CRISTIANE BORGES CARDOSO

RESUMO

No decorrer do século XIX o Brasil é marcado por significativas mudanças políticas, sociais, e econômicas. Nessas circunstancias, devido ao sentimento nacionalista nascido da Independência Política, as problemáticas da língua tornam-se motivos de discussões que buscavam pretensiosamente, entre outras coisas, a independência linguística e, por consequência, a independência ortográfica. São justamente tais questões que refletem a busca da identidade linguística do brasileiro
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Palavras-chave: Língua portuguesa; ortografia; identidade linguística; identidade nacional.

ABSTRACT

During the nineteenth century Brazil is marked by significant political, social, and economic. In such circumstances, due to nationalist sentiment born of Political Independence, the problems of language become grounds for seeking talks pretentiously, among other things, the language independence and, consequently, the independence spelling. It is precisely such questions that reflect the search for linguistic identity of the Brazilian.

Keywords: Portuguese language, spelling, linguistic identity, national identity.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar como se constituíram e se consolidaram as Reformas Ortográficas da Língua Portuguesa no início do século XX, estendendo-se até o primeiro Acordo Ortográfico entre Brasil e Portugal, em 1931, estudadas sob três pontos de vista: o histórico, o linguístico e o ideológico. Para tanto, tendo como aparato teórico a História das Idéias Linguísticas, busca-se, no que diz respeito à perspectiva histórica, mostrar em que medida o contexto em que foram produzidas as propostas ortográficas interferiu em sua fixação. No que diz respeito à perspectiva linguística, propõe-se a análise propriamente dita das regras propostas a fim de se verificar se há tendência ao predomínio do sistema fonético ou etimológico, buscando-se, evidentemente, a justificativa de suas escolhas. Por fim, no que pertence à ideologia, pretende-se evidenciar como o caráter ideológico passa além de cada proposta.
Quanto ao método de desenvolvimento deste estudo, procurou-se, respeitar os termos particulares usados na época em que foi produzido o objeto, destacando-se, além dos fatos históricos, outros fatores que influenciaram o aparecimento de determinado instrumento linguístico.

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.

