Imagine um etnógrafo observando uma praia tropical e um barco se afastando. Seu diário, repleto de anotações, precisa agora ser analisado e interpretado. É hora de terminar o trabalho de campo. Não, não é necessário abandonar uma distante terra selvagem e retornar para o conforto do lar. Basta pegar o controle e desligar a televisão. No dia seguinte, no mesmo horário, o trabalho recomeça, acompanhando o destino do barco no próximo capítulo.

Do o início do século XX até hoje, o advento da modernidade encurtou distâncias e expandiu os valores da sociedade ocidental para todos os cantos do planeta. Os grupos autóctones praticamente desapareceram, promovendo transformações tanto nos métodos quanto nos objetos dos antropólogos. Em relação ao objeto, os grupos isolados, cada vez mais raros, deixaram de ser os únicos estudados. Os pesquisadores passaram a direcionar suas atenções para os camponeses e, posteriormente, compreenderam que a diversidade cultural das grandes cidades se apresentava como um ótimo campo de estudos. Neste novo contexto, os elementos associados à modernidade, como os meios de comunicação, emergiram como legítimos objetos de estudo antropológicos, capazes de informar elementos essenciais da sociedade abrangente, apesar do persistente preconceito de parte da academia.

No Brasil, as telenovelas, pela ressonância que possuem junto à população, em todas as faixas etárias e classes sociais, é um campo privilegiado para compreender nosso sociedade. Seguindo este princípio, Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes, Esther Hamburger e Heloísa Buarque Almeida empreenderam importantes estudos sobre a importância das novelas no Brasil, de forma que, cotejando as três obras, é possível compreendermos como este gênero televisivo reflete nossas relações sociais e estabelece um diálogo constante com a população, especialmente no tocante à relação entre os aspectos "modernos" e "tradicionais" de nossa sociedade.

Para Hamburger, a morte de Daniela Peres teria fortalecido a noção de que as telenovelas influenciam e estimulam, positivas ou negativamente, comportamentos coletivos e individuais. Este ponto de vista é bastante difundido, tanto pelo senso-comum quanto pelos discursos de muitos intelectuais marxistas, que sempre associaram o interesse pela novela, assim como outras atividades relacionadas ao lazer, como o carnaval e o futebol, a uma atitude alienante. Segundo a mesma lógica, Almeida também afirma que a televisão influenciaria os costumes e motivaria o consumismo. No entanto, no trabalho desta última autora, não aparece em quais situações a televisão exerceria sua influência.

Gomes, por sua vez, é mais precisa em suas análises sobre a relação entre as novelas e a nossa sociedade. Seguindo os passos de Weber, a autora afirma que existe uma adequação causal entre o gênero telenovela e certas representações existentes na sociedade brasileira, especialmente aquelas relacionadas às formas de controle social e resolução de conflitos. O problema das telenovelas, ainda segundo Gomes, estaria no fato delas terem se tornando um gênero narrativo televisual exclusivo, predominante numa sociedade em que a escolarização deixa de desejar. Neste contexto, as novelas deixariam de ser um gênero narrativo, como tantos outros, para ser a única forma narrativa de que a sociedade brasileira dispõe para narrar seus próprios dramas sociais. Assim, a forma narrativa das telenovelas teria se transformado num esquema de pensamento a partir da qual o Brasil narra suas histórias, fictícias e reais. As novelas, em suma, seriam "um exemplo vivo do quanto ela (sociedade brasileira) é capaz de se reproduzir imaginariamente em sua totalidade, ao abrigar e reproduzir pedagogicamente os seus sistemas de pensamento" (GOMES, 1998, p. 25).

Situando as telenovelas entre o discurso mítico e histórico, Gomes afirma que este gênero pode ser entendido como "histórias dramatizadas coletivamente". Uma de suas principais características seria a ênfase no coletivo, nos aspectos relacionais. As novelas teriam o compromisso de promover o reconhecimento e a familiaridade, nunca o estranhamento ou a intervenção por atos de escolhas individuais. Ainda segundo a mesma autora, há alguns mecanismos de inclusão e exclusão presente em todas as novelas, que estão expressas nas constantes oposições "familiares" x "não-familiares", "amigos" x "inimigos", "ricos" x "pobres". Esses mecanismos reafirmariam, na sociedade brasileira, a construção da pessoa em oposição à construção do indivíduo.

