Uma reflexão mais detida do que ocorreu no Rio de Janeiro, na cidade de São Paulo e em diversas cidades de Minas Gerais e em Santa Catarina, no início de 2011, a exemplo do que ocorreu e no sul do país, há poucos anos atrás (e que está se repetiu em janeiro de 2011) deveria nos despertar para um fato: a Natureza tolera a violação dos seus limites até certo ponto. A Natureza é revanchista.

Por que o Homem insiste em violar os limites impostos pela Natureza? Ou seja, por que a teimosia recorrente em ocupar áreas que, potencialmente, podem vir a desabar, como é o caso das encostas serranas da linda região das serras do estado do Rio de Janeiro? Ou dos vales, como no caso da cidade de São Paulo, ou dos estados de Santa Catarina e de Minas Gerais? Por mais avançados que sejam os recursos tecnológicos que o Homem pode desenvolver, eles nunca serão suficientes para impedir que a Natureza siga o seu curso.

A ocupação de encostas, de fundo de vales, margens de rios e de outras regiões que o tempo demonstrou serem impróprias para o estabelecimento de assentamentos humanos, tanto residenciais, quanto produtivos, têm sido severamente punidas. Tais ocupações podem ser consideradas uma intrusão humana nos “espaços de manobra” da Natureza. Ela necessita de certa margem para interagir consigo mesma, isto é, “a Natureza necessita de espaço para interagir com ela mesma”.

Não podemos considerar as inúmeras catástrofes que assistimos em janeiro de 2011 como sendo independentes dos fenômenos naturais – sobre os quais não temos controle algum, conforme está sendo demonstrado de modo insofismável. As consequências das chuvas não são independentes de declives de terrenos, nem de rios e nem de fundo de vales. Terrenos com declives, rios e fundo de vales, por sua vez, não são independentes dos regimes de chuvas, nem uns dos outros.

A Natureza está certa, e o Homem, errado, quando se trata da ocupação e do uso do território. Os fatos recentes estão demonstrando isso. Tanto nos casos do passado recente, em Santa Catarina, quanto no início de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, em Minas Gerais (e, também, em Santa Catarina) e em qualquer época, na cidade de São Paulo, assistimos a destruição de casas, empresas e vias. Isto é, em certas áreas, quando chove, casas, empresas e vias são total ou parcialmente destruídas. Ao lado dos prejuízos materiais, existem outros associados à perda de vidas humanas, ao lado dos traumas, com os quais as lembranças de tais fatos assombrarão todos os dias os que estiveram envolvidos em tais episódios e perderam o que tinham – bens e entes queridos.

Se formos mais criteriosos, poderemos dividir os benefícios e os custos em três categorias, ao invés das duas tradicionais. Tradicionalmente, dividimos os benefícios e os custos em privados e sociais. Os privados são aqueles que são absorvidos pelos indivíduos, exclusivamente. Por exemplo, os custos das residências que foram destruídas pelos deslizamentos de terra, ou que foram arrastadas pelas águas transbordantes dos rios, recaem integralmente sobre os seus respectivos proprietários.

Quem reside em outra parte da região serrana do Rio de Janeiro, ou nas partes mais elevadas das cidades, onde as cheias dos rios não chegam, não sofreram prejuízo algum. No entanto, os custos das vias públicas destruídas ou danificadas devido às cheias de rios e deslizamentos das encostas, serão arcados por toda a comunidade da área. Os que não tiveram suas residências afetadas pelo que vem ocorrendo, assim mesmo terão parte dos seus impostos destinados a recuperar as vias atingidas, ao invés, por exemplo, de serem destinados à saúde, à educação, à segurança, etc.

Além desses, mesmo sem haver estado envolvido nas áreas atingidas, o restante da comunidade arca com os custos dos problemas causados pela violação das restrições ambientais. Onde ocorreram as catástrofes “naturais”, a cidade pára, há necessidade de mobilização social para auxiliar as vítimas, escolas se transformam em abrigos (e em necrotérios…), as atividades produtivas têm que ser suspensas, pois toda a comunidade passa a se envolver na tragédia, movida por um sentimento de primeira grandeza de solidariedade e amor humano. Mas isso, não evitará que fatos como os que assistimos em janeiro de 2011 (e há anos atrás) venham se manifestar, nem tampouco, regulará a intensidade de sua manifestação.

