GEORGE LAURINDO DE ANDRADE

A aproximação de alguns dos mais palpitantes temas da teoria geral do direito, sobre a completude do ordenamento jurídico e a existência ou não de lacunas no direito, a visão de diversos doutrinadores e de como tais temas são abordados em sala de aula, ou seja, conteúdos trabalhados (Ensino Jurídico), nas disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, e na Teoria Geral do Direito, Direito e Processo Penal, passa a tomar corpo jungida na existência da crise de paradigmas da modernidade. Em espécie, a crítica ao paradigma jurídico tradicional, mormente no âmbito do direito penal e das políticas criminais, foi apresentada por juristas como Alessandro Baratta, Zaffaroni, e numa brilhante tese doutoral de Vera Regina Pereira de Andrade, correlacionando ao panorama da dogmática jurídica penal, elementos caracterizadores da chamada "insegurança Jurídica".

A preocupação central do presente artigo, esteve a cargo da apresentação por meio de recolha bibliográfica de alguns dos pontos de vista e das conclusões ofertadas por vários doutrinadores pátrios e estrangeiros de como atravessamos um momento ímpar da complexidade da vida social humana, primordialmente in casu, das instituições jurídicas, responsáveis ao menos em sede do "imaginário popular" por contribuir para a segurança da população, leia-se aqui, (in) segurança jurídica da população.

Questão importante na teoria geral do direito, mais precisamente, na teoria do ordenamento jurídico, revela-se no debate sobre a unidade, coerência e completude do ordenamento jurídico, que acaba por levar à questão das antinomias e das lacunas do referido ordenamento. Iniciemos com breves comentários sobre a importância do fenômeno das antinomias e sua importância para o tema em comento.

Por antinomia, segundo BUENO, é vocábulo que designa a contradição entre duas leis ou princípios; oposição recíproca. Juridicamente a questão das antinomias está inserida no bojo da compreensão do direito como sistema de normas, vez que, as normas jurídicas se constituem com tal relevância, no mundo do Direito, a tal ponto, de resultar para muitos o objeto primaz de estudo da chamada ciência do Direito. Necessário se faz então, antes de aprofundar a noção de antinomia, por caracterizar situação inerente às normas no direito, cristalizar o conceito de Sistema Jurídico.

Nas mais das vezes dada a ênfase do estudo das normas no direito, muitos são levados a crer e confundir a compreensão do Direito a partir da norma jurídica tomada de forma isolada na busca ou compreensão das características da norma , tarefa considerada por BOBBIO(BOBBIO, 1999) impraticável, como assim dispõe:

"O Direito não é norma, mas um conjunto ordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo".

A idéia de que o Direito é formado por um conjunto de normas, de maneira ordenada e sistematizada, passa a ser ampliada em sua compreensão de que tal conjunto é também sistema de comandos, de prescrições interconectadas e que devam guardar uma harmonia para fluir em seus objetivos na vida social. Para aprofundar tal consideração nos valemos da obra do grande jurista e professor cearense Hugo de Brito Machado, o qual assim assevera (MACHADO, 2004):

"Dizemos, portanto, que o Direito é um sistema de prescrições jurídicas, interligadas e harmônicas. É um sistema porque, é integrado de partes que se completam e que dependem umas das outras, como se pode constatar na experiência jurídica. (...) Como todo sistema há de ser coerente, isento de incongruências, a primeira e talvez mais importante conseqüência prática da idéia de sistema consiste em que as incongruências ou antinomias devem ser eliminadas. A segunda conseqüência importante da idéia de sistema consiste na sua utilização como elemento indispensável na busca do significado das prescrições jurídicas. Finalmente, a terceira conseqüência importante da idéia de sistema consiste em que as lacunas cuja presença consubstancie uma incongruência devem ser de pronto eliminadas pelo intérprete".

