[Resenha] MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In:____ Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003, p.399-422.



Sentar à mesa, manipular garfo e faca ao comer, fazer amor, andar... Nada mais corriqueiro! No entanto, um breve olhar mais atento é o suficiente para perceber o quanto estas práticas mediadas pelo corpo estão impregnadas de cultura. Porém, pode-se dizer que o corpo é uma temática recente, talvez por motivo de ser algo tão aparentemente natural é que ele demorou a inquietar os estudiosos das ciências humanas; Talvez porque o século XX vai dar palco a profundas transformações ocorridas com o corpo é que este vai figurar como objeto de investigação de antropólogos, historiadores e tantos outros estudiosos. Em geral, às temáticas inspiram através de demandas e intencionalidades de cada contexto histórico, fazendo com que os pesquisadores pensem temas e abordagens a fim de responderem inquietações e questões do seu tempo e da sua sociedade, no entanto ele retorna ao passado ? remoto ou próximo ? e a outras sociedade, distintas ou semelhantes.

Segundo alguns importantes autores¹, foi o século XX que inventou ? teoricamente ? o corpo. Tal invenção foi inaugurada pela psicanálise freudiana, para qual o corpo era a voz do subconsciente, bem como o abrigo do recalcamento de algumas pulsões, cuja satisfação faria o corpo feliz.

As enunciações de Freud foram o ponto de partida para um segundo estudo feito por Edmund Husserl, a quem se atribui ? além da fundação da fenomenologia ? a idéia de conceber o corpo como a origem, o "berço", o portador da atribuição de significados.

Husserl propunha um conjunto de traços que distinguiriam de modo empírico os fenômenos psíquicos e os fenômenos físicos, para ele, os fenômenos físicos ocorridos a partir da percepção do corpo, não tinham intencionalidade.

Não obstante a influência de Husserl, o filósofo fenomenologista Maurice Merleau-Ponty recusou sua teoria do conhecimento intencional, baseando-se no procedimento corporal e na percepção, enunciando o corpo como a "incorporação" da consciência. O pensamento de Merleau-Ponty vai incidir sobre o existencialismo, que vai defender, em suma, o indivíduo como sendo livre, independente do "habitus" que o circunda bem como responsável por seu destino.

O terceiro estudo desencadeado acerca do corpo se inscreve justamente nos domínios antropológicos, a partir de Marcel Mauss, com o qual nos deteremos mais adiante.

O corpo enquanto orgânico - de carne, ossos, sangue, órgãos - e o corpo subjetivo - ferramenta de práticas sócio-culturais ? vão ser imbricados. Embora o estruturalismo muito tenha se esforçado para ofuscar o corpo, ele vai sair da marginalidade aproximadamente em fins dos anos 1960, notadamente a década seguinte.







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¹ Para uma ampla e rica investigação acerca do corpo, ver: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: mutações do olhar: o século XX. 2.ed, Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

O corpo enquanto orgânico - de carne, ossos, sangue, órgãos - e o corpo subjetivo - ferramenta de práticas sócio-culturais ? vão ser imbricados. Embora o estruturalismo muito tenha se esforçado para ofuscar o corpo, ele vai sair da marginalidade aproximadamente em fins dos anos 1960, notadamente a década seguinte.

Talvez essa "viragem ao corpo" foi uma incidência dos movimentos de protestos ? por exemplo, o maio de 68 francês, os movimentos feministas e os hippies, tendo estes dois últimos um discurso que reivindicava justamente a liberdade para com o corpo em detrimento da ética moral e sexual judaico-cristã ?. Talvez isto fez com que fez com que os estudiosos vissem a atuação do corpo perante às estruturas culturais, políticas e sociais.

Inscrito no contexto citado acima - e de maneira original e brilhante - Michel Foucalt vai dar especial atenção ao "controle sobre o eu", mais especificamente o controle sobre os corpos que as autoridades pretendiam exercer. Sua obra perpassa constantemente pela temática do corpo, tais como a história da loucura, da clínica, dos sistemas intelectuais, da vigilância e da sexualidade.

Segundo o historiador francês Jean Delumeau, a principal pulsão do homem é a necessidade de segurança, e não a libido, como acreditava Freud. O que quer dizer, por conseqüência, que o medo tem um lugar importante na vida humana. Ele aponta o medo das doenças, dos acidentes, do terrorismo e de perder a vida, tendo o medo um lugar importante na vida do homem e é por isso que nós estamos a todo momento multiplicando as formas de nos proteger. O exemplo da contribuição de Delumeau para a área do corpo se dá pelo fato de o sentimento de medo está veemente ligado à proteção ao corpo ou ameaça a ele. Isto se constata em desdobramentos atuais que vão desde os complexos sistemas de segurança privada até carros blindados e numerosas clínicas dedicadas à saúde corpórea, esta última tocando no medo de o corpo não ser socialmente aceito.