O que deveríamos fazer é dividir os custos e os benefícios em três categorias, ao invés de duas. Além dos custos e benefícios sociais e privados, deveríamos classificá-los em sociais, privados e ambientais, devendo ser estes últimos independentes dos custos e benefícios sociais. A tendência em considerar os custos e benefícios ambientais como parte integrante dos custos e benefícios sociais é enganosa. Veja-se o caso atual da região serrana do Rio de Janeiro, ou o caso do passado recente no estado de Santa Catarina. Apesar dos elevados custos sociais e privados, houve benefícios ambientais. Isso pode ser paradoxal, mas é verdade. A Natureza se libertou do Homem, com uma fúria incontida, expulsando-o de espaços sobre os quais ela, Natureza, demonstrou estar no controle, e provou ser o Homem incapaz de competir com ela. Mesmo com as dores das perdas humanas e materiais que temos e estamos assistindo, devemos, forçosamente, reconhecer que a Natureza apenas reconquistou o que era seu, e que o Homem não tem condições de reter. Ou seja, o Homem procedeu a uma ocupação frágil, que a sua tecnologia mais avançada permitiu, mas não é suficiente para enfrentar a Natureza. Isto é, em algumas regiões, na queda de braço entre o Homem e a Natureza, esta venceu. Ou vamos negar que os fatos constatados na região serrana do Rio, nos vales catarinenses e em certas áreas de São Paulo deram vitória ao Homem? Há quantos anos, nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, determinadas regiões da cidade de São Paulo, sistematicamente, têm problemas de casas destruídas e empresas danificadas em função das chuvas (que estão sempre acima da média esperada…)?

Passada a estação chuvosa, retoma-se as velhas e conhecidas medidas paliativas de sempre: ampliar rede de captação, construir galerias, etc. Por que não assumimos, de uma vez por todas, que são medidas ineficazes, ineficientes e sem efetividade real? Podem, aparentemente, resolver o problema por um ano. Mas, no outro ano, independente dos recursos gastos, os transtornos reaparecem. Qual a causa disso? Obras mal feitas? Faltaram recursos? Nada disso. A causa disso é a teimosia do Homem em prosseguir com uma ocupação rejeitada pela Natureza.

Qual a solução, então? Simples: a desocupação das áreas na quais o Homem, constantemente, insistentemente, permanentemente e sistematicamente sofre quando a Natureza se manifesta. Em vez de continuar em um embate inútil e infrutífero contra a Natureza, temos que reformular os nossos processos de ocupação e de uso do território. Por exemplo, após a destruição completa e total de certas áreas e determinados setores na região serrana do Rio de Janeiro, o que será feito? Vamos reconstruir tudo, exatamente do mesmo jeito, no mesmo lugar, desafiando descaradamente a Natureza para outra queda de braço, no futuro? E achando que vamos vencer? Ingenuidade! Puro desperdício de tempo e de dinheiro! Podemos reconstruir, com a mais alta tecnologia disponível hoje, mas isso não evitará que tragédias semelhantes venham a ocorrer no futuro. Então, por que insistir? O correto seria determinar que, nos lugares que o Homem anteriormente ocupava, e que a Natureza o desalojou, não venha mais a ser ocupado. Seria como que uma restituição do Homem à Natureza daqueles espaços que ela reclamou para si, expulsando impiedosamente o Homem de lá.

Áreas que sofreram com estas manifestações de força e de poder, por parte da Natureza, deveriam ser abandonadas ao sabor desta última (que sabiamente saberá o que fazer nelas). À medida que problemas similares, associados a fatores climáticos se manifestarem, da forma recorrente, como acontece na cidade de São Paulo, no estado de Santa Catarina – para mencionar, apenas, os casos mais evidentes e recentes, dos quais nos lembramos com clareza – a Sociedade deveria se posicionar pela desocupação dessas áreas.

Não estamos afirmando que isso será fácil. Essa transição da desocupação de áreas onde o Homem encontra-se secularmente estabelecido, em favor da Natureza não será um processo indolor.