Muito já foi dito doutrinariamente na Teoria Geral do Direito, sobre a questão das antinomias, e para efeito deste trabalho não serão aprofundadas tais questões. Por tal fato, nos limitaremos a mirar as lições de NORBERTO BOBBIO, o qual, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, apresenta a questão de forma didática e profunda, dada a maestria de um jusfilósofo acrescenta que é necessário passar da determinação das antinomias à sua solução, sendo esta nossa preocupação neste ensaio, de apenas citar tal solução e aprofundar a temática das lacunas, primordialmente no direito pátrio, em específico no direito penal, o qual faremos adiante. Doravante nos valeremos de Bobbio, para as antinomias e sua solução:

"Devido à tendência de cada ordenamento jurídico se constituir em sistema, a presença de antinomias em sentido próprio é um defeito que o intérprete tende a eliminar. Como antinomia significa o encontro de duas proposições incompatíveis, que não podem ser ambas verdadeiras, e, com referência a um sistema normativo, o encontro de duas normas que não podem ser ambas aplicadas, a eliminação do inconveniente não poderá consistir em outra coisa senão na eliminação de uma das duas normas (no caso de normas contrárias, também na eliminação das duas). (...) É necessário passar da determinação das antinomias à solução das antinomias.

No curso de sua secular obra de interpretação das leis, a jurisprudência elaborou algumas regras para a solução das antinomias, que são comumente aceitas. Por outro lado, é necessário acrescentar logo que essas regras não servem para resolver todos os casos possíveis de antinomias. Daqui deriva a necessidade de introduzir uma nova distinção no âmbito das antinomias próprias, isto é, a distinção entre as antinomias solúveis e as antinomias insolúveis. As razões pelas quais nem sempre todas as antinomias são solúveis são duas:

1 ) há casos de antinomias nos quais não se pode aplicar nenhuma das regras pensadas para a solução das antinomias;

2 ) há casos em que se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si".

Ainda sobre o tema o mestre italiano, apresenta três regras fundamentais para resolver ou solucionar as antinomias, para as quais ele intitula de "critérios", com os quais, o intérprete ou jurista usualmente se deparará no trato da referida incongruência:

1 ) o critério cronológico;

2 ) o critério hierárquico;

3 ) o critério da especialidade.

Segundo o Critério Cronológico, na existência de duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior. Este critério é anunciado pelo brocardo jurídico: lex posterior derogat legi priori. Essa regra se explica pelo fato de a eficácia da lei no tempo ser limitada ao prazo de sua vigência, que começa com a sua publicação e perdura até a sua revogação. Assim, a lei só começa a produzir seus efeitos após entrar em vigência e deixa de produzi-los depois de revogada.

Pelo Critério Hierárquico, também chamado de Lex superior, porque inspirado na expressão latina lex superior derogat legi inferiori. Por esse critério, na existência de normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior. O contrário, uma norma inferior revogar uma superior é inadmissível.

E para o Critério da Especialidade se as normas incompatíveis forem geral e especial, prevalece a segunda. O entendimento que norteia esse critério diz respeito à circunstância de a norma especial contemplar um processo natural de diferenciação das categorias, possibilitando, assim, a aplicação da lei especial aquele grupo que contempla as peculiaridades nela presentes, sem ferir a norma geral, ampla por demais. Além do mais, a aplicação da regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça.

Condição especial nesta discussão se impõe em função de que tanto o operador do direito, seja ele o advogado, o jugador, ou órgãos superiores colegiados, como os tribunais superiores, o STF, por exemplo, são constituídos de membros, e como tais vinculados a uma visão de mundo, um contexto histórico e de conjuntura social, estão imersos num conjunto de valores, com os quais ponderam, ou são objeto de influência na tomada de suas decisões, seus arrazoados, pareceres, acórdão, ou quaisquer outros atos de natureza jurídica, nos quais se imponha ou apropriem funções inerentes à ideologia, quais sejam duas principais, a de coerção e de coesão social. Já se disse por exemplo neste país, que o direito adquirido, não pode ser poderia ser prejudicado, por comando que emana de lei, mas a despeito desta Magna Advertência, insculpida na Carta de 1988, o STF, instado a se manifestar, pôs abaixo este mandamento constitucional, quando de sua decisão da legalidade da cobrança, ou taxação dos inativos, aposentados e pensionistas, por parte do poder público. Vê-se notoriamente o quanto influenciáveis são os operadores do direito, quando submetidos à conjuntura ideologizada do modo de produção.