Bom, entrando propriamente em Mauss, seu ponto de partida se dá a partir da observação da diversidade das expressões corporais do homem, condicionado às suas necessidades e a cultura/sociedade à qual pertence. Exemplifica esta problemática a partir de dois exemplos que ele assistiu. Primeiro, mudanças nas técnicas de nado, mediadas por uma educação para tal aprendizado. Segundo, a sua experiência durante a I Guerra mundial, na qual observou o diferente modo que marchava o exército britânico e o francês, bem como diferenças na maneira de cavar buracos, peculiar em cada grupo.

Cita ainda a maneira de andar comum tanto as mulheres norte-americanas, quanto às francesas, isso graças aos avanços das comunicações ? como o cinema e a televisão ? que mediaram à propagação dos hábitos corporais. Também, a posição das mãos ao andar, que pode refletir, por exemplo, o tipo de educação ? austera ou mais liberal - que aquele "corpo" teve.

O caso dos modos à mesa, por exemplo, é fácil imaginarmos uma criança, nos seus primeiros anos de vida, evoluindo do peito da mãe à mamadeira, daí para o prato e os talheres... Nessa parte, é bem natural ela levar à comida à boca com as mãos ao invés de usar os talheres. Então os pais reclamam, ensinam ou mesmo, depois de muitas tentativas frustradas, dão uma palmadinha. Isto remete à obra Da genealogia da moral, um dos mais geniais livros de Friedrich Nietzche, no qual ele aponta as dificuldades que o homem sofreu para poder estabelecer a moral. Ele analisa o processo de "adestramento" pelo qual os humanos passaram para se tornarem "animais domésticos", passíveis de convivência em sociedade.

As dificuldades e o relativo sucesso foram à custa de dor, como exercício para a memória.

Isto se exemplifica muito claramente através de um estudo de Pierre Clastres² acerca dos ritos de iniciação dos rapazes índios como instrumento para incutir-lhes na memória, através da dor, e no corpo, através de inscrições, a lei da igualdade.

Outro exemplo ainda mais claro é as torturas empreendidas aos "subversivos" de um regime ditatorial, como o militar brasileiro e o nazista alemão. Os que deliberavam as torturas eram conscientes ? talvez - de que iriam forjar uma memória, através da dor, suscitando que eles reconhecessem seu lugar de submissão.

Esses exemplos constatam também, a imbricação entre os âmbitos sócio-cultural, inconsciente, consciente e o físico, que Mauss defende, por exemplo, quando menciona sobre a imitação que uma criança faz de um gesto: inicialmente ela observa o ato corporal de alguém de sua confiança e isto a autoriza a, em seguida produzi-lo. Nesta situação se coadunam o social, o psicológico e o biológico, sendo impossível isolar uma ação da outra.

Mauss exemplifica ainda, as maneiras de andar, com características próprias em certas sociedades. Mesmo em grupos mais restritos, tais como os religiosos católicos ortodoxos, por exemplo, no qual uma mãe deste grupo certamente não vai ensinar a sua filha a rebolar os quadris enquanto anda, prática esta que é, desde cedo, ensinada as filhas pelas mães do povo Maori, da Nova Zelândia. Provavelmente as mães do primeiro grupo, ensinarão aos filhos homens a jamais rebolar, andar com os ombros levantados ? "com postura", como dizem ? e a cabeça erguida, de modo que suscite a imponência que o sexo masculino deve exercer.

Em contrapartida, segundo analisa Giddens, as mulheres que são submetidas a regulamentos que as obrigam a usarem vestidos ou saias na escola, são levadas - como é o objetivo da regra ? a sentar-se de pernas fechadas e/ou cruzadas ? que pode suscitar tanto resignação quanto sensualidade -, ainda torna-se inadequada a elas a prática de esportes que exigem mais mobilidade e força, o que também decorre na predominância dos homens, até hoje, em esportes como futebol, boxe, dentre outros.

Embora atualmente haja mulheres nesse tipo de esportes e isto pareça natural, certamente a primeira a tentar não recebeu tanto apoio. Isto se dá porque esses padrões e tabus de comportamento que são esperados em cada faixa etária e gênero de uma sociedade, agem como regras que, quando rompidas causam censura, exclusão e marginalidade.

Uma criança comumente pode sair à rua só vestida com uma calcinha, bem como abrir as pernas enquanto usa um vestido. No entanto, se uma adolescente ou mulher agir de tal modo, pode provocar reações das mais adversas e imprevisíveis, visto que ela violou uma regra moral. Um exemplo claro disto foi a recente censura pela qual sofreu uma aluna de uma universidade paulista. Tal fato, amplamente disseminado e criticado pela mídia, demonstrou o quanto é frágil a suposta autonomia da mulher em relação ao seu corpo, seja no caso da vestimenta ou, mais polêmico ainda, no caso do aborto. Caso este que induz à questão da sexualidade e os usos do corpo para tal ato.

