Na contramão da opinião pública, que tem se insurgido cada vez mais contra a impunidade alarmante, o processo penal brasileiro é marcado por um rigor procedimental que não encontra razão de perdurar na atual agigantada e burocrática estrutura punitiva estatal.

            Essa espécie de formalismo exacerbado, inerente ao direito processual penal brasileiro, culmina numa orgia de nulidades que termina com o arquivamento de processos, dilação sem fim de prazos, reconhecimento de prescrição generalizada e com a conseqüente absolvição de criminosos.

             O rigor processual transfigurado de aparente culto à legalidade, em grande parte dos casos, tem sido usado em benefício exclusivo do réu, a parte com maior interesse no reconhecimento de nulidades com poder de provocar a sua absolvição. O culto a esse formalismo tem diversas raízes, e tem mostrado estar intimamente ligado à difusão de crimes não resolvidos por falhas relativas ao processo.

             Em tempos de uma crescente “cultura de impunidade” firmada no inconsciente coletivo, torna-se necessário redirecionar a teoria das nulidades para que sua aplicação não se torne ainda mais obstáculo à consecução da justiça penal.

             Conforme Fernando Da Costa preceitua:

 “A nulidade é a sanção decretada pelo órgão Jurisdicional em relação ao ato praticado com inobservância dos parâmetros normativos. É a decretação de ineficácia do ato atípico, imperfeito, defeituoso”. (2000, pág. 119)

            Com efeito, mesmo aqueles atos processuais que cumpram sua função, mas não obedecem aos estritos procedimentos determinados, eivam atos muitas vezes eficazes e razoáveis, de vícios, que têm por conseqüência, em grande parte das vezes, a decretação da nulidade de todos os atos praticados posteriormente.  

            A verdadeira razão por trás desta preocupação com a regularidade, tipicidade e legalidade dos autos processuais, pode ser mais obscura do que parece.

             No moroso e cada vez mais emperrado judiciário nacional, optar pela decretação de nulidades, quando do manuseio dos autos sob análise de assessores, assistentes, juízes e desembargadores tribunais a fora, é um voto que poupa trabalho dos profissionais e os ajuda a se manter na meta, já que a nulidade torna desnecessária a resolução do