Publicado em: VII Congresso Latino Americano de Sistemas Agroflorestais para a Produção Pecuária Sustentável, 2012, Belém - Brasil. Anais do VII Congresso Latino Americano.......... Belém: Universidade Federal do Pará, 2012. v. 1. p. 507-511. (ISSN 2238-457X) Título: Aspectos da criação animal em Sistema de Faxinal: relato de experiência em Ipê - RS Autores: Livio Sergio Dias Claudino, Marcos Abrahão Cardoso, Moisés da Luz, Rumi Regina Kubo, Luciano Figueiredo, Gabriela Coelho-de-Souza, Fábio dal Soglio Resumo:

A crescente homogeneização e artificialização dos meios de produção na agricultura trouxe inúmeras conseqüências negativas, principalmente em termos ecológicos e socioculturais. No entanto, constata-se diversas formas de resistência à essa padronização da agricultura e das relações sociais. Esse trabalho relata a experiência de uma família no município de Ipê, no Rio Grande do Sul, que maneja áreas de Sistemas Agroflorestais, integrada também a um sistema faxinal, onde são criadas diversas espécies de animais soltos (bovinos, suínos, aves) numa área com espécies florestais nativas e um pomar. Além disso, esses agricultores se constituem referência como guardiões de um banco de sementes crioulas. O trabalho foi elaborado no âmbito de abrangência do projeto “Fortalecimento das Agroflorestas no Rio Grande do Sul: formação de rede, etnoecologia e segurança alimentar e nutricional”, financiado pelo CNPq, e ainda encontra-se em andamento.

Introdução A forma predominante de exploração e uso dos recursos naturais, baseada na artificialização do meio e das condições de produção, através da simplificação das relações complexas nos agroecossistemas, trouxe inúmeras consequências negativas para manutenção de processos ecossistêmicos funcionais da natureza, e também das comunidades, que historicamente dependeram desses recursos e espaços para a sua reprodução (Gliessman, 2001). Embora ainda tímido, cresce o interesse por parte de pesquisadores, em conhecer as formas de resistência organizadas pelos diversos atores sociais, institucionalizados ou não, que podem se configurar como um contra-movimento à homogeneização dos meios de produção, e manutenção da biodiversidade natural, além de sua autonomia enquanto agricultores. Trata-se de uma demanda relevante compreender a dinâmica entre esses atores sociais na elaboração dos seus saberes e também, na manutenção dos seus agroecossitemas. Os princípios da Agroecologia se mostram um caminho estratégico para a conservação da agrobiodiversidade, promovendo a soberania alimentar, a diversificação dos sistemas de produção e a autonomia familiar, além de contribuir para a geração de trabalho e renda. O conhecimentos das experiências desenvolvidas, se mostra fundamental ao processo de transição de um modelo de produção altamente impactante para outro, que contemple os princípios da sustentabilidade socioeconômica e ambiental (Claudino, Lemos, Darnet-Ferreira, 2012). Sistemas Agroflorestais (SAF) podem se constituir em uma dessas formas de manutenção da biodiversidade, além de fortalecer a autonomia das famílias. No Estado do Rio Grande do Sul, as práticas agroflorestais tradicionais e a estruturação de novos SAF, ocorrem vinculadas principalmente às associações e cooperativas de agricultores de base ecológica, comunidades tradicionais, movimentos sociais e ONG’s. O envolvimento de instituições públicas de assistência técnica e de pesquisa, em propostas de trabalho com SAF é ainda incipiente, bem como o conhecimento científico relacionado ao tema (Cardoso, 2012). O presente trabalho foi elaborado no âmbito de abrangência do projeto “􀁜)ortalecimento das Agroflorestas no Rio Grande do Sul: formação de rede, etnoecologia e segurança alimentar e nutricional”, financiado pelo CNPq. Relata a experiência de uma família de agricultores "guardiões de sementes" no município de Ipê, no Rio Grande do Sul, com destaque