As normas ortográficas só se fixaram de fato no Brasil e em Portugal no século XX. Com o avanço da escolarização obrigatória e a proliferação dos meios de comunicação de massa tornou-se imperioso ter, em cada país, uma forma unificada de escrever. Alguns fatos políticos e sociais como a abolição, a Independência e a República fizeram vingar no Brasil um forte sentimento nacionalista. Nasce, nesse período, um movimento de valorização da cultura e de nacionalismo linguístico. Surgem, com isso, as primeiras manifestações ligadas à política de um idioma nacional em busca da identidade linguística brasileira. Desse modo, houve quem defendesse a existência de duas línguas: uma portuguesa e outra brasileira, confundindo-se variedade de uma mesma língua com o aparecimento de um novo sistema. A questão da língua reflete-se também na questão ortográfica, pois a tentativa de uma língua brasileira resulta, consequentemente, na busca de uma ortografia brasileira.
A questão ortográfica, associada à independência e à busca pela identidade nacional, passa a ser o centro das discussões entre alguns estudiosos da época, demonstrando, embora em graus variáveis, o desejo e a intenção de se adquirir a autonomia linguística no Brasil. No entanto, mesmo num período tão marcado por questões nacionalistas e conservadoras, alguns autores defendem a manutenção da língua como legado de Portugal. A questão ortográfica tinha um caráter que ia além da tentativa de simplificar e fixar a ortografia: adquire uma forte característica nacionalista, sobretudo, pelas marcas que diferenciam a pronúncia brasileira em relação à pronúncia européia, intensificando-se, desse modo, a busca da identidade nacional por meio da criação de um sistema gráfico brasileiro.
Destacam-se José Jorge Paranhos da Silva e Miguel Lemos como defensores desse ponto de vista. Porém, havia aqueles que se preocupavam em manter a tradição, como é o caso de José Feliciano de Castilho e José Ventura Bôscoli, representantes de posicionamento oposto ao dos autores referidos acima. Em seus requerimentos documentados, José Jorge Paranhos da Silva defende a suposta língua brasileira por meio do estudo comparativo entre as pronúncias do português brasileiro e europeu, estabelecendo, desse modo, diferenças que para ele são significativas a ponto de justificarem a independência linguística. Propõe, inclusive, que sejam traduzidas as poesias escritas em língua portuguesa para a língua brasileira.
A ausência de base científica evidencia-se na maioria dos autores citados que não são filólogos. Muitas das regras que propõem são marcadas por equívocos em relação a dialeto, língua, uso e ao estilo. Outras estão despojadas de qualquer preocupação histórica, pois abusam de grafias baseadas nas grafias grega e latina e letras que se unem, sem nenhum fundamento, como é o caso de José Feliciano de Castilho e José Ventura Bôscoli.
Em Portugal, duas propostas são de fundamental importância para a realização da reforma ortográfica: a ortografia fonética de José Barbosa de Leão e o empenho de Aniceto dos Reis Gonçalves Viana e Guilherme Augusto de Vasconcelos Abreu rumo a uma ortografia simplificada. José Barbosa Leão publicou, no final de 1875, uma obra intitulada Consideraçõis Sobre a Orthographia
Portugueza. Devido ao fato de acreditar que a mudança deveria vir "de cima para baixo", ofereceu sua obra ao Conselheiro António Rodrigues Sampaio, ministro dos Negócios do reino. Além disso, ele a distribuiu pelas repartições públicas e os institutos de ensino superior, especial e secundário, e enviou-a também para a Academia Real das Ciências.
Sua intenção era que o ministro exigisse de cada um dos conselheiros dos liceus um parecer sobre a reforma proposta e que esses pareceres fossem publicados no Diário do Governo. Assim também esperava que acontecesse na Academia, porém, seu desejo não se concretizou, pois a Junta constitutiva da Instrução Pública se opôs ao projeto, sugerindo que também o ministro o rejeitasse. Acreditando ter percorrido o caminho errado, decidiu fazer "a revolução de baixo para cima". Devido a seus esforços surgiram os convênios e a constituição da Comissão do Porto. Prosseguiu sua proposta publicando, em 1878, a Coleção de Estudos e Documentos a favor da Reforma Ortográfica em Sentido Sônico, na qual constam representação da Academia Real das Ciências e o Parecer da Comissão de Reforma Ortográfica.
Esforçou-se esse estudioso por promover uma reforma no sistema ortográfico e acabou por conseguir alavancar um movimento em favor da reforma por meio de uma reunião pública, na qual foi eleita uma comissão incumbida de estudar essa possibilidade. Como resultado, em 23 de dezembro de 1877, a Comissão do Porto apresentou o Parecer da Comissão de Reforma Ortográfica aceitando o estabelecimento da proposta. Apenas em 5 de fevereiro de 1878 foi apresentado à Academia das Ciências o Parecer, cuja análise deveria ser feita por uma comissão formada por cinco acadêmicos especialmente nomeados. Um ano depois, Latino Coelho, um dos acadêmicos, após ter lido metade do parecer na sessão de 6 de junho de 1879, apresentou o seu Parecer dizendo ser uma proposta inviável, de impossível aceitação, visto se tratar de uma ortografia sônica, ou seja, de visão individual sobre o ideal de haver uma só letra para cada som e um só som para cada letra.
De outro modo, Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Guilherme Augusto de Vasconcelos Abreu e Zófimo Consuigliere Pedroso editaram uma coleção científica de grande divulgação chamada Enciclopédia de ciência, arte e literatura, da qual o primeiro volume, A literatura e a Religião dos Árias na Índia, escrito por Gonçalves Viana e Vasconcelos Abreu, foi publicado em 1885. Devido a essa publicação, os dois autores julgaram ser necessária a criação do folheto Bases da Ortografia Portuguesa, em 1885, que tinha por objetivo explicar quais princípios ortográficos adotaram para escrever a Coleção, visto que se tratava de uma grafia diferente daquela que vinha sendo usada até aquele momento.
