Entre os anos de 1910 e 1911 surgiu na Alemanha um estudo psico-sociológico de Grete Meisel-Hess sobre a crise sexual. Todavia, não foi dada grande relevância ao estudo efetuado, visto a época e a sociedade que ambientalizava.

Entretanto, cabe aqui voltarmos um pouco no tempo e trazermos contribuições belíssimas dessa obra do século passado para entendermos que as questões de relações de afeto baseadas no amor, na cumplicidade, no respeito e na lealdade, já eram motivos de estudos antes mesmo de termos a real idéia do que isso queria dizer.

O fato de que o livro de Meisel-Hess careça de uma série de qualidades científicas, o fato de que se possa reprovar a falta de método e análise, o fato de que ele não siga um procedimento sistemático, e que seu pensamento seja alguns momentos inseguro e sinuoso, e que repita assuntos já tão discutidos na atualidade, não pode diminuir de modo algum o valor desse trabalho.

Um hálito de frescor se depreende do livro. A investigação da verdade enche as páginas vivas e apaixonadas desta exposição, na qual reflete uma vibrante alma de mulher, que conhece perfeitamente a vida e o que espera dela.

Os problemas que Meisel examina nos são conhecidos. Todos nós temos meditado sobre eles, vivemo-los em toda a sua dor. Não há nenhuma pessoa que depois de refletir sobre esse problema não haja por um caminho ou por outro, às mesmas conclusões gravadas nas páginas do livro A Crise Sexual.[1]

Uma das partes do ensaio da autora, no qual, passaremos também a analisar, se dedica a estudar os fins reais que a moral sexual possui sobre o homem, bem como sua contribuição para o desenvolvimento de sentimentos de solidariedade, companheirismo e, conseqüentemente, o enriquecimento de sua psicologia.

Depois de uma análise sistemática, Meisel-Hess chega a conclusão de que somente com uma fundamental transformação da psicologia humana se poderá chegar às relações de verdadeiro amor, dotadas de uma afinidade real, em uniões que nos tornem felizes.

Quais eram os defeitos fundamentais e sombrios sobre o matrimônio legal existente na época? Esse estava fundado em dois princípios igualmente falsos: a indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade da posse absoluta de um dos cônjuges, do outro.

A indissolubilidade do matrimonio legal estava baseada numa concepção contrária a toda ciência psicológica; na invariabilidade da psicologia humana no transcurso de uma longa vida. A moral contemporânea obrigava o homem a encontrar sua felicidade a qualquer preço e, ao mesmo tempo, lhe exigia que descobrisse essa felicidade na primeira tentativa, sem equivocar-se nunca. Necessariamente, tinha o homem, que encontrar uma alma que se harmonizasse com a sua na primeira escolha, que o fizesse feliz no casamento para sempre.

Pouco importava para a sociedade que a alma e o coração de uma mulher, que houvesse se equivocado em sua escolha, estivesse destruído e decepcionado. A delicada flor da moral sexual era uma felicidade adquirida às custas da escravidão da mulher à sociedade. Observava, Meisel-Hess, com grande tristeza, que "A transformação das uniões amorosas no curso da vida humana e durante o processo de evolução de uma individualidade é um fato que terá de ser reconhecido pela sociedade futura como algo normal e inevitável".

O segundo fator que envenenava o matrimônio legal, segundo o entendimento da autora, era a idéia de propriedade, de posse absoluta de um dos cônjuges por outro. Assim, o absolutismo da posse encerra, irremediavelmente, a presença contínua desses dois seres, associação que é tão doentia para um como para o outro. A idéia da posse não deixa livre o eu, não há momentos de solidão para a própria vontade e, se a isso se acrescenta a coação exercida pela dependência econômica, já não fica nem sequer um pequeno recanto próprio. A presença contínua, as exigências inevitáveis que se fazem ao objeto possuído são a causa de como um ardente amor se transforma em indiferença, com raciocínios insuportáveis e mesquinhos.

Com efeito, temos que necessariamente que estar de acordo com Meisel-Hess quando diz "uma vida em comum demasiado limitada é a causa principal que faz murchar a delicada flor primaveril do mais puro entusiasmo amoroso. Quantas precauções uma alma deve ter com a outra, que imensas reservas de afetuoso calor são necessárias para que se possa colher, já no outono, os frutos saborosos de uma profunda e indissolúvel adesão entre duas pessoas".

Não é só isso. A autora continua sua explanação fazendo observações quanto os fatores de indissolubilidade e propriedade, fundamento do matrimônio legal, que exercem um efeito nocivo sobre as almas humanas. Isso se deve pelo fato de que esses dois fatores exigem poucos esforços psíquicos para conservar o amor de seu companheiro de vida, porquanto está ligado à ele, indissoluvelmente, por correntes exteriores. Contribuindo, portanto, para o empobrecimento do espírito e não contribuindo para a acumulação da reserva "do grande amor".