Cabe ainda por fim, por oportuno e em função da importância do conteúdo jurídico ser ideológico, e como tal sua interpretação pelo jurista, no caso das antinomias, para finalizar nos valemos mais uma vez das palavras do mestre Hugo de Brito Machado, comentando sobre tal questão a posição de Kelsen, assim pondera (MACHADO, 2004):

"A assertiva de Kelsen, segundo a qual a Ciência do Direito é incapaz de oferecer uma interpretação de uma norma que seja a única correta, e que a escolha de uma das interpretações possíveis é sempre um ato político, tem inteira aplicação também quando se questionam os critérios para a solução das antinomias. Sem discutir, aqui, a questão da interpretação, pode-se afirmar, com segurança, que a superação das antinomias em um ordenamento jurídico, fica reduzida em muitos casos a uma questão axiológica.

Aliás, a própria configuração das antinomias depende, em muitos casos, da interpretação que se adote das normas tidas como antinômicas. Ou de uma delas.

Seja como for, certo é que a Ciência do Direito, pelo menos enquanto considerada no seu sentido positivista, é incapaz de propiciar a solução para as questões jurídicas, sendo inevitável o conteúdo político da interpretação. No Brasil esse conteúdo político se revela mais intenso nas decisões de última instância, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal(grifos em itálico e sublinhados meus)".

Em um sistema ou ordenamento jurídico como o nosso, a questão da completude e da coerência, verte-se sob prisma das lacunas do Direito e das normas, por ser mais uma vez uma questão axiológica. A existência das lacunas se deve a ausência de norma específica e expressa para o caso posto. Mas será que haveria no ordenamento jurídico a necessidade de normas específicas para todos os casos, ou se para alguns casos seria conveniente aplicar-se solução baseada em norma de caráter geral. Esta questão é deveras importante, pois converge para a integração do ordenamento jurídico. Assim nas palavras de MACHADO, com base em Karl Engisch assim propõe:

"Como todo ordenamento jurídico alberga valores que o Direito procura realizar, e deve ser coerente na realização desses valores, entende-se que em sua totalidade ele corresponde a um plano. Assim a aplicação de uma norma geral será admissível quando não signifique, para a questão colocada, uma resposta incompatível ou incongruente com aquele plano. Será, portanto, inadmissível, quando em relação àquele plano signifique o que, na linguagem de Engisch, denomina-se um momento de incongruência".

Caso prático na esfera Penal e Processual Penal, no ordenamento jurídico pátrio se revela na tese Intitulada de INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA, tema bastante polêmico,e que em seu entorno podem ser suscitadas reflexões atinentes aos casos como abortamento de feto anencefálico, situações que configuram as chamadas excludentes de ilicitude, e outras, onde se afigura a referida tese, como uma causa supra legal da exclusão da culpabilidade, nas quais as lacunas no ordenamento, se mostram incisivas, nas considerações dos doutrinadores e dos Tribunais. Como tal temática transcende os objetivos deste ensaio, apenas esboçaremos breves comentários sob a questão em comento e ao final do trabalho na condição de apêndice serão expostos os textos de Eduardo Gomes de Queiroz, sobre o abortamento de feto anencefálico, dentre outros, capturados de sites postos em domínio público na internet, considerados oportunos e relevantes.

À guisa de brevíssimas considerações a Inexigibilidade de Conduta Diversa, se afigura como uma causa supra legal de exclusão da culpabilidade, presente e defendida por eminentes juristas pátrios e pelos nossos tribunais. Portanto inexistindo mandamento legal para albergar a situação de fato, ou seja, inexistindo norma previsível a dispor de situação de fato a ser valorada pelo Direito, o que configura a situação de lacuna, deverá o julgador pauta-se noutros critérios de integração da norma para proferir julgamento, e neste caso se vislumbra a excludente.

O inesquecível Júlio Fabbrini Mirabete, um dos mais notáveis doutrinadores do Brasil, sobre a culpabilidade e responsabilidade objetiva assim se pronunciou:

"Nossa legislação adotou o direito penal da culpabilidade, ou seja, a da reprovabilidade da conduta típica e antijurídica. É vedada, portanto, a responsabilidade objetiva. A responsabilidade penal objetiva significa que a lei determina que o agente responde pelo resultado ainda que agindo sem dolo ou culpa, o que contraria a doutrina do Direito Penal fundado na responsabilidade pessoal e na culpabilidade. (...) Mas tal princípio não é suficiente para se decidir pela existência de reprovabilidade da conduta. (...) Os elementos da culpabilidade são imputabilidade, o potencial conhecimento da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. (...) Eventualmente, na jurisprudência tem-se aceito a cláusula genérica de inexigibilidade de outra conduta como excludente da culpabilidade ".