Tanto na Reforma Ortográfica Brasileira, quanto na portuguesa, ocorre a manifestação do mesmo ideal linguístico. Nesse sentido, ambas dão nova feição à ortografia dos dois países, pois marcaram a definitiva sistematização da grafia. Apesar de apresentarem divergências como a opção brasileira, em 1907, por eliminar as consoantes geminadas e, a portuguesa, em 1911, de mantê-las, como elemento indicador de boa pronúncia, apontam para o fim da desordem ortográfica, que mantinha a grafia associada apenas à vontade do escritor.
Após cinco anos de existência da Reforma Ortográfica Brasileira, a Academia Brasileira de Letras julga ser necessário empreender alguns ajustes no sistema vigente. Desse modo, após algumas discussões, Silva Ramos é nomeado responsável por direcionar a questão. A partir da nomeação, recorre à Reforma portuguesa para fazer as devidas adequações na grafia usada no Brasil, a qual só se consolida em 1915.
Na sessão, estiveram presentes dez membros, dos quais apenas um rejeitou o parecer. O encarregado de levar a notícia à Academia de Ciências de Lisboa foi Cândido Figueiredo. Ficou, em seguida, estabelecido que o Colégio Pedro II deveria recomendar aos alunos aquela grafia, sem, todavia, torná-la obrigatória, pois os candidatos à admissão já vinham com conhecimentos definidos sobre a ortografia desde aulas primárias.
A resolução de 1915 provocou grandes discussões. O grupo nacionalista reagiu à decisão tomada, revogando a adoção do modelo luso na ortografia brasileira. No entanto, a implantação do modelo luso era questão de tempo, pois os que detinham o poder de formar os novos usuários da língua escrita já haviam adotado o sistema simplificado. Assim, em 30 de abril de 1931, por meio do Decreto n° 20108, firma-se o primeiro Acordo Ortográfico luso-brasileiro sobre o uso da ortografia nas repartições públicas e nos estabelecimentos de ensino; com isso, oficializa-se, no Brasil e em Portugal, a ortografia simplificada.
Porém, ainda hoje, a ortografia unificada luso-brasileira não foi definitivamente alcançada. Houve várias tentativas de acordos ortográficos, sendo a última em 1990. É fato que não é possível a elaboração de uma reforma que atenda aos anseios de todos os usuários. Vale lembrar que qualquer sistema gráfico é uma forma convencional de representar o que é falado e, consequentemente, a representação entre o escrito e o sonoro não é unívoca. Além disso, uma língua de longa tradição escrita possui hábitos gráficos que foram consagrados pelo uso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se vê na ortografia portuguesa do século XX é que se buscava a simplificação ortográfica por meio de normas definitivas de grafar. Para atingir tal objetivo, entre outras coisas, eliminaram-se as consoantes geminadas e os exageros etimológicos. Essa eliminação, entretanto, provocou pouca ou nenhuma diferenciação em relação ao que se encontrava em vigor antes. Na verdade, buscou-se apenas a fixação gráfica. Se pensar no significado de reformar (alterar a for- ma, reconstruir, emendar), vê-se que de fato ela não ocorreu. O que sucedeu, na realidade, foi a opção de fixação de uma letra em substituição a outra em determinadas palavras.
Nesse percurso analítico, constata-se, a respeito da perspectiva histórica, que os fatos externos à língua interferiram na constituição da ortografia e, no que tange à perspectiva linguística, a análise propriamente dita das regras ortográficas, verifica-se que antes do Acordo Ortográfico, ora os autores tendiam à ortografia que privilegiava a pronúncia, baseando-se na fala, considerada da classe culta, ora preocupavam-se com a tradição histórica, muitas vezes, beirando o exagero.
Por outro lado, na mesma medida, a adoção da ortografia etimológica também parece impossível, pois, além de representar um retrocesso ao século XVIII, devido à distância existente entre esse tipo de grafia e os usuários, para que fosse implantada seria necessária uma reforma radical. Além disso, correríamos o risco de
elaborar um sistema pseudo-etimológico. Justifica-se essa afirmação ao lembrarmos que temos como língua de origem o latim vulgar, o qual sofreu alterações fonológicas ao longo do tempo. No entanto, aqueles que tentavam preservar a tradição histórica tinham como referência as formas linguísticas do latim e do grego clássicos, por meio de textos oficiais e literários. Assim, não importava se determinada letra presente no radical de origem já não representava fonema, o que importava era preservar a ligação entre forma atual e a tradição linguística do português. Por consequência, surgiram as letras mudas, os grupos helênicos, a dupla representação vocálica e os demais fatos ortográficos que não correspondem à exata grafia de origem.
Diante disso, evidencia-se que, embora estejamos longe da ortografia ideal, que satisfaça todos os usuários da língua, ao adotarmos a ortografia mista, a qual foi edificada em critérios fonéticos e etimológicos, estabelecida entre Brasil e Portugal a partir do Acordo Ortográfico de 1931, estamos mais próximos do respeito ao uso e à tradição.
Por fim, verifica-se que o caráter ideológico perpassou cada proposta ortográfica, o que se torna claro de autor para autor, a cada época, motivados ou por crenças pessoais ou por estarem envolvidos pela ideologia coletiva. Apresenta-se aqui um fato sociolinguístico, ideologicamente fundado, que bem reflete a questão de política linguística e de identidade nacional.


REFERÊNCIAS

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JAKOBSON, Roman. Linguistica e Comunicação. São Paulo. Cultrix. 2008.

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