Para Hamburger, todas as oposições contidas nas tremas das novelas, como "homens x mulheres", "ricos x pobres", "pais x filhos" e outros, estariam submetidas a uma outra dicotomia, mais abrangente, que englobaria todas as demais questões: "moderno x tradicional". Para esta autora, desde "irmãos coragem", quando a Rede Globo assumiu a liderança dos índices de audiência, até o advento da chamada "Nova República", as novelas, na cidade ou campo, remetem a uma modernidade que, para o projeto militar do "país do futuro", seria uma conseqüência inevitável. Assim, aspectos que a sociedade brasileira vivenciavam, como a urbanização e o processo de migração que inchava os grandes centros urbanos, por exemplo, representam etapas em direção ao "Brasil moderno", com o desaparecimento progressivo da velha ordem patriarcal, representada nos meios televisivos pela figura do coronel.

A partir de meados da década de 1980, entretanto, junto com o processo de democratização política, o caminho linear em direção à modernização passa a ser questionado. Apesar da euforia, a "Nova República" parecia demonstrar que o antiga ordem tradicional, ao invés de ser superada, persistia e absorvia os signos da modernidade. É o caso, por exemplo, de Roque Santeiro. Segundo Hamburger, Roque Santeiro recorre à ironia para enfatizar a resistência inesperada das relações tradicionais de poder, apesar da "modernização". A força da tradição perversa é reafirmada na representação de cenários rurais e paisagens naturais, em oposição à "fraqueza" da modernidade, reduzidas ao mundo exterior. Os símbolos da modernidade são absolvidos pelo coronel, que desempenha um papel central entre a cidade e o mundo exterior. A novela, em suma, apresentaria um certo ceticismo na antiga noção de que o Brasil seria o país do futuro.

A análise de Gomes é parecida. Para esta autora, a trama de Roque Santeiro pode ser explicada a partir do "plano do mito" (sagrado), o ponto de vista dos habitantes de Asa Branca, e o "plano da farsa" (profano), representado pelos poderosos da cidade. Entre outras coisas, a novela demonstrou que o poder e a riqueza estão associados, entre nós, ao poder fazer, agir, no sentido de ser sujeito de uma ação, enquanto a fraqueza e a pobreza estão associados à condição de dependência. No final, a vitória do mito é interpretada pela autora como a vitória do conservadorismo, ou melhor, da tradição hierárquica, prescrita na sociedade brasileira, sobre a modernidade. Assim, o último capítulo, ao contrário da intenção de Dias Gomes, autor da trama, não causou a revolta esperada, sendo perfeitamente compreendida pela população.

Almeida também trabalha com a dicotomia "modernidade" x "tradição", mas a partir de uma outra perspectiva. A pesquisa desta autora procura entender como a novela O Rei do Gado era recebida em duas realidades completamente diferentes: entre os moradores de Monte Claro, no interior mineiro, e entre grandes publicitários de São Paulo. Nesta autora, o "moderno" e o "tradicional" são relativizados. Para os telespectadores da pequena cidade, seu próprio lugar de moradia é classificado como "atrasado", em oposição aos grandes centros urbanos exibidos nas novelas, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo, consideradas "modernas". Para os grandes publicitários, entretanto, as grandes metrópoles brasileiras é que são "atrasadas", e a dicotomia é estabelecida pelas "modernas" Nova York, Paris e outras grandes cidades do primeiro mundo.

A representação entre o moderno e o tradicional, contudo, se torna mais complexa a partir de Pantanal. Segundo Hamburger, a novela da Rede Manchete representou um marco na história das telenovelas brasileiras. Pela primeira vez, desde 1970, a Rede Globo tinha uma concorrente direta pela audiência. Mais do que isso, Pantanal questionava a idéia de "país do futuro", que, mesmo nos grotões rurais, apesar da resistência dos valores tradicionais, levaria o Brasil encontrar seu lugar entre as nações modernas. Nesta obra, de Benedito Rui Barbosa, as personagens abandonavam os centros urbanos e desbravavam o centro-oeste, antecipando um roteiro turístico que seria intensificado uma década depois. Pantanal propôs um encontro com o saber tradicional, com a natureza, e foi bem sucedido. Para Gomes, Pantanal parecia colocar a sociedade brasileira em contato com o seu passado, miticamente representado, não com o seu futuro. A justificativa para a preservação ambiental, um dos temas centrais, era fundamentado com um discurso mitificado e utopizado, buscando em nossas matrizes indígenas o totemismo em sua forma mais elementar.

