Epitácio Rodrigues

No nosso cotidiano são comuns e até frequentes os apelos dirigidos aos homens para que vivam sua humanidade, que sejam mais humanos com seus semelhantes, sobretudo os menos favorecidos. Mas nem sempre temos uma noção bem clara do que venha a ser o humano do homem, que está tão precário e tão solicitado nos nossos discursos.

O que significa então, ser humano? Não tenho a pretensão de responder a esta indagação, mas me proponho fornecer alguns elementos que considero necessários para a compreensão dessa dimensão do homem.

A palavra humano vem de húmus, termo latino que significa solo fértil, formado pela decomposição de restos animais e vegetais. E é uma ressonância da concepção semítica de homem, como ser terreno, expressa no livro das Origens: “Deus formou o corpo humano usando para isso o pó da terra. Depois, soprou nele o sopro da vida, e ele veio a ser alma vivente” (Gn 2,7). O nome Adão – derivado de adamah em hebraico – significa terra, e a mulher, tirada do corpo de Adão, recebe o nome de Eva, que significa vida: a vida que é tirada da terra.

A concepção semítica de homem está muito ligada à terra. E, de fato, se nos detivermos o olhar através deste prisma, percebemos que a terra é para o homem fonte de vida, pois ele tira dela o alimento para o seu sustento; de terra se faz, na terra se firma e sobre ela se erguem casas, que dão ao homem segurança e proteção. O homem está unindo à terra, vive sobre ela até que a mesma o receba por ocasião de sua morte.

Porém, a ligação do ser humano com a terra, tem na raiz dessa compreensão uma significação mais profunda e situa-se dentro de uma cosmologia na qual acima de nós situa-se o ceu, morada dos seres divinos: deus, anjos e toda a sua hierarquia, todos tendo como característica diferenciadora a perfeição. Abaixo de nós, o inferno, literalmente, lugar inferior, onde habitam os seres malignos, o diabo e sua corja. Ali se cultivam os valores mais baixos e mais perversos da realidade humana. No meio, entre os extremos, ceu e região inferior, situa-se a terra, o lugar do ser humano, como um peregrino que marcha para a perfeição, mas que pode sempre cometer desvios no caminho, graças a um fator que se conhece como liberdade. Assim, quando alguém no dia-a-dia, nos afazeres diários evoca a expressão, quase sempre justificadora: “sou apenas um ser humano”, ele quer dizer ao interlocutor que possui a imperfeição na sua constituição fundamental, por isso é frágil, vulnerável e passivo de errar, sobretudo moralmente. Essa compreensão, herança da cultura religiosa semita, coloca o ser humano como uma imagem e semelhança de Deus, com a diferença de ser portador de imperfeição. Isso pode ser percebido claramente nas preces laudatórias do salmista (Salmo 8, 4-6): “Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: que coisa é o homem, para dele te lembrares, que é o ser humano, para o visitares? No entanto o fizeste só um pouco menor que um deus, de glória e de honra o coroaste.”

Por outro lado, diz-se que o ser humano é desumano, quando deixa-se levar pelos instintos, emoções e paixões. Aqui pode-se perceber claramente que essa compreensão do senso comum tem suas raízes na concepção grega de base Aristotélica, para quem o homem é uma zoon lógicon, um animal racional e que o ideal de perfeição é o desenvolvimento da sua capacidade de racional. Aqui as palavras de Maritain no livro Sobre a Filosofia da História são bastante esclarecedoras:

Um ente dotado de razão deve, pois, necessariamente, de um modo ou de outro, ser progressivo, não imutável; e progressivo no sentido de progresso para o aperfeiçoamento, para o bem. Mas, de outra parte, a noção de para o mal está implicada na essencial fragilidade de um ser racional que é um animal (1967, p.21).

Aqui o filósofo deixa claro que o homem, como ser racional busca o progresso ou perfeição da sua racionalidade, mas por outro lado, ele também é um animal, entendendo por isso todo o aspecto não-racional da sua natureza animal, instinto, pulsões, emoções.

Assim, as origens da compreensão do senso comum está alicerçada no cruzamento de duas grandes tradições: a semita e a greco-romana. A primeira enfatiza a situação do ser humano na cosmologia geral, entre Deus e os seres inferiores. No segundo caso, a visão de homem está situada na relação de aproximação e diferença entre ele o os outros animais.