e “forma de culto” (crença em divindades), no caso da possessão a transformação em ritos religiosos resultou de um debate entre ciências médicas e antropológicas”.[xxi]

Este processo de sobrevivência das religiões não européias seguiram dinâmicas diferencias, a lógica legal e a lógica culturalista, são essas as bases que conformam o pluralismo religioso e também, referendam a liberdade religiosa, sobre a égide da Igreja Católica.

ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS

Paralelo ao processo de consolidação do pluralismo religioso, encontramos a retomada da política de assistência social por parte das organizações religiosas, como forma de substituição do Estado em seu dever. Assim “os limites do Estado para implantar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa “devolução” das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do código cristão da “caridade”.[xxii]

Percebemos aqui todo um projeto de hegemonização e alienação da sociedade em torno dos interesses do Estado e Igreja, visto que como observamos anteriormente esta não só fortaleceu o seu papel no seio da sociedade através da “caridade”, como avançou ainda no âmbito educacional, inicialmente voltando-se a sensibilização da sociedade no período da República velha e posteriormente com a flexibilização do ensino religioso a serviço de atenuar a miséria das classes menos favorecidas.

Prática do assistencialismo através da “caridade” passa a significar a prática gratuita e desinteressada de ajuda ao pobre – ato religioso de compaixão. Cabe aqui a desmistificação da “caridade”, bem como, da sua gratuidade já que esta é desenvolvida com bases em acordos entre a Igreja Católica e o Estado, na obtenção tanto da alienação como da assistência social devida ao cidadão.

É interessante observarmos aqui que este processo de assistência social, diante do fenômeno religioso das Igrejas Protestante com ênfase na Igreja Universal.

“No campo protestante, a noção de “assistência social” também opera na chave da caridade, mas a variação da Igreja Universal do Reino de Deus me parece mais interessante. Sua originalidade nesse campo reside no fato de ter produzido uma dupla inversão dos termos até aqui analisados: por um lado, seus ritos generalizam a “feitiçaria” no espaço público por via dos meios de comunicação; por outro, fizeram coincidir caridade e prosperidade econômica. Em suas práticas rituais mais importantes, a Igreja Universal recupera e ressignifica duas categorias clássicas do cristianismo: o exorcismo e o donativo em dinheiro.”[xxiii] 

Aqui se constata não só a inobservância da laicidade do Estado como a subserviência deste ao hegemonismo religioso, bem como, a cumplicidade e parceria público-privada na execução de uma obra que aliena e engessa intelectualmente o cidadão, mantendo-o crédulo e ineficiente diante dos descasos e desmandos do Estado.

ESTADO E LIBERDADE RELIGIOSA

Ao longo deste trabalho,constatamos a inexistência de laicidade do Estado brasileiro, por sua conduta histórica de subserviência a religião dominante ou hegemônica – Igreja Católica -, incapaz de produzir com imparcialidade uma gestão com respeito a todas as religiões e o exercício da liberdade religiosa.

Encontramos um Estado que convenientemente produziu e mantêm uma tolerância com a diversidade cultural frágil e que busca na sua relação com as organizações religiosas uma dependência que atenda aos seus anseios de manutenção do poder e subserviência das mesmas aos seus projetos de nação, aonde a privacidade do religioso inexiste e é transformada em publica com base nos conceitos da religião hegemônica que se locupetram através do tradicionalismo e culturalismo em uma ação deliberada de alienação que é encontrada na concessão de favores entre esses.

Constatamos esta situação mais explicitamente ao observarmos a Lei no. 9.093/95, que dispõem sobre feriados:

“Conforme a lei, serão feriados civis: a) os fixados em lei federal; b) a data magna de cada estado (lei estadual); c) data relacionada ao centenário de fundação dos municípios (lei municipal). Acerca dos feriados religiosos, dispõe o art 2. “São feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão.”[xxiv]

Esta permissividade de implantação de feriados religiosos, que abragem os três níveis do Estado, conforma a não laicidade do Estado brasileiro, aonde encontraremos feriados nacionais, estaduais e municipais no atendimento ao culto mono-religioso, em outras palavras, ao atendimento a religiosidade hegemônica – Igreja Católica -; impingindo assim uma violação de direitos dos não católicos e um completo desrespeito de uma legislação laica e agnóstica.

O estabelecimento de feriados religiosos atendem meramente a tradição religiosa católica – Semana Santa, Corpus Christi, Nossa Senhora Aparecida e um sem número de feriados municipais e estaduais em comemoração ao dia da santa ou santo padroeiro da cidade -, que culturalmente a laicidade do Estado.

Oportuno aqui observarmos a questão do dia de guarda, o qual foram relativizados dentro do sistema econômico vigente terminando por perder sua transcendentalidade, assumindo um perfil secular. Porem, encontramos várias organizações religiosas que mantêm como forma de culto rígida a observância deste dia que é destinado ao culto da divindade e a atividades religiosas; este dia diverso do domingo – Igreja Católica – tende a criar restrições e embaraços como temos presenciado principalmente na realização de concursos públicos, o que em alguns estados já existem “leis que vedam a realização de concursos públicos e de avaliações funcionais durante os períodos de guarda.”[xxv]