Depois de um breve período em que suas audiências tiveram um ligeiro declínio, as novelas da Rede Globo recuperaram os antigos índices absolutos. Nesta nova fase, surge, segundo Hamburger, uma proposta direta de "intervenção" na sociedade, através de campanhas que chamam a atenção para problemas como doação de órgãos, crianças desaparecidas, drogas, violência urbana entre outros. Entre estas "novelas de intervenção", merece destaque O Rei do Gado, também de Benedito Rui Barbosa, cuja trama explorou dois conflitos que tiveram grande repercussão: um, na esfera pública, a complicada questão agrárias que, há anos, é pauta de debates políticos; o outro, no âmbito privado, as conseqüências da violência familiar.

Ao colocar em evidência a questão da Terra, a novela, ao mesmo tempo que expandia para a população um debate tradicionalmente restrito aos setores mais politizados da sociedade, colocava este gênero, considerado por muitos intelectuais como menor, em destaque nos principais jornais do país. Fazendeiros, líderes do M.S.T., políticos e intelectuais expressavam publicamente suas opiniões, contra ou a favor, ao desenrolar das principais personagens. Entretanto, o conflito privado, que girava em torno do adultério feminino e da violência doméstica, obtém mais ressonância junto aos telespectadores. Segundo Hamburger:


"As diferentes interpretações sobre conflitos conjugais e familiares revelam que essa novela, na esteira das inúmeras antecessoras, funciona como um idioma, um repertório compartilhado por intermédio do qual os telespectadores problematizam seus dramas mais íntimos (HAMBURGER, 2005, p. 143)."


Indiretamente, Rei do Gado abordou a instabilidade da vida familiar, conseguindo verossimilhança nas representações dos telespectadores. Ainda segundo Hamburger, ao comentarem sobre os dramas que eram exibidos, os telespectadores passavam de suas próprias histórias pessoais às histórias da novela sem muita mediação. Sobre a família, vale citar o papel central que esta instituição possui na sociedade brasileira, segundo Gomes:


"Ela (a família) representa para nós a unidade básica e "natural" de sociedade e, portanto, a unidade obrigatória e primária de qualquer forma de agregação. Em outras palavras, a família é a totalidade primeira a partir da qual, na sociedade brasileira, experimentamos o sentimento de "pertencimento" ao corpo social (GOMES, 1998, p.56)"


Assim, é natural que, nas telenovelas, a família ocupe lugar de destaque. Como reflexo de nossa herança ibérica, a sociedade brasileira encara o individualismo como um perigo em potencial. Segundo Gomes, nas sociedades em que a ordem individualista se impõe, o conflito é visto como um ingrediente inevitável e até indispensável, sem o qual a própria idéia de ordem social e política (igualitarismo e democracia) torna-se impensável. Nas telenovelas brasileiras, entretanto, o conflito é sempre visto como algo nefasto. Quando não pode ser evitado, deve ser conduzido para o único lugar possível para sua resolução: a esfera do privado, o âmbito doméstico das relações pessoais e familiares. Assim, antes de indivíduos, as personagens em conflitos são sempre pertencentes ou filiados a grupos familiares, que servem como proteção para os problemas. Em outras palavras, na sociedade brasileira, ao contrário da americana, o conflito é desqualificado como constituinte da ordem pública.

Nas tramas privadas, os conflitos, devido a sua constituição totalmente fictícia e dependente da vontade do autor e do público, podem ser solucionadas no final. Já as tramas entrelaçadas com as questões públicas, ao transpor os debates políticos para a novela, faz com que a realidade do tema se confunda com os personagens fictícios. Como conseqüência, realidade e ficção se misturam através de um inusitado diálogo entre dois senadores, o real e o fictício, unidos pelo fato de lutarem pela questão agrária. Se os conflitos das personagens fictícias podem ser solucionados, as questões públicas, ancoradas na realidade, são limitadas pela não solução do conflito na vida quotidiana. A novela, embora encaminhe uma solução para seus personagens de ficção, não poderia solucionar os conflitos entre "sem-terras" e latifundiários, que, quase dez anos após o fim da novela, ainda permanecem na pauta de debates políticos.

Isso nos permite levantar questões importantes sobre a resolução de problemas históricos na sociedade brasileira. Ao contrário dos seriados americanos, como nos mostra Gomes, as novelas brasileiras são organizadas a partir de capítulos seqüenciais, em que, para a resolução definitiva dos conflitos, é preciso aguardar oito ou dez meses. No dia-a-dia, entretanto, problemas como a reforma agrária, abordados pela novela Rei do Gado, ocupam as páginas de jornais durante décadas. A desigualdade social é uma questão que nos acompanha por séculos, que atravessou a época colonial, o império e todo período republicano. Cada ato político é como um capítulo, e, pacientemente, a população aguarda o "último episódio", que traga finalmente a resolução dos conflitos.

