WERNER SCHRÖR LEBER[1]

 

NOTAS SOBRE FATOS E PROPOSIÇÕES EM LÓGICA E CONHECIMENTO DE BERTRAND RUSSEL. 

 

 

  1.  CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

 

Bertrand Russel é uma referência das mais respeitadas em nossa filosofia analítica e na lógica da primeira metade do século XX. Tendo vivido quase 100 anos, influenciou várias gerações. Entre seus alunos mais conhecidos destaca Ludwig Wittgenstein, por quem nutria grande admiração e com quem teve também vários problemas intempestivos. Bertrand Russel era britânico, nasceu em 1872 no País de Gales, mas viveu também parte de sua vida nos Estados Unidos, onde foi conferencista e professor. O ensaio que segue, versa sobre determinados aspectos de “Lógica e Conhecimento” que se encontra traduzido para o português em “Ensaios Escolhidos”, da Coleção “Os Pensadores”.[2] Bertrand Russell foi considerado um pensador polêmico, muito embora largamente influente e decisivo em suas pesquisas. Seu pensamento divagou não só sobre lógica, mas também sobre as questões mais conhecidas da filosofia, como, por exemplo, o idealismo de Hegel e a filosofia de Kant. Viveu uma curta temporada na Alemanha, ano de 1896 de cuja estadia saiu o texto “Democracia Social Alemã”. No caso aqui tomaremos do capítulo FILOSOFIA DO ATOMISMO LÓGICO, Parte I, “Fatos e Proposições”, páginas 53-62 como referência.

Para Russell, em princípio não é possível a clássica separação entre ontologia e epistemologia. Pois saber “o que as coisas são?” (ontologia) implica também a garantia de saber se elas são o que se diz que são (epistemologia).[3] Bem entendido que Russell se refere à ontologia tradicional, a que chamamos de modo geral metafísica tradicional ou metafísica antiga. Metafísica antiga seria aquela que descende de Parmênides, Platão e Aristóteles, depois reinterpretada e largamente comentada na teologia cristã pelos pensadores da Patrística à Escolástica. Russell não adentra à arena moderna da ontologia desenvolvida por Martin Heidegger, que, por sua vez, toma a fenomenologia de Husserl como ponto de partida, a chamada “hermenêutica da faticidade” em que Ser e Ente estão sempre separados.[4]  Pelo menos não no trecho de texto que aqui se analisa.

 

  1.  LINGUAGEM E REFERÊNCIA

 

De que tipo é a filosofia da linguagem que se encontra em Bertrand Russell? Difícil responder porque Russell ocupou-se inicialmente com a matemática tradicional, ou seja, a matemática de tipo pitagórica, em que os resultados surgem como provas cabais e resultados incontestáveis. Por muito tempo, Russell quis que a linguagem tivesse um caráter preciso e lógico que, como ele supunha, havia na matemática dos gregos pitagóricos antigos. Mas a matemática que Russell encontra na Europa de seu tempo decepciona-o de início. Ela nada tinha de exatidão em termos tradicionais, mas apresentava-se “[...] como um série de técnicas úteis” (MONK, 2000, p. 16).[5]

Lentamente ele se convenceu de que a matemática estava longe do grau de exatidão e precisão que ele inicialmente a ela creditou. O tipo de filosofia que Russell desenvolveu dali para frente enquadra-se no que atualmente, de modo geral, chama-se filosofia analítica, na qual a filosofia da linguagem está inserida ou com a qual tem um grau de parentesco bem próximo. A nosso ver, as ideias apresentadas em “Lógica e Conhecimento” cabem perfeitamente na descrição que o comentador faz da filosofia analítica ao dizer que,

 

O filósofo analítico contemporâneo está essencialmente preocupado em aclarar todos os usos da razão e da linguagem, quer se trate de afirmações de conhecimento ou de juízos de valor. Geralmente não faz declarações acerca da natureza das coisas que rivalizam com as declarações do cientista ou de qualquer outra pessoa, uma vez que em geral ele não crê possuir uma intuição especial acerca dessas questões. Ele pode tentar promover um programa para o uso de uma LINGUAGEM IDEAL, como fazem, e.g., filósofos como Russell e Carnap. [...] Com maior probabilidade, em vez disso ele aceitará a complexidade da linguagem e se esforçará para efetuar algum tipo de TERAPIA CONCEPTUAL ao expor as tendências enganosas da mesma (HUNNEX, 2003, p. 10).