para o manejo de um sistema faxinal. O sistema faxinal se caracteriza por uma livre assembleia de organismos animais e vegetais, visando a produtividade em um manejo conjunto, particularmente integrado ao contexto cultural, algumas vezes conduzido de forma coletiva, como um associativismo espontâneo no uso da terra, e outras vezes restrito ao âmbito familiar. São sistemas de cultivos típicos de imigrantes de origem ibérica que, individual ou coletivamente, consorciavam de modo livre animais, plantas úteis e quase sempre árvores, reunidos no entorno das habitações e que perduraram em algumas regiões de agricultura familiar herdeiras desta prática (Muniz, 2011). A sistematização dessas experiências faz parte do conjunto maior de objetivos, no âmbito do projeto que originou esse trabalho. O seu esforço de pesquisa procurou identificar as dificuldades e também as potencialidades dessas áreas de agroflorestas, de modo a levantar a partir da pesquisa, elementos importantes para construção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento rural. Materiais e métodos Essa experiência faz parte de uma pesquisa, ainda em andamento, iniciada em março de 2011, financiada pelo CNPq, e executada sob a responsabilidade da UFRGS e EMATER-RS. O objetivo do projeto é valorizar e fortalecer o conhecimento sobre as agroflorestas das diferentes regiões fitoecológicas do Estado, contribuindo para a afirmação de sua autonomia, segurança alimentar e nutricional, inserção em mercados institucionais, e articulação em redes das comunidades que as utilizam. Um dos subprojetos realiza o mapeamento das experiências (identificação geográfica com GPS) e sistematiza os dados, criando um banco de dados detalhado sobre as agroflorestas no Rio Grande do Sul. A execução da sistematização se dá a partir de visitas nas propriedades, e o levantamento efetuado, a partir de metodologias participativas, roteiro de entrevistas semi-estruturado e registro fotográfico (Chavez-Tafur, 2007, Kubo, 2009). Foram identificadas mais de 150 experiências de SAF e 24 foram selecionadas para sistematização, com a intenção de abranger a maior diversidade de experiências das diversas regiões fitoecológicas do Estado. O caso descrito está localizado na vila Segredo, no município de Ipê na Serra gaúcha, distante cerca de 200 km da capital, Porto Alegre. Resultados e discussão O SAF analisado pertence à família do agricultor Vilmar Menegat, que é composta pelo casal e um filho. São descendentes de imigrantes italianos, tendo chegado à região em meados de 1860. As atividades produtivas são desenvolvidas com base na mão-de-obra familiar e distintamente divididas: o pai maneja a parte da criação animal para produção leiteira (25 vacas) e os cavalos da família, auxiliando também no trabalho com os ovinos e os porcos; a mãe se encarrega da casa, horta doméstica e das aves (galinhas, gansos e perus); o filho, (Vilmar) maneja as áreas de pomar, o faxinal, a produção de grãos e outras variedades de mais de 35 cultivares. Ele é também o responsável pela gestão do banco de sementes instalado na propriedade. Os mais velhos mantêm ainda uma produção artesanal de vassouras e chapéus de palha a partir dos subprodutos dos cultivos. A família é referência na região por abrigar um banco de sementes, com mais de 70 variedades de diversas espécies, como feijão, milho, milho de pipoca, morangas e abóboras, entre outras. Para o banco de sementes, possuem uma unidade de beneficiamento, estruturada com alguns equipamentos como secadores e selecionadores, constituindo-se além de armazém, num local de encontro de agricultores e técnicos, para troca de sementes e realização de cursos. O interesse pela “guarda” das sementes é de tradição familiar, mas foi sendo fortalecido e apoiado pela participação em redes de agroecologia e encontros de sementes crioulas, ao qual possibilitou o apoio financeiro para construção da unidade