“No levantamento de dados realizado nos Tribunais brasileiros, o pleito referente ao dia de guarda foi um dos que mais ocorrências apresentou, totalizando 29 julgados. Existem dois problemas essenciais: a) realização de concursos públicos e de concursos vestibulares durante o periodo de guarda; b) freqüência a cursos de formação e a aulas durante o período de guarda. Dois dos casos apresentaram fatos bastantes diversos, que versaram a respeito: a) definição do horário de abaertura de uma loja em shopping center, b) da reposição de uma calendário escolar aos sábados. Como será visto, os principais problemas envolvem uma complexa trama de direitos fundamentais e de princípios constitucionais. Como exemplo, quanto aos concursos públicos, aparecem, de um lado, o direito ao acesso aos cargos públicos, à igualdade, à liberdade de crença e de culto e à objeção de consciência. De outro lado, afirma-se a laicidade estatal, a igualdade, a impessoalidade dos atos da administração pública e a vinculação editalícia. Quanto aos certames para ingresso em instituições de ensino, os mesmos direitos e princípios invocados, substituindo-se apenas, o direito de acesso aos cargos públicos pelo direito à educação.[xxvi]

Atentemos aqui sobre a polêmica promovida com a não laicidade do Estado e a não compreensão da liberdade religiosa ou mesmo a intolerância e incapacidade de uma sociedade pretensamente permissiva ao pluralismo religioso, mas, que não consegue responder as demandas do seu multiculturalismo, como veremos abaixo:

“O MEC, desde 1984, mantêm firme seu posicionamento de não aceitar a escusa de consciência dos acadêmicos sabáticos para fins de compensação de ausências. No parecer n. 430/84, do extinto CFE, a conclusão foi de não haver amparo legal para o reclame dos estudantes que, por motivos religiosos, não compareciam às aulas em certos dias da semana. Em manifestação posterior, a Câmara de Educação Básica lembrou que esta questão diz respeito a LDB e à educação nacional e, citando o parcer 731/99, da Consultoria Juridica do MEC, concluiu que, na ausência de regra infraconstitucional sobre o tema, não assiste o direito de escusa de consciência religiosa aos acadêmicos sabáticos para efeitos de compensação de ausências, já que assiduidade escolar, no ensino regular, é imposta a todos os estudantes. CF. BRASIL. MEC. CEB. Parecer n. 15/99, aprovado em 04/10/1999 e CUNH, Sebastião Fagundes. Abono de faltas e escusa de consciência por convicção religiosa. Revista Aporia Juridica.[xxvii]

Entendemos por fim que espaço público seja uma construção de um mundo comum entre todos os seres humanos, diferente das experiências estritamente subjetivas e pessoais que apenas tem validade na dimensão privada e que não são adequadas no domínio público, caso especifico da religião. Os aspectos culturais e do tradicionalismo, tendem a imposição da sua visão a todos os demais, buscando traduzir em leis gerais seus pontos de vista particulares. “A laicidade obriga a todos a exercer a razão comunicativa, a superar os dogmatismos em favor de uma convivência pacífica e diante dos conflitos buscar pontos de convergência comuns. Neste sentido, a laicidade é um principio da organização jurídica e social do Estado moderno.”[xxviii]

“Subjacente à laicidade há uma filosofia humanistica, base da democracia sem fim: o respeito incondicional ao ser humano e o valor da consciência individual, independente de seus condicionamentos. Trata-se de uma crença, não em Deus como nas religiões que melhor chamaríamos de fé, mas de crença no ser humano em si mesmo, como valor. Ela se expressa pelo reconhecimento do pluralismo e pela convivência entre todos.”[xxix]

A distinção aqui proposta entre privado e público, busca orientar um mundo caracterizado pela pluralidade, o que acreditamos só ser possível através de um Estado laico e agnóstico, que elevem a todos os cidadão ao mesmo patamar de dignidade independente das suas crenças e o reconhecimento da igualdade entre todos.

 

 



[i] Wikipédia, a enciclopédia livre.

[ii] O que é laicidade da Association Suisse pour La Laicité – Traduzido por Ricardo Alves

[iii] Dicionário básico de filosofia – Hilton Japiassú e Danilo Marcondes – 3ª. Edição revista e ampliada.  Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro 2001

[iv] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[v] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[vi] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[vii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[viii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[ix] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[x] “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xi] “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xii] Liberdade Religiosa – Othon Moreno de Medeiros Alves – Fundação Konrad Adenauer – Fortaleza/Ceará 2008

[xiii] Liberdade Religiosa – Othon Moreno de Medeiros Alves – Fundação Konrad Adenauer – Fortaleza/Ceará 2008

[xiv] Liberdade Religiosa – Othon Moreno de Medeiros Alves – Fundação Konrad Adenauer – Fortaleza/Ceará 2008

[xv] Liberdade Religiosa – Othon Moreno de Medeiros Alves – Fundação Konrad Adenauer – Fortaleza/Ceará 2008

[xvi] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xvii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xviii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xix] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xx] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xxi] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xxii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xxiii] Religião, pluralismo e esfera púbica no Brasil – Paula Montero – Professora do Depto. De Antropologia da USP e pesquisadora do CEBRAP

[xxiv] Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xxv] Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xxvi] Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xxvii] Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberadade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira – Letícia de Campos Velho Martel – Doutoranda em Direito Público – UERJ, professora licenciada da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, colaboradora do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania - NUPEC

[xxviii] O Estado laico e pluralista e as Igrejas – Leonardo Boff

[xxix] O Estado laico e pluralista e as Igrejas – Leonardo Boff