 

No que nos diz respeito, estamos firmemente convencidos de que o propósito do filósofo analítico descrito acima cabe muito bem para caracterizar as intenções e Russell em “Lógica e Conhecimento”. E ainda dentro dessa moldura, o comentador traz as seguintes ponderações, que bem corroboram com a empreitada de Russel. Assim escreve ele:

As teorias do SIGNIFICADO LINGUÍSTICO são: 1) Teoria REFERENCIAL, que sustenta que a) a linguagem é usada para falar sobre coisas; b) o significado de uma expressão é aquele ao qual ela se refere ou a relação entre a expressão e o seu referente; c) a referência é feita por NOMEAÇÃO (as palavras representam algo) ou DESCRIÇÃO (v. a teoria de descrições de Russell) (HUNNEX, 2003, p. 17).

 

Não temos em mãos a tal Teoria das Descrições de que a citação acima tratou. Mas, assim esperamos, o trecho que escolhemos para analisar, cabe ou se enquadra nesse tipo de propósito.

 

  1.  FATOS E PROPOSIÇÕES: O ATOMISMO LÓGICO DE HUSSERL 

 

O trecho escolhido é parte de uma conferência apresentado por Russell em 1918, em Londres. O filósofo logo na primeira página tece elogios a Wittgenstein, a quem chama “meu amigo e anteriormente meu aluno” (RUSSELL, 1985, p. 53), e, conforme confessa, as ideias da Conferência estão embasadas em alguns princípios que aprendeu com seu ex-aluno Ludwig Wittgenstein. Passa então a explicar o que ele denomina Filosofia do Atomismo Lógico, que em suas palavras designam,

 

“[...] uma filosofia que se impôs a mim no curso de meu pensamento acerca da filosofia da matemática, embora eu deva encontrar dificuldade em dizer exatamente até que ponto existe uma conexão lógica definida entre as duas” (HUSSERL, 1985, p. 53).

 

E em seguida define o que entende pelos termos que adota:

 

A lógica que defenderei é atomista, enquanto oposta à lógica monista das pessoas que mais ou menos seguem Hegel. Quando digo que a lógica é atomista, quero dizer que participo da crença do senso comum de que existem muitas coisas separadas; não considero a aparente multiplicidade do mundo como consistindo simplesmente em etapas e divisões irreais de uma única Realidade indivisível. [...] A razão pela qual chama a minha doutrina de atomismo lógico é porque os átomos aos quais desejo chegar como espécie de último resíduo da análise são átomos lógicos e não átomos físicos (HUSSERL, 1985, p. 54).

 

Russel observa que a linguagem é imprecisa, vaga ou ambígua. Isso não é novo. Sabemos que já Gottlob Frege com sua conceitografia buscava algo parecido. Russell mesmo dá o seguinte exemplo de uma frase que considera vaga: “existe um número de pessoas neste recinto, neste momento”. Essa seria uma frase solta, muito utilizada na comunicação formal, mas totalmente vaga. O que seria “um número de pessoas”? E Russel então explica que “o processo do sadio filosofar consiste em passar daquelas coisas óbvias, vagas [...] a alguma coisa precisa, clara, definida [...]” (Op. cit., p. 55). Seguiremos os passos de Russell para, por meio de suas palavras mesmo, delinear em que consiste a imprecisão da linguagem, e como o atomismo lógico, por ele proposto,  pode aumentar a precisão do que se fala.

Para Russell, as coisas são o que são, independentemente do que pensamos sobre elas. Coisas são coisas e ponto final. Assim, parece, Russell rejeita de antemão o idealismo. É muito evidente a herança positivista neste tipo de entendimento. Assim, o que pensamos sobre as coisas (juízos) pode ser verdadeiro ou falso. E sempre só isso: verdadeiro ou falso. Seria esse um limite da lógica, sempre só nos dizer que algo ou é verdadeiro ou falso?