de beneficiamento, por meio do Centro Ecológico1. A família vislumbra maior interesse por parte dos agricultores da comunidade para uso das sementes. A família sempre recebeu assistência técnica do Centro Ecológico e da EMATER, para desenvolver as atividades com a unidade de beneficiamento de sementes e com os SAF. O agricultor é membro de uma associação de produtores agroecológicos, e de uma associação que trabalha com o turismo rural na Vila Segredo, em Ipê. A participação na associação agroecológica confere a possibilidade de certificar e comercializar seus produtos semanalmente, na feira ecológica em Porto Alegre. A propriedade tem cerca de 50 ha, situada numa altitude média de 820m, apresenta áreas baixas com curso d’água e açudes, e topos de morro que apresentam interfaces com a paisagem dos campos de altitude, configurando um mosaico entre áreas naturais que são utilizadas como pastagem e áreas cultivadas (Figura 1). O local encontra-se na área de abrangência de Floresta Ombrófila Mista (Mata com Araucárias). Os cultivos olerícolas e de grãos são realizados nas áreas baixas, além da criação de peixes em dois açudes. Na área em relevo plano são cultivados a chia (Salvia hispanica.) e o amaranto (Amaranthus caudatus.). Nas áreas de encosta existe um SAF com pomar entre diversas espécies nativas, e uma floresta, que é área de preservação, averbada conforme as recomendações da legislação ambiental. Em uma área de encosta de morro, existe um SAF com pomar diversificado, baseado em manejo de espécies nativas como erva-mate (Ilex paraguariensis), araucária (Araucaria angustifolia), bracatinga (Mimosa scabrella), açoita-cavalo ( Luehea divaricata), camboatávermelho (Cupania vernalis), aroeira-preta (bugrinho) (Lithraea brasiliensis), canela-guaicá (Ocotea puberula), juntamente com caqui(Diospyros kaki), pêra (Pyrus Communis), ameixa (Prunus Domestica), videira (Vitis Vinifera), chuchu (Sechium edule), figo-da-índia (Ficus Carica), frutas cítricas e eucalipto, entre outras. A finalidade desse sistema é manter as espécies nativas, para futuramente comercializar madeira, e garantir frutas para o consumo familiar. Essa área também é destinada a eventos relacionados ao turismo rural/ecológico para agricultores, estudantes e demais interessados. O manejo é principalmente manual, com o uso de facão e enxada, mas também com roçadeira costal. Em relação ao uso das espécies nativas, ainda existe dúvida por parte da família acerca das questões legais, especialmente sobre as possibilidades de uso/corte e formas de licenciamento. O sistema de Faxinal se localiza na área baixa, estendendo-se para uma área mais alta. Compreende cerca de dois ha, e nele são criados os suínos rústicos, os ovinos, cavalos e em parte da área, os bovinos jovens pastejam soltos no SAF. O faxinal corresponde a uma área com floresta nativa e campos, e um antigo pomar, no qual se misturam vegetação nativa, com arbóreas implantadas posteriormente (como o caqui, cinamomo, frutas cítricas, entre outras), que se desenvolveram isoladas dos animais, por um período de cinco anos. Após esse período, os animais foram soltos e atualmente eles se alimentam dessas frutas cultivadas, e das frutas silvestres, como guabiroba, pitanga e sementes de araucária. Pode-se estabelecer duas categorias de faxinal em função da forma de manejo e ocupação pela espécie animal. No primeiro, formado essencialmente com floresta nativa e campos, pastejam os suínos, os ovinos, os bovinos e cavalos; numa segunda área, existe um antigo pomar e os bovinos não tem acesso. Nesta área existe o local de banho dos porcos. Além das frutas e folhas, no Sistema de Faxinal os suínos se alimentam do excedente da produção de grãos e hortaliças produzidos pela família, e, na fase final de engorda são confinados e tratados com um preparado à base de grãos e linhaça feito na propriedade. Esse diferencial na alimentação tem