Tradicionalmente, famílias estão estabelecidas em certas áreas há gerações, muito embora, sofrendo com os mesmos problemas, também há gerações… No caso de empresas, a situação não é diferente. Há anos, desenvolveram o “ponto”, mesmo que, em certos momentos, esse “ponto” fique absolutamente inacessível aos clientes… O abandono paulatino, por parte do Homem, das áreas de onde ele foi expulso pela Natureza seria uma forma mais suave de negociação entre a Natureza e a Sociedade. Medidas de desapropriação mássica, de todas as áreas nas quais suspeitamos que possam a ser seriamente atingidas pela Natureza, através de catástrofes climáticas, apesar de parecerem sensatas, podem gerar forte resistência por parte das comunidades instaladas nelas. Poder-se-ia, inclusive, argumentar que não se tem certeza de que, algum dia, tais áreas serão atingidas e sofrerão com as surpresas que a Natureza lhes reserva. Deste modo, para se encontrar um meio termo entre aquilo que poderia ser considerado um conjunto de medidas precipitadas – desapropriações “indiscriminadas” – e a teimosia reincidente, por parte do Homem em ocupar lugares impróprios para a vida e para as atividades produtivas, o mais sensato seria, quando fatos como os que assistimos no início de 2011 vierem a ocorrer, as áreas mais severamente atingidas passem a ser consideradas áreas de proteção ambiental permanente.

E existem outros problemas associados a um pretenso remanejamento de pessoas e atividades de um local para outro. Vamos assumir que estamos de acordo com o fato de que pessoas e atividades encontram-se em áreas que põem em risco vidas e bens. E que todos estariam de acordo em sair de onde se encontram. Questão: para onde? Ninguém pode afirmar que esta seja uma resposta simples e fácil. Contudo, torna-se cada vez mais, imperativo encontrá-la – a não ser (claro!) que alguém concorde que, afinal, só setecentas pessoas mortas (e outro tanto desaparecidas) como no caso da região serrana do Rio, seja irrelevante, e que os prejuízos materiais mostrados pelos noticiários sejam desprezíveis…

O que se torna relevante, para a Sociedade, neste momento, é a necessidade de se rever por completo os critérios que têm determinado os padrões de ocupação e de uso que o Homem faz do território. No caso das cidades, que é onde os problemas que estamos tratando, se apresentam mais explicitamente, temos que desenvolver um novo conceito de ocupação urbana. Estamos condicionados a uma concepção de área urbana contínua. Isto é, a ocupação do território na forma urbana tem implicado em, ao se defrontar com uma parte da área que se mostra inadequada para o uso e de difícil ocupação, passar por cima, adaptá-la “na marra” para atividades e usos para as quais ela se mostra absolutamente inadequada. Essas áreas se consolidam, cristalizam-se na forma em que hoje as encontramos, a despeito dos problemas que sofram regularmente. O adensamento das áreas construídas, por sua vez, conduz ao avanço contínuo em direção a novas áreas, muitas das quais, mais uma vez, se apresentam inadequadas à ocupação e ao uso. Mas insistimos em avançar sobre elas. No final, estamos nos defrontando com o que assistimos nas reportagens dos noticiários.

Uma proposta deste tipo significa que a ocupação do território deve ir até o ponto em que as condições sejam favoráveis, deter-se aí e prosseguir a partir do ponto em que as condições se tornem novamente favoráveis. Isso quer dizer que teríamos uma urbanização descontínua, ou seja, um processo de urbanização (casas, vias, empresas juntos) se estendendo até um determinado ponto. A partir daí, nos defrontaríamos com espaços naturais, isto é, áreas deixadas como forma encontradas, nos primórdios da ocupação sistemática da região. E, em seguida, com a retomada do processo de urbanização. Isso significaria que, para irmos de um ponto a outro da cidade, ao invés de seguirmos em linha reta, teremos que contornar essas áreas não ocupadas. Uma vista aérea da cidade mostraria, então, o tecido urbano intercalado com áreas naturais de preservação – um padrão urbano descontínuo – e um sistema viário com curvas, ao invés de um padrão linear, ao qual estamos habituados. Além de evitarem os custos e transtornos que sua ocupação causaria, estas mesmas áreas se constituiriam em áreas de lazer e de refúgio para a vida silvestre da região. Indiscutivelmente, seria imperativo um processo de conscientização (do qual podemos duvidar que atualmente exista nas nossas sociedades) para que as áreas naturais de preservação sejam áreas naturais de preservação, e não, depósitos de lixo de entulho, etc. e que os cursos d’água não venham a se tornar “parte da rede coletora de esgotos”. Isso pode ser difícil, mas não impossível.