Percebe-se aqui, entenda-se que esse “aqui” é a visão de Russell, claramente a perspectiva matemática onde sempre só pode haver o correto ou o incorreto. Russell fala em fatos. O que são então “fatos” para Russell? Fatos não podem ser entendidos como simples coisas (objetos empíricos) naturais, acontecimentos corriqueiros ou substantivos. Para ele, fato são “coisas” expressas em sentenças inteiras e não algo banal como a existência de árvores, pessoas, rios, ou a palavra “Sócrates” (Op. cit.).[6]  O que são esses “fatos” então? O seguinte comentário parece nos conduzir a elucidar em que consiste o atomismo de Russell:

 

[...] Russell tornou essencial em sua filosofia um tipo de análise que procurava revelar a forma lógica real que está oculta por trás das formas linguísticas acidentais e irrelevantes. Ele dizia que o problema que há surge de nosso hábito inveterado de tentar nomear o que não pode ser nomeado. Se tivéssemos uma linguagem logicamente apropriada, não seríamos tentados a fazer isso (MONK, 2000, p. 38-39).

 

 

Russell explica que há fatos particulares e fatos gerais. Dizer “isso é um cavalo” denota um fato particular; já afirmar “todos os homens são mortais”, seria um fato geral (RUSSELL, 1985, p. 58). Distinção que Russell considera difícil está entre o que se considera Fato Positivo e Fato Negativo. Exemplo, “Sócrates está vivo” seria um exemplo de fato positivo; já dizer “Sócrates não está vivo” funciona como fato negativo. Russel passa então a discorrer sobre a linguagem que é sempre simbólica. “Uma proposição é simplesmente um símbolo”, diz (RUSSELL, 1985, p. 59). O caminho descrito pelo filósofo para chegar à simbologia é meticuloso. Russell nem sempre escreve com clareza. Menciona diversas vezes os graus de dificuldade da linguagem formal e afirma que uma sentença formada por várias palavras, cada palavra da sentença é um símbolo enquanto a sentença toda forma um símbolo complexo dos sentidos de cada uma das palavras que a compõem. Dessa forma, e essa é a angústia de Russell, tomamos os símbolos pelas coisas e pensamos nos símbolos como se coisas fossem. Atribuímos ao símbolo propriedades que só pertencem à coisa. O incrível, lamenta Russell, é que os bons filósofos pensem nisso durante um minuto a cada seis meses, ao passo que os maus pensadores nem se põem esses problemas ou nem mesmo conseguem percebê-los. Para Russell, o erro está em

 

 

[...] se colocar uma espécie de símbolo no lugar em que deve estar outra espécie de símbolo. Algumas das noções que se pensou serem absolutamente fundamentais na filosofia acredito que se originaram inteiramente através de enganos com relação ao simbolismo, a saber, a noção de existência ou [...] de realidade. Estas duas palavras representam uma grande parte do que se discutiu na filosofia. [...] Ora, minha própria crença é que do modo pelo qual elas ocorreram, elas foram o resultado de uma confusão acerca do simbolismo, e que quando tenhamos esclarecido esta confusão, verificaremos que praticamente tudo que se disse acerca da existência é transparente e simplesmente um erro; isto é tudo que podemos dizer a cerca da existência (RUSSELL, 1985, p. 60).

 

A forma matematizante e metodológica com que Russell descreve seus objetivos assemelha-se à maneira geométrica com que Descartes apresente seu Discurso do Método. Nas partes Um (1) e Dois (2) de seu Método, Descartes quer nos fazer crer que perdemos tempo demais com conceitos sem sentido, com divagações metafísicas do escolasticismo sobre Aristóteles, que não têm a precisão da “luz natural”.[7]  Se os pais, assim sugere Descartes, conhecessem melhor a luz natural (a razão), e se soubessem utilizar geometricamente a razão, poderiam ter evitado perdas de tempo com ensinamentos inúteis aos seus filhos. Todavia, Descartes mantém ainda uma questão metafísica, a perfeição que, em última instância, é Deus e que sustenta o grau de certeza de sua teoria. Nada dessas coisas um tanto teológicas são verificadas em Russell. Deixemos ainda Russell dizer as palavras finais dessa Primeira Parte. Essa passagem é elucidativa:

 

É muito importante perceber, por exemplo, coisas como a de que as proposições não são nomes para fatos. Isso é bastante óbvio quando nos é mostrado, mas de fato nunca o havia percebido até que me fosse mostrado por um aluno meu, Wittgenstein. É perfeitamente evidente assim que pensarmos que uma proposição não é um nome para um fato devido à simples particularidade de que existem duas proposições que correspondem a cada fato. Suponhamos que Sócrates está morto seja um fato. Temos duas proposições: “Sócrates está morto” e “Sócrates não está morto”. E para essas duas proposições que correspondem ao mesmo fato, existe um fato no mundo que faz uma verdadeira e outra falsa. Isso não é acidental, e ilustra como a relação da proposição ao fato e uma relação totalmente diferente daquela entre o nome e a coisa nomeada. Para cada fato existem duas proposições, uma verdadeira e outra falsa, e não existe nada na natureza do símbolo para nos mostrar qual é a verdadeira e qual é a falsa. Se existisse, poderíamos averiguar a verdade acerca do mundo examinando as proposições sem olhar ao nosso redor (RUSSELL, 1985, p. 61).