Isto se inscreve nos princípios de classificação técnicas do corpo, colocadas por Mauss, cujos exemplos vão desde a diferente maneira de fechar o punho entre o homem e a mulher, no caso, distinção por sexo. Até a distinção por idades, tal como a maneira de agachar-se de uma criança, dificultoso a um adulto e mais ainda a um ancião. Curiosamente, é fácil a uma criança levar o pé a boca. No entanto, para um adulto realizar tal façanha, é necessário uma longa série de repetições de alongamentos específicos para tal fim.

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² CLASTRES, Pierre. Da tortura na sociedade primitiva In: ____A sociedade
contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

Isto se dá talvez, em virtude das técnicas que são desenvolvidas para o "adestramento", findando por excluir alguns gestos "bárbaros", como levar o pé a boca, pois o pé, além de ser a parte mais baixa do corpo, utilizado para ter contato com o chão, implica alguma impureza. Um exemplo disso é a comum curvatura que se punha os homens de classes inferiores perante os reis e autoridades. "Estar aos pés" implica mostra submissão e inferioridade no nível dos pés. Em contraste, a boca é utilizada para comer e objeto de muitas ritualizações higiênicas, onde a mais básica é a escovação após cada refeição. O ato natural de beijar, em geral, é feito com pessoas íntimas e estimadas.

Retomando a divisão das técnicas do corpo entre os sexos, durante um longo tempo, as maneiras às quais o corpo feminino aplicava-se à sexualidade implicavam respeito e "inocência" ou, em contrapartida, recebiam a alcunha de "impura" e "profana". Estas caracterizações eram forjadas a partir de gestos corporais da mulher para com o homem. O padrão judaico-cristão é que a mulher deveria ter o sentimento de vergonha em relação ao homem, cobrindo-se o máximo possível. Ainda na atualidade, o ditado "tenha vergonha!" prevalece utilizado em várias circunstâncias de desobediência dos padrões, como cuspir, escarrar, arrotar, liberar gases, coçar a região genital, por os pés sobre a mesa, realizar necessidades fisiológicas de excreção em público, dentre tantos outros rituais proibidos pela sociedade.

Ao debruçar-se à temática do corpo, um subitem intrínseco é o esporte ou as técnicas corporais que são desenvolvidas em torno desta prática. O interesse dedicado à superação das resistências, obstáculos e limitações do corpo, provavelmente se exacerbou no século XX, desembocando no contexto que assistimos comumente hoje. Por exemplo, o condicionamento do corpo ? com a prática de atividade física e a restrição a certos alimentos - sendo predominante no discurso médico, tanto para a precaução e mesmo para mitigar e curar doenças. Isto desemboca na problemática dos padrões de beleza vigente, na nossa sociedade, por exemplo. Os exageros para com a forma física são mascarados pelo discurso da saúde. Isto se torna mais claro se for posta a questão: - será que os jovens e adultos que lotam as centenas de academias existentes na nossa cidade estão preocupados prioritariamente com a saúde?

Assim como os atletas profissionais, sempre almejando superar seus recordes, considerável parte dos freqüentadores de academias de musculação lida constantemente com os limites biológicos, contra os quais o esforço físico repetitivo e a dor vão resultar em um novo desempenho no domínio de técnicas do corpo. Em todo esse processo de evolução física, a ação psicológica - bem como nos outros vários exemplos ? está veementemente presente.

Isto é explícito também nos usos do corpo aos rituais mágicos, religiosos... O que explica um corpo já alquebrado e senil percorrer quilômetros de caminhada, subir dezenas de degraus sob o sol ? como é o caso das romarias e peregrinações ? senão a ação psicológica de resistência incidindo sobre o físico?

O consciente, inconsciente, físico e biológico se imbricam ainda aos significados materiais e simbólicos dos bens de consumo. O consumismo exacerbado vigente na sociedade na qual vivemos, bem como a sedução pelas tendências da moda condicionadas às estações do ano, mostram como a cultura se utiliza dos fenômenos naturais para determinadas necessidades. O caso do consumismo, que se vincula intimamente ao mercado capitalista e mantém diversos dos ramos da economia - desde as lojas de departamentos, perpassando pelos cartões de crédito e chegando até os psicólogos especialistas em consumidores compulsivos - mostram que, criamos uma complexidade tão ampla que nossas próprias cabeças nem conseguem compreender, isto apenas a partir de nossas três necessidades inatas que são comer, descansar e reproduzir-se, cuja função é justamente mantermos nosso corpo vivo e perpetuar nossa espécie.