Mais uma noite sem dormir... Virando na cama, pensando... Pensando em como fazer para poder trabalhar, para inserir-me novamente na sociedade. Deixar de ser ninguém.

A mim faz falta levantar cedinho, ao som do despertador. Espreguiçar-me, sair da cama devagarzinho, tomar meu banho, um café com pão pra lá de apressado e ir para o ponto do ônibus, faça chuva ou faça sol. Entrar num ônibus lotado e torcer para que não quebre e que não bata, para não chegar atrasado ao trabalho.

Faz tanto tempo que não sigo essa rotina, que muitos já se acham no direito de chamar-me vagabundo, como se conseguir um trabalho só dependesse de mim. Muitas vezes eu até acredito.

É... Lá vou eu para mais um dia de esperança, de esperança de voltar a trabalhar.

Compro o jornal, leio que estão precisando, lá no Brás, de um segurança para uma loja.

Quando chego ao meu destino, vejo uma fila enorme de desempregados como eu. Que Deus nos ajude.

E não é que ele me ajudou?

Dirigi-me cabisbaixo para ser entrevistado. Perdi aquele meu jeitão meio prepotente. Ouço meu nome. A voz não me é desconhecida. Ergo os olhos e quem vejo? Vejo o Juca, filho do “seo” Pedro Mulato. Juca, meu conterrâneo, meu amigo de infância. Crescemos juntos lá no sertão da Bahia... Bons tempos aqueles em que não nos preocupávamos com nada. Éramos felizes correndo descalços, chutando uma bola de pano...

Ficamos felizes em nos encontrar. Tanto tempo... Em nome dos velhos tempos...

Graças a Deus eu estava empregado. Começaria no dia seguinte. Deveria usar terno, gravata, sapatos engraxados, pra lá de brilhantes.

Mas eu... Eu não tinha nada. O jeito era pedir emprestado. Afinal, os pobres sempre se ajudam, não é?

Dia seguinte lá estou eu. De volta à minha rotina, de volta à vida útil. Volto a ser gente novamente, com salário no fim do mês, com minhas contas pagas, nada devendo a ninguém.

Não precisaria mais pedir nada a ninguém. Só deveria pagar a quem pedi.

No início, o trabalho foi difícil para mim. Eu precisava cuidar para que pessoas mal vestidas, cara de fome, com jeito meio duvidoso, não entrassem na loja e se entrassem eu deveria ficar por perto, pois poderiam causar algum dano.

Com o tempo fui me acostumando e o que era difícil tornou-se fácil. Esqueci rapidinho meu passado inglório, as minhas noites insones, o estômago roncando a pedir alimento. O morar de favor e o fingir não perceber que a hora de ir embora já tinha passado a muito do tempo que eu fingia não ver. Fingia não ouvir as indiretas do meu primo. Coitado, tinha pouco e dividia comigo, que era um peso morto em sua casa. Brigava com a mulher e o motivo era eu... Mais uma boca para comer. Mas agora eu daria um quarto do meu salário para eles. Não era muito, mas era o que eu podia.

O tempo foi passando, fui gostando do que fazia. Meu coração foi endurecendo.

Eu até me divertia quando enxotava alguém da loja. E ria. Afinal, ele ou ela não eram nada, ninguém produtivo, não compravam nada. Eu me sentia muito, muito importante na minha função importante. Meu chefe elogiava minha competência.

Ao chegar em casa, fazia um pouco de levantamento de botijão de gás, para ficar fortão e após o banho, ia até o bar do senhor João para conversar um pouquinho, jogar conversa fora. Afinal, ninguém é de ferro. Só trabalhar e trabalhar não dá. Divertia o pessoal contando minhas proezas. Ríamos até que a fome batia e eu ia pra casa jantar. Jantar o que eu mesmo preparava e modéstia à parte preparava muito bem. Sempre fui um bom cozinheiro, afinal, nunca reclamei de mim... Como se possível fosse.

Com o passar do tempo o humano em mim foi se distanciando. Eu não me condoia de nada e de ninguém. Quando tinha platéia então, eu me esmerava. Empurrava o sujeito e dava “uma bica no traseiro”. Jogava no chão mesmo e ai dele se ficasse bravinho. O valente/covarde que existia em mim aparecia enfurecido. Eu nem lembrava que o sujeito tinha mãe.

O tempo foi passando e como a minha fama de destemido e valentão foi crescendo, vesti a camisa e a levei para o meu dia a dia.

Que ninguém me olhasse feio. Eu não gostava. Punha pra correr debaixo de pancada.

Tão envolvido fiquei com a importância que me dei, que esqueci até de casar. Só tinha umas “ficantes” e nada mais. Esqueci da promessa que fiz pra minha linda baianinha, que ficou muito tempo a esperar que eu mandasse dinheiro para ela vir para São Paulo me encontrar. E casar, é claro. Moça virgem, direita. O seu primeiro beijo de amor fui eu quem deu e o meu primeiro beijo de amor, foi ela quem me deu. Aprendemos juntos a beijar. Tantos planos, tantos sonhos. Quantas lágrimas derramei por ela. Lágrimas de saudade, lágrimas de amor que o tempo foi apagando. Fiquei vazio, órfão de amor. Muitas vezes penso nela, mas de que adianta? Disseram-me que ela casou, tem dois filhos que poderiam ter sido meus. Será que têm o nome que escolhemos para eles? Que ilusão... Quanta quimera. Enquanto ela dorme envolvida por braços que poderiam ser os meus, eu durmo numa cama vazia de amor, de um amor que tem o nome dela e que ninguém nunca vai preencher... Só a saudade.

Então, torno-me de novo o valentão, o destemido.

Fui chamado para ser “leão de chácara”. Aceitei. Vou ganhar mais. Vou ser mais importante. A grã-finada vai comer na minha mão. Sou eu quem vai cuidar da segurança dessa gente.

Passam-se os dias, passam-se os meses, eu vou ficando mais velho, já beirando os quarenta, meio que velho para a profissão. Mas, como sempre fui bom e botei muita gente para correr, tenho certeza que não perderei meu emprego tão cedo. Tenho confiança em mim.

Ou melhor, eu tinha... Até ontem, quando fui chamado para ouvir que com a minha idade, a agilidade já não era a mesma, etc. e tal.

A minha valentia foi para o “brejo”. Desconcerto-me, afinal, eu o valente, o bom, o mais conhecido no pedaço... Eu? Desempregado? E agora o que faço? Eu, que só sabia empurrar, bater, estufar o peito e jogar o bêbado na rua...

Voltar para minha terra, procurar minha baianinha?

Ficar por aqui e começar tudo de novo?

Fazer o que? Trabalhar com o quê? Na minha idade, quase sem estudo.

O dinheiro que juntei não dá para muito tempo...

Foi então que comecei a beber, fraco que era e não o sabia. De empurrador passei a ser empurrado. Passei a ser motivo de chacota dos que me conheceram em minha melhor forma. A “maldita” me aquecia, era minha amiga e companheira nas noites de frio. Era ela que, tirando minha dignidade, fazia com que eu pedisse, com que eu implorasse por um dinheiro. Não para comer, mas para tê-la comigo. Essa dependência me escraviza, paspalho que sou.

Muitas vezes, ao passar pelos lugares onde trabalhei, ao ver pessoas fazendo o que eu fazia, penso nas voltas que vida dá.

 

 

Heloisa Pereira de Paula dos Reis