 

No que nos diz respeito, não concordamos nem com Descartes e nem com Russell de modo integral, embora reconheçamos as tentativas de ambos. Uma precisão geométrica da linguagem e da razão não tornaria as coisas mais fáceis. A vida, em si mesma, não cabe em nenhuma lógica. Nada é mais ilógico que existir e filósofos da linguagem atuais como Davidson e Tarski não resolveram esses problemas; apenas apontaram que as coisas eram mais complexas do que Frege e Russell as imaginaram (MILLER, 2010).

 

  1.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Quando se estuda análise sintática em língua portuguesa, por exemplo, surgem sempre dúvidas porque termos e palavras não têm sentido único. Variam conforme o emprego sintático e semântico. As sentenças, conforme ficou dito por Russell, só podem ser verdadeiras ou falsas. O problema é que nunca sabemos isso pela sentença em si e só e somente só se observarmos a veracidade ou falsidade da sentença na natureza. Por conta disso, como já feito Frege, queria estatuir uma linguagem, que ele chama atomismo lógico, e que pudesse dar conta desse problema sem a verificação empírica daquilo que a sentença proclama.

Russell está dentro de uma perspectiva linguística que queria dar às significações gramaticais uma exatidão que as gramáticas tradicionais, por serem sempre sintáticas, semânticas e literárias não atingem. Como ele mencionou, foi Wittgenstein, seu ex-aluno, que abriu os seus olhos para essas questões. Mas Wittgenstein, como sabemos, abandou essa perspectiva e dedicou-se à “Sprachenspiel”, não acreditando mais, como Frege e Russell, que a língua alfabética formal pudesse ir além da gramática comum e da semântica (MILLER, 2010). Foi a lógica, a filosofia analítica posterior, que avançou nesse campo.  Com os conceitos de “significado intencional e extensional” que se encontram em autores como, por exemplo, Davidson e Tarski (MILLER, 2010, p. 275), a filosofia da linguagem está em uma outra perspectiva, nunca deixando porém, de considerar as contribuições de Russell e Frege. Mas isso já é outro assunto e, certamente, ainda mais complexo que o atomismo proposto por Russell.

 

  1.  REFERÊNCIAS

 

 

DESCARTES, Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e buscar a verdade nas ciências. Tradução de T. C. Stummer. São Paulo: Paulus, 2002.

 

HEIDEGGER. Ontologia: hermenêutica da faticidade. Tradução de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

 

HUNNEX, Milton. Filósofos e correntes filosóficas em gráficos e diagramas. Tradução de Alderi Matos. São Paulo: Editora Vida, 2003.

 

MILLER, Alexander. Filosofia da linguagem. 2ª edição. Tradução de E. L. Gomes et. all. São Paulo: Paulus, 2010.

 

MONK, Ray. Bertrand Russel – matemática: sonhos e problemas. Tradução de Luís Henrique Dutra. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.

 

RUSSEL, Bertrand. Ensaios escolhidos. Tradução de Pablo Rubén Mariconda. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção: Os Pensadores).

 

 

 

[1] O autor é formado em Filosofia, Teologia e Letras.

[2] Será citado Russell (1985).

[3] Conforme informações da página VII do Prefácio (Russell: Vida e Obra - páginas VII- XVIII) de Russell (1985).

[4] HEIDEGGER, Ontologia: hermenêutica da facticidade, por exemplo, página 18.

[5] Esse pequeno livro de Ray MONK (ver Referência) é uma análise de como Russell sempre teve na matemática e na lógica todas a suas prerrogativas filosóficas.

[6] Conforme página 57.

[7] Que o projeto das elucidações linguísticas modernas têm uma relação com Descartes é muito óbvia. Bertrand Russell o diz diversas vezes ao longo do texto. Referimos-nos a passagens cartesianas do Método com a que segue: “assim me desfazia pouco a pouco de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão”, DESCARTES, Discurso do método, p. 83.