Gomes nos mostra que as novelas se tornaram o gênero narrativo por excelência da sociedade brasileira, como já citamos. Analisando uma de nossas "novelas da vida real", o problema da violência urbana, que se arrasta durante quase duas décadas nos jornais e telejornais, percebemos que os acontecimentos são narrados pelos jornalistas como um processo contínuo e crescente, em que cada capítulo, ao longo dos últimos vinte anos, demonstra o desenrolar de uma trama urbana, com personagens que se sucedem diariamente, mas com seus dramas pessoais comovendo os telespectadores. Estes últimos sabem que podem ser o protagonista do próximo capítulo, mas esperam, como nas telenovelas, o restabelecimento do consenso. Expressões como "conflito urbano" mostram que, para a sociedade brasileira, o conflito é mal visto, e a sociedade aguarda novamente a volta da ordem interrompida, seguindo nossa tradição holista e hierárquica.

Gomes considera as novelas como um instrumento de navegação social. Sua visão sobre a consagração deste gênero narrativo na sociedade brasileira pode ser resumido pelo parágrafo abaixo:


"Tal consagração significa dizer que nestas três décadas "assistir às novelas", nos diferentes horários em que elas são apresentadas diariamente, tornou-se, entre nós, mais do que um hábito. É como um ritual diário, não limitado apenas a um grupo, classe ou camada social da sociedade brasileira. Difundida entre todos os segmentos sociais, as telenovelas tornaram-se no decorrer destes anos temas privilegiados de conversação, assunto obrigatório, mesmo que fosse para alguns discordarem de suas implicações políticas, ideológicas e culturais, portanto uma "problemática obrigatória" (GOMES, 1998, p. 12)."


Assim, não é surpresa perceber que as telenovelas influenciam modas e costumes na sociedade brasileira, difundindo símbolos e sinais da modernidade. Ainda na década de 1970, na época da novela dancin Days, como nos mostra Hamburger, usar as meias listradas dos personagens principais significava "estar por dentro", expressava o desejo de participar do "Brasil do futuro" que, naquela época, era visto como o destino final do "milagre brasileiro". O clone, em 2002, colocou na moda vestimentas típicas dos povos árabes, assim como as constantes imagens do Rio de Janeiro e de Marrocos, que se alternavam na tela, reforçam o apelo crescente que a indústria do turismo exerce.

Para Almeida, a televisão é um meio ideal do processo civilizador, servindo como um braço da expansão industrial, pois insere os produtos que por ventura sejam divulgados em seu contexto de uso. Essa, ainda segundo a mesma autora, parece ser a principal função das novelas na sociedade brasileira: uma forma privilegiada de propaganda, capaz de atingir, guardada as particularidades de cada trama, todas as classes e camadas sociais. Todavia, as mensagens vinculadas pela televisão não são recebidas de uma única forma, pois os produtos anunciados são interpretados com um novo significado pelos receptores das pequenas cidades, que compartilham uma visão de mundo distinta dos emissores, que, em geral, vivem nos grandes centros urbanos.

Este público receptor, entretanto, não é um sujeito passivo, que engendra como verdade tudo aquilo que recebe. Ele não apenas interpreta o que é transmitido de acordo com sua visão de mundo, mas também, como mostra Hamburger, se apropriam do nome ou do figurino dos personagens, numa combinação singular, de acordo com suas próprias subjetividades. Ao incorporarem os figurinos da personagem Léa, de O Rei do Gado, por exemplo, o telespectador não necessariamente adquire o "pacote completo", podendo perfeitamente rejeitar o comportamento fútil e submisso que é expresso na tela.

Assim, a novela permite que os telespectadores realizem uma verdadeira bricolage com os mais diversos elementos fornecidos pela trama, incorporando aspectos importantes para a sua subjetividade e descartando outras. Se para a sociedade brasileira, de uma forma geral, as telenovelas dramatizam a dicotomia entre o "tradicional" e o "moderno", na criatividade dos indivíduos as telenovelas expressam sua face pós-moderna.

Bibliografia:

ALMEIDA, Heloísa Buarque. Telenovela, consumo e gênero: Muitas mais coisas. Bauru: Edusc / Anpocs, 2003.

GOMES, Laura Graziela Figueiredo Fernandes. Novela e sociedade no Brasil. Niterói: EdUFF, 1998.

HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.