Mais adiante o referido autor apresenta julgados do Superior Tribunal de Justiça – STJ, bem como outras cortes prevendo a admissibilidade da causa de inexigibilidade de conduta diversa vejamos alguns (MIRABETE, 2003):

"STJ: "Inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supra legal de exclusão de culpabilidade cuja admissibilidade no Direito brasileiro já não pode ser negada. Júri. Homicídio. Defesa alternativa baseada na alegação de não-exigibilidade de conduta diversa. Possibilidade em tese, desde que se apresentem ao júri quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico"(JSTJ 18/243 e RT 660/358). TACRSP: "Não se pode condenar, por lesão corporal culposa, motorista que ao tentar sair de local conturbado por multidão que pratica atos de vandalismo contra seu veículo, atropela pessoa, por inexigibilidade de conduta diversa, máxime se acompanhado de esposa e filhos menores"(RDTACRIM 4/110). TARJ: "A inexigibilidade de outra conduta é a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade, e que deve ser erigido, como um verdadeiro princípio de Direito Penal. Quando aflora em preceitos legislativos, é uma causa legal de exclusão, e se não, deve ser reputada causa supra legal, alçando-se em princípio fundamental ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que dispensa, via de conseqüência, a existência de normas expressas a respeito. Exclui-se a reprovação e, portanto, a culpabilidade se ocorreu circunstâncias em face das quais não se pode exigir de quem atua um comportamento ajustado ao dever" (RT 732/713)".

Coube, portanto, na ausência de norma prescritiva a prever e prover determinadas circunstâncias de fato, e suas conseqüências, a cargo não da lei, mas da jurisprudência integrar, e proferir inclusive juízo valorativo de conteúdo integrador da norma, para completude e coerência ao ordenamento. Ainda que, a despeito dos limites e da interpretação fundamentalista do princípio da reserva legal, sob pena da manutenção de lacunas e seus potenciais efeitos nocivos, a função integradora jurisprudencial tem se mostrado parcialmente eficaz, ante a omissão legislativa. Quando nas mais das vezes sob pressão de grupos e interesses, o legislativo elabora normas desconectadas com harmonia do sistema jurídico, perpetrando e promovendo o surgimento de mais antinomias e lacunas no ordenamento, ao menos em certos casos o judiciário vem socorrer o Direito e a sociedade dos problemas acima discutidos, é bem verdade que elevando os princípios constitucionais e suas garantias, pode-se minorar os estragos da omissão legislativa, e do sensação de injustiça e insegurança jurídica.

Outro tema importante na Teoria do Direito Penal hodierno, o qual tem suscitado polêmica e discussão trata-se do chamado Direito Penal do Inimigo, doutrina do jurista alemão Gunter Jakobs. Imersos numa aldeia global cada dia mais complexa e diversificada nos mais variados aspectos culturais, a constatação do sentimento de injustiça e impunidade, reflete-se na crescente onda de criminalidade que assola as sociedades ocidentais, e nas das respostas os agentes políticos do Estado. Utilizando-se do "braço do direito", muito mais, como aparelho ideológico, grupos sociais reivindicam tomadas de decisão, por parte do aparato estatal interagindo e reproduzindo mais violência, ao invés de conte-la.

A teoria ou doutrina do Direito Penal do Inimigo será aqui introduzida de forma superficialíssima, mas oportuna ao contexto da modernidade, principalmente depois do 11 de setembro de 2001. Para efeito deste texto, utilizarei as considerações contidas na obra intitulada Direito Penal do Inimigo noções e críticas, por Gunter Jakobs e Manuel Cancio Meliá, dos quais assim mencionamos (JAKOBS, 2007):

"A. A função manifesta da pena no Direito Pena do cidadão é a contradição, e no Direito Penal do Inimigo é a eliminação de um perigo. Os correspondentes tipos ideais praticamente nunca aparecerão em uma configuração pura. Ambos os tipos podem ser legítimos.

B. No Direito natural de argumentação contratual estrita, na realidade, todo delinqüente é um inimigo (Rousseau, Fichte). Para manter um destinatário para expectativas normativas, entretanto, é preferível manter, por princípio, o status de cidadão para aqueles que não se desviam (Hobbes, Kant).

C. Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário, o inimigo é excluído.

D. As tendências contrárias presentes no Direito material – contradição versus neutralização de perigos – encontram situações paralelas no Direito Processual.