Fatalmente, surgirão visões míopes e mentes tacanhas, escondidas sob o manto do espírito prático e pragmático, que argumentarão sobre os elevados custos que um processo destes implicaria. Contra tais argumentos, podemos contra argumentar que nada se compara com os custos associados a perdas de vidas, de bens e dos transtornos que a resignação com os atuais padrões de ocupação e uso do território têm causado, de forma contínua, ao longo dos anos. Não são fatos que ocorrem uma vez a cada século, mas sim, todos os anos. E, afinal, tais custos, querendo ou não, seriam os custos da preservação ambiental. Pois se assim não fosse, afinal de contas, quais seriam os custos da preservação do meio ambiente? Como seriam estabelecidos e computados?

Temos que nos conscientizar que as questões ambientais não se limitam ao desmatamento e à preservação de espécies em risco de extinção. Devemos encarar os fatos que a imprensa tem noticiado, estes dias, como problemas ambientais, por excelência. Problemas ambientais não se limitam à Amazônia, à Mata Atlântica, à preservação de baleias, tartarugas, micos-leões-dourados e pandas. A principal razão para a preservação ambiental é assegurar a preservação da espécie humana. O Homem é o objeto de todos os movimentos de preservação do meio ambiente. Torna-se, no entanto, imperativo esclarecer e conscientizar que a preservação das demais espécies são instrumentos para a preservação do próprio Homem. Não é por romantismo, nem por misantropia e, muito menos, por excentricidade, que os primeiros movimentos ambientalistas surgiram. Mas sim, pelo imperativo de assegurar a continuidade da sobrevivência da espécie humana. O que assistimos na região serrana do Rio de Janeiro pode ser considerado como uma ameaça à “fauna humana”. Gostando ou não, somos todos parte integrantes e indissociáveis de uma mesma realidade natural, e somos regidos pelas mesmas leis que regem as demais espécies vivas. E deveríamos sempre nos lembrar que, na queda de braço entre a Natureza e o Homem, quando o Homem perde, a Natureza ganha: no caso da região serrana do Rio de Janeiro, o Homem perdeu casas, bens e a própria vida, mas a Natureza ganhou o seu espaço de volta. Vamos continuar com essa disputa? Na relação entre o Homem e a Natureza, quando para o Homem é menos, para a Natureza é mais.

Qualquer posicionamento contrário à preservação das demais espécies vivas, das florestas, matas, cursos d’água, etc., deveria ser considerado crime de lesa humanidade. Seja por ignorância, seja por uma teimosia obstinada, toda e qualquer infração contra a Natureza deve ser severamente punida. Pois, ainda que, aparentemente, não apresente qualquer relação com a continuidade da vida humana na superfície do planeta, a falta de cuidados com o meio ambiente tem custado vidas humanas. Ou o que aconteceu na região serrana do estado do Rio de Janeiro não expressa isso? Pare e pense: por que ocorreram os fatos que assistimos nos noticiários das primeiras semanas do mês de janeiro de 2011?

Porém, acima de tudo, o que deveria causar perplexidade a toda a Sociedade, seria o fato de insistir na recuperação das áreas atingidas para fins de ocupação e uso humanos. Essa teimosia recorrente é enganosa e criminosa. Por mais avançada que seja a tecnologia que vier a ser utilizada na reconstrução das moradias, vias, etc. não serão “páreo” para a Natureza. Pode ser que não seja no próximo ano, nem nos seguintes. Mas, quando a Natureza voltar a se manifestar, duvidamos que a tecnologia, por mais avançada e sofisticada que seja, tenha competência para fazer frente ao ímpeto da Natureza. As chuvas cairão, os deslizamentos ocorrerão, vidas e bens serão ameaçados e atingidos. O ideal é pensar melhor, agora, tomar a decisão de considerar as áreas atingidas como áreas naturais e transformá-las em áreas de preservação permanente.

Porque se não fizermos isso agora, depois, não adianta chorar sobre a chuva derramada, e sobre o morro desabado…