atraído muitos consumidores locais em função da banha enriquecida, como uma oferta de alimento funcional. Cerca de 80% da renda da família advém da produção de grãos (principalmente a chia, o amaranto, a linhaça, o milho, a pipoca), que são comercializados na feira ecológica em Porto Alegre2. O agricultor relata não poder comercializar na categoria sementes, devido a falta de registro específico, e por isso comercializa estes produtos como “grãos”. Na feira e também diretamente no estabelecimento são comercializadas frutas e derivados como doces e sucos, processados em agroindústria de modo associativo. O restante, na composição total da renda familiar vem da comercialização dos produtos de origem animal, como carne, banha, queijo, e embutidos, que são produzidos, processados e vendidos diretamente na propriedade. A economia da família conta com a aposentadoria dos pais idosos, e a produção para auto-consumo, que responde por mais de 90% das necessidades alimentares da família. Todos os produtos comercializados também são consumidos, além de muitas outras frutas (como caqui, laranja, bergamota, limão, pinhão, uva, pêra, ameixa, castanha-portuguesa, e outras frutas silvestres), hortaliças, criações do sistema de faxinal, e aves (pombas-domésticas, galinhas, gansos e perus). Em relação aos SAF, uma vantagem econômica constatada, é seu baixo custo de manutenção, sendo a maior demanda a própria mão-de-obra familiar. Nesse caso, a renda do sistema de faxinal é a principal do SAF e corresponde à cerca de 10% da renda familiar. Conclusões e recomendações Os SAF e o sistema de faxinal se mostram relevantes alternativas como formas sustentáveis de uso da terra, se constituindo em importantes ferramentas para a manutenção da biodiversidade, interação ecossistêmica e conforto para criação animal, constituição da renda, e manutenção da autonomia dos agricultores familiares. Sugere-se ações que permitam fortalecer a iniciativa da conservação das sementes crioulas, e variedades animais e vegetais resgatadas da cultura local, na possibilidade de integração entre produção de grãos, variedades alimentares de alta qualidade nutricional, madeiras, gomas, fibras e criação animal em uma mesma, sobrepondo em termos de tempo e área, culturas produtivas em diferentes estações do ano. Discussão com a comunidade, técnicos e órgãos competentes, sobre aspectos legais e possibilidades alternativas de negociação participativas em torno do uso dos recursos madeireiros de nativas, bem como sobre a coleta e o processamento de frutas nativas. Agradecimentos Ao MDA e ao CNPq, pelo financiamento do projeto “􀁜)ortalecimento das agroflorestas do Rio Grande do Sul: formação de rede, etnoecologia e segurança alimentar e nutricional”. Bibliografia Cardoso, M. A. 2012. Agrofloresta como ferramenta de autonomia: a percepção do agricultor familiar de base ecológica. Dissertação Mestrado Desenvolvimento Rural, Programa de Pósgraduação em Desenvolvimento Rural, Porto Alegre, BR, UFRGS. 100 p. Chavez-Tafur, J. 2007. Aprender com a prática: uma metodologia para sistematização de experiências. Brasil. AS-PTA. 58 p. Claudino, L. S. D; Lemos, W; Darnet-Ferreira, LA. 2012. Fatores capazes de interferir na transição agroecológica externa. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, v.5 (1): 56-62. Gliessman, SR. 2001. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 2ª edição. Porto Alegre. UFRGS. 653 p. Kubo, RR. 2009. Metodologias participativas e sistematização de experiências. In: Dal-Soglio, F.; Kubo, RR. (orgs). Agricultura e sustentabilidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 152 p. Muniz, M. A. 2011. Percepção de agricultores e a agrobiodiversidade em quintais no Rio Grande do Sul: expressões da luta por autonomia camponesa. Dissertação Mestrado em Desenvolvimento Rural. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural. Porto Alegre, BR, UFRGS. 198 p.