Com grande audácia, a autora trouxe a tona questões sobre a união livre. Relata que essa união traz consigo aspectos igualmente sombrios, uma vez que o homem de sua época não é capaz de sentir o verdadeiro amor. Afirma que, "o homem atual não tem tempo para amar. Nossa sociedade, fundada sobre o princípio da concorrência, sobre a luta, cada vez mais dura e implacável, pela subsistência, para conquistar um pedaço de pão, um salário ou um ofício, não deixa lugar ao culto do amor" e segue "não nasceu ainda o homem forte e consciente que seja capaz de considerar o amor como parte integrante na totalidade de seus objetivos vitais. Por essa razão, o homem atual, absorvido por sérios trabalhos, prefere comprometer-se com uma mulher, dando-lhe seu nome e tomando sob sua responsabilidade a carga de uma família legal. Tudo isso é melhor do que perder um tempo tão valioso e dilapidar suas energias nas horas entregues aos prazeres do amor".

Contudo, a união livre sofria a conseqüência da falta de consciência e de um dever interior. Não creditava, assim, a autora, que essa forma de união sexual fosse capaz e, forte o bastante, para ajudar a humanidade a sair da encruzilhada em que se encontrava. A solução para esse complicado problema seria mediante uma reeducação fundamental de toda a psicologia humana. Transformação, essa, de todas as bases que condicionam o conteúdo moral, principalmente, as de caráter sociais. Assim, entre essas mudanças, correspondiam as reivindicações sociais feministas: independência econômica da mulher, verdadeira proteção e segurança à maternidade e a infância, luta contra a prostituição em sua base econômica, supressão da noção de filhos legítimos e ilegítimos, substituição do matrimônio religioso pelo matrimônio civil, facilmente anulável.

Com perspicácia intelectual, Meisel-Hess, compreendeu que toda a atenção da sociedade, no que se refere à educação e à formação do espírito, no domínio das relações sexuais, deve modificar-se através das mudanças externas e internas de cada um, com o decorrer dos tempos. As conquistas sociais, importantes são, mas o principal é o "aumento do potencial do amor verdadeiro entre a humanidade".

Prosseguindo na sua investigação, descobre nova solução. Onde não existe o amor verdadeiro, substitui-se pelo amor jogo. Isso devido ao fato de que para se chegar ao verdadeiro amor, em toda a humanidade, é preciso passar por difícil, porém enobrecedora, escola do amor.

Esse amor jogo ocorreria no momento em que dois seres se apaixonam unicamente por causa de uma simpatia mútua, que só esperam um do outro a amabilidade e o sorriso da vida, não podem permitir que torturem impunemente a sua alma, não podem consentir que se esqueçam de suas personalidades nem que ignorem seu mundo interior. Exige, assim, maior atenção mútua, delicadeza em todas as suas relações, desenvolvendo a intuição e a sensibilidade.

Seria um ensinamento de entregar-se inteiramente, uma virtude superior. Como um passo para se chegar ao verdadeiro amor, que descreve como sendo "uma força que quanto mais se consome, mais cresce. Amar sempre, amar profundamente, em todos os momentos da nossa vida, amar sempre a cada vez com maior abnegação, é o destino ardente de todo o grande coração".

Através dessa pequena memória obtivemos uma grandiosa contribuição, com quase cem anos de história, podemos observar que as relações afetivas, construídas sobre os pilares do amor, são de profunda relevância para toda e durante toda a humanidade.

Hoje, em pleno século XXI, vivemos em uma sociedade com maiores conquistas sociais. Conquistas essas que muito contribuíram para aproximar a igualdade entre homens e mulheres e que acabou por contribuir igualmente para transformar o pensamento humano da relação pessoal.

Lutas femininas por direitos, movimentos que persistiram durante toda a evolução da mulher e que se mantém ainda hoje, foram capazes de não só garantir igualdade legal entre ambos os sexos, mas proporcionar uma mudança na busca de suas relações. O que, de uma forma ou de outra, acabou por avisar ao sexo masculino que as mulheres desejavam mais. Assim, não iriam se submeter às antigas relações de aprisionamento. Desejavam sim, uma vida de felicidade, de companheirismo e de lealdade, ao lado de um homem que fosse capaz de compreender e aprender o que é uma relação de afeto.

No âmbito do Direito, não ficamos para trás. Nossas legislações acompanharam as evoluções e, hoje, consagram relações baseadas no afeto, sejam elas uniões estáveis ou relações socioafetivas de filiação.

Todavia, apesar de anos terem se passado, direitos e igualdades terem sido conquistados, a busca pela transformação psicológica da humanidade persiste. Persiste em relação aos direitos das uniões homoafetivas que, apesar de estarem presentes em grande número na nossa sociedade, é tratada de forma periférica e discriminada.

Deveremos encontrar uma solução alternativa, como entendeu Meisel-Hess com sua proposta de amor jogo, proporcionando uma caminhada em passos lentos, ou devemos mobilizar-nos em busca de alterações no pensamento da sociedade, para almejar a igualdade de direitos entre as uniões homossexuais e as uniões heterossexuais? Pergunta que vaga entre o nosso tempo, mas ainda sem solução.

Podemos nos glorificar pelo fato de que vivemos em uma sociedade onde encontramos homens capazes de reconhecer o amor e entregar-se a ele. Os homens fracos, ocupados, indispostos para entregarem-se aos prazeres do sentimento, já não são a maioria. Mudanças de comportamento, alterações na sociedade, econômica e politicamente, trouxeram mulheres e homens mais avançados e abertos ao afeto. Entretanto, nossa luta não encerra por aqui. Mais direitos devem ser conquistados e, possivelmente, através de mudanças de (pre)conceitos de cada um.



[1] Grete Meisel-Hess. A Crise sexual,