E. Um Direito Penal do Inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito penal com fragmentos de regulações do Direito Penal do Inimigo.

F. A punição internacional ou nacional de vulnerações dos direitos humanos, depois de uma troca política, mostra traços próprios do Direito Penal do Inimigo, sem ser por si só ilegítima".

Teoria polêmica e que suscita com certeza um sem número de reflexões sobre as políticas criminais, a pena, a insegurança jurídica, enfim grandes temas mais uma vez ideologizados, dos quais, com certeza, muitos se apropriam para emitir juízos de valor, em suas formulações a favor e contra tal teoria, como o uso da criticidade é ferramenta mestra para o entendimento e compreensão da realidade, por isso nos valemos dos comentários de Manuel Cancio Meliá, sobre o Direito Penal do Inimigo, e por serem de grande valia é consignada neste texto (JAKOBS, 2007):

"A tese a que se chegará é que o conceito de Direito Penal do Inimigo supõe um instrumento idôneo para descrever um determinado âmbito, de grande relevância do atual desenvolvimento dos ordenamentos jurídicos-penais. Entretanto, como Direito Positivo, o Direito Penal do Inimigo só integra nominalmente o sistema jurídico-penal real; 'Direito Penal do Cidadão' é um pleonasmo; 'Direito Penal do Inimigo', uma contradição em seus termos".

Baratta citado por ANDRADE(2003), assevera que o Sistema penal possui uma função de reprodução material e ideológica da desigualdade social, vez que o Direito e o sistema penal exercem uma função ativa de conservação e reprodução das relações sociais de desigualdade. Com base no doutrinador italiano a professora Vera Regina Pereira de Andrade nos faz refletir que o sistema penal e o Direito exercem tais funções de natureza ideológica, por serem parte integrante do mecanismo através do qual se opera a legitimação dessas relações(de desigualdade social), com a produção do chamado consenso real ou artificial. A mestra acima cita Baratta nos seguintes termos:

"(...) em um nível mais alto de abstração, o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global; ou seja, das relações de poder e propriedade existentes, mais do que como instrumento de tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos".

Com o fito de encerrar as citações e reflexões dos mais variados autores na primeira parte deste texto, servimo-nos mais uma vez das considerações da professora acima mencionada, mais precisamente na obra "A Ilusão de Segurança Jurídica. Do controle da violência à violência do controle penal", da professora Vera Regina Pereira de Andrade, são apresentadas questões importantes que denotam aspectos acima descritos da ideologização do direito, mormente no âmbito do direito penal e processual na dogmática jurídica, postos na ordem do dia da chamada crise da modernidade, e por critério de adequação ao tema esboçado, doravante citamos trechos das conclusões da autora bastante oportunos:

"Se as promessas da modernidade eram as de generalização e igualdade no exercício da função punitiva, a Dogmática Penal e a técnica jurídica correspondente não conseguiram até agora assegurar esta promessa.

As Ciências Sociais contemporâneas evidenciaram que há, para além das intervenções contingentes, uma lógica estrutural de operacionalização do sistema penal nas sociedades capitalistas que implicando a violação encoberta (seletividade) e aberta(arbitrariedade) dos Direitos Humanos não apenas viola a sua programação normativa (os princípios constitucionais do Estado de Direito e do Direito Penal e Processual liberais) e teleológica (fins atribuídos ao Direito Penal e à pena) mas é, num plano mais profundo, oposta a ambas, caracterizando-se por uma eficácia instrumental invertida à qual uma eficácia simbólica (legitimadora) confere sustentação (....) O limite do sistema é, neste sentido, o limite da própria sociedade.

Globalmente considerada, pois, esta lógica se traduz numa subprodução (déficit) de garantismo e numa sobreprodução (excesso) de seletividade/arbítrio e legitimação, cuja violência institucional expressa e mantém um nexo funcional mais profundo com a reprodução das desigualdades sociais, isto é, com a violência estrutural. E deste desequilíbrio resulta a grave crise de legitimidade experimentada pelo moderno sistema penal não obstante a sobrevivência de sua autolegitimação oficial associada a demandas político-criminais e sociais relegitimadoras de sua intervenção.

O controle penal capitalista que a Dogmática se propõe a racionalizar, em nome dos Direitos Humanos e da segurança jurídica exigidos pelo Estado de direito e o Direito Penal liberal, é o mesmo controle que ela contribui para operacionalizar e legitimar, mesmo quando opere seletivamente e viole, sistematicamente, os Direitos Humanos, configurando um suporte importante na manutenção da desigual distribuição da riqueza e do poder.

O déficit de tutela real dos Direitos Humanos é assim compensado pela criação, no público, de uma ilusão de segurança jurídica e de um sentimento de confiança no Direito Penal e nas instituições de controle que têm uma base real cada vez mais escassa.

Ao mesmo tempo em que a segurança jurídica aparece empiricamente falsificada pelo império da in-segurança jurídica, aparece simbolicamente reafirmada e este simbolismo tem gerado efeitos legitimadores não apenas do subsistema da Justiça, mas de todo o sistema penal, acompanhando e sustentando aquela eficácia instrumental invertida (reprodução ideológica do sistema)."

E para finalizar as citações da brilhante tese de doutorado, que tão conexas quanto oportunas ao tema da ideologização dos direitos humanos a professora Vera Regina assim discorre:

"Desta forma, enquanto os sistemas penais seguem a marcha de sua violência aberta e encoberta contra sujeitos que vivem em simbiose com ele e vivemos o império da insegurança jurídica "com" uma Dogmática Penal simbólica, esta segue ancorada numa visão idealizada (ideologizada) do funcionamento do Direito Penal, na premissa de sua legitimidade e na ilusão de segurança jurídica e as Escolas de Direito e os Tribunais seguem sustentando, no prolongamento da comunidade científica, a sua reprodução. Pois, no fundo, a fantasia da segurança jurídica não deixa de ser também a fantasia de poder que alimenta a onipotência dogmática e dos próprios operadores jurídicos formados na sua tradição. (...)

É precisamente por sobrepor à imagem real do sistema penal uma imagem ideal do funcionamento do Direito Penal que o discurso dogmático tem tido uma eficácia simbólica legitimadora. (...)

O ponto de mutação já se encontra, desta perspectiva, instaurado. Ele radica no aprofundamento e radicalização do caminho aberto pela Criminologia-Penalismo crítico, cujo elo reside no desenvolvimento do aspecto garantidor do Direito Penal dogmático e vice-versa; ou seja, no caminho de um "garantismo-crítico" a curto e médio prazo inserido no horizonte utópico de superação do velho sistema de controle penal."

As reflexões elencadas pela professora Vera Regina, constituem uma síntese real e estarrecedora das funções e papéis desempenhados pela dogmática jurídica penal, num discurso justificador e ideologizado do direito e de sua aplicação no âmbito das instituições em tempos reais como estes que vivemos. O discurso e a práxis dos agentes políticos do estado, em se tratando da execução das chamadas políticas criminais no combate a onda crescente de violência e insegurança, que se amplia nas relações sociais, só reitera e amplia, e faz eco inclusive nos bancos das faculdade de direito, o olhar da dogmática jurídica tradicional, e da inação, ou pelo menos a "sensação", fruto da percepção da sociedade de que as instituições estatais já não estão no comando ou no leme do "barco social".

O clima de insegurança, insatisfação e deslegitimação do Estado e de seus agentes políticos, inclusive dos que elaboram as normas e dos aplicadores das mesmas é sintomático aos olhares da opinião pública, cada dia mais crítica a exigir a plicação de uma gama de direitos e de suas garantias como parte do chamado pacto social, o qual, parece obviamente em vias de dissolução.

Urge então repensarmos questões sociais que ainda não foram contempladas pelo direito, quer na acadêmia quando do dogmatismo arcaico, quer na aplicação das normas, e sobretudo dos princípios, vez que, o garantismo jurídico, primordialmente na esfera penal, e das políticas criminais, alicerçado pela nova criminologia, apontam para novos paradigmas num mundo em contingência e mutação. O descompasso do fenômeno jurídico, em relação à dinâmica da vida em sociedade, pode constituir-se mais uma vez, e cada vez mais em elemento gerador da insegurança jurídica de nossos dias. Precisamos tornar efetivas as lições de sábios pensadores, que exaltavam o ser humano e sua condição de dignidade, pois é e será sempre o homem, "a medida de todas as coisas".

Bibliografia

Andrade, Vera Regina Pereira de Andrade. A ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

JAKOBS, Gunther. Direito Penal do Inimigo. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2007.

MACHADO, Hugo de Brito. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2004.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2003.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.