As pessoas na rua fascinam-me. As suas roupas, os seus olhares, os seus modos de andar. Sinto-me rodeada por uma diversidade inebriante de seres humanos com histórias, emoções, invejas, sonhos. Em cada uma delas há sempre uma outra coisa que me atrai mais. Uns olhos salientes por exemplo. Ou uma combinação de roupa arrojada, um livro debaixo do braço, uma forma de andar. Uma mala a tiracolo, uma expressão de concentração, uma caneta na boca. Quero conhece-las, saber quem as fez, o que as faz, o que são. Quero embebedar-me na raça humana e nunca mais conhecer a sobriedade. As pessoas, as pessoas. Os velhos sentados nos bancos de jardim, as pretas que gritam com os filhos, os betinhos que vestem Quebra-Mar. As ciganas que me querem ler a sina, os seguranças da minha faculdade. Aquela pessoa sentada ao meu lado no café, a rapariga a comer um crepe no Colombo. Quero tanto conhecer a rapariga a comer um crepe no Colombo. Mas não sei como. Não sei como entrar nas vidas de outros sem causar incómodo. Mas rói-me por dentro não lhes ter falado, não lhes ter perguntado se acreditam em Deus, no amor ou na felicidade. Quem foi o seu primeiro grande amor e se o patrão é um filho da puta.? Rostos anónimos desfilando numa parada interminável de encontros fortuitos. Será que algum deles também quer falar comigo? Será que se pergunta se eu estou a gostar do livro que leio no comboio, ou da música que estou a ouvir no Ipod, completamente isolada da humanidade que me rodeia.? Não quero impor-me, causar desconforto. Mas gostava, tanto!, de saber quem foi a mãe daquela mulher vestida de preto e lábios pintados que está a falar com o homem espanhol?
Por enquanto, enquanto não arranjo uma solução para o meu problema, contento-me em observá-las, discretamente, à distância, uns breves olhares de amante tímida e púdica aos rostos que me rodeiam, todos os dias, todas as horas. Os rostos com que sonho à noite, e imagino de dia. As suas realidades, meu Deus, as sua realidades fascinam-me. Os seus preconceitos, as suas crendices, as suas queixas mais sentidas. As suas percepções absolutamente únicas do mundo que nos rodeia e os seus gestos mais inconscientes e transparentes que revelam, contra a vontade do autor, os seus mais secretos estados de espírito.
Quero chegar ao pé daquela senhora sentada no cais do metro do Campo Grande e perguntar-lhe "É feliz?". Mas isso é uma pergunta estúpida. Todas as perguntas são estúpidas e insuficientes para me revelar aquilo por que eu procuro. Um vislumbre de alma, de ser desinibido e primitivo, com todas as suas falhas e todas as suas glórias. Quero chegar ao pé daquela senhora no cais do metro do Campo Grande e dizer-lhe "Quero ver-te".
Se ao menos o mundo funcionasse assim talvez as coisas fossem mais simples. Se nos víssemos realmente uns aos outros, sem julgamento, sem pretensões, aceitando as nossas limitações e percepções, sem defesas, sem medos, quem sabe? Quem sabe como seriam as coisas? Eu não sei? mas gostava de pelo menos uma vez, chegar ao pé da senhora, dizer-lhe "Quero ver-te" e ser compreendida. Encontrar num outro ser humano essa curiosidade pela alma alheia, essa procura de si próprio nos outros.
"Onde é que comprou essa mala?", "Com quem é que perdeu a virgindade?", "Porque é que chora à noite?" (Sim, todos choramos à noite). Qual é a diferença entre as perguntas, porquê as barreiras artificiais que impomos às nossas almas sedentas de conexão humana?

Aquele homem que está a ler o jornal, e o outro que está a olhar distraído pela janela do comboio, a pensar em nada, em tudo, em algo. O riso do grupo de adolescentes no meio da carruagem apinhada faz-me querer falar-lhes. A fragilidade da senhora maquilhada a quem uma mulher cedeu o lugar faz-me querer abraça-la e chorar. Amo cada um deles. Amo as suas vidas desconhecidas e os seus pensamentos indecifráveis. A sua indiferença magoa-me.

Talvez amanhã seja o dia. Talvez choque com um homem a entrar no comboio e peça desculpa com atenção. Não aquele pedir desculpa já de fugida, sem contacto visual, murmurado, envergonhado. Um pedir desculpa sorridente e atento que obrigue o homem a responder à letra. Talvez um dia não me acobarde. Gostava de pegar na mão daquele homem de fato e de acariciar a cara da senhora africana que parece cansada. Gostava de perguntar-lhe "Como é ser preto?".
Podia passar a horas a descrever as pessoas que vejo, num único dia, desde que saio de casa até que volto a entrar. Mas só se prestar atenção. Se estiver absorvida nos meus próprios pensamentos e sonhos tudo o que vejo é uma névoa indistinta de corpos a moverem-se ao mesmo ritmo, sem propósito, sem rumo. Estive assim durante 19 anos e só há pouco tempo acordei. Acordei e apaixonei-me. Agora é-me difícil ler no comboio, há tanta coisa para ver! Antes pensava em viajar para ver monumentos, maravilhas naturais, saborear pratos regionais e cheirar novos ares. Agora, há dias em que sinto que não posso perder nem mais um minuto sem conhecer as pessoas da Índia, ou do Cazaquistão, ou do Canadá. Quero apertar a mão dum Australiano com força e fazer uma vénia a uma japonesa. Quero falar sobre sexo com uma mulher Árabe e perguntar a um francês "Queres casar comigo?".

Alguma vez tiveram um ídolo que era uma personagem histórica? Eu tive, tenho. Júlio César. Quero ter uma conversa imaginária com Júlio César, Darwin, Cleópatra e Joan D?arc. Mas também quero ter uma conversa privada com aquela criada de quarto que serviu em Versalhes durante o reinado do Rei Sol e com vendedor de fruta do tempo de Salazar. Quero perguntar a um camponês russo do século XIX "Fala contigo, a natureza?!". A diferença entre estas últimas conversas e as que tenho estado a descrever, é que as primeiras são possíveis, estão ao meu alcance, mas amanhã já não vão estar. A minha conversa com a rapariga que estava a comer um crepe no Colombo pertence à mesma categoria que todas as minhas indagações quanto à corte francesa com aquela criada de quarto. O passado é o passado e qualquer ordem cronológica imposta à entidade abstracta do tempo que passou é apenas útil nas aulas de história, não nas divagações sobre oportunidades perdidas. Nunca falei, nunca perguntei e todos os rostos pairam lado a lado com as perguntas que nunca foram perguntadas. Há algo mais odioso do que uma pergunta que nunca foi perguntada? É como uma carta que nunca foi entregue ou uma viagem que nunca foi feita. É cortar pela raiz alguma coisa antes mesmo de essa coisa ser. É relegar ao esquecimento uma experiência que nunca se teve e uma memória que nunca se formou.
Cheguei à faculdade. Não me posso esquecer de ir à reprografia imprimir aquelas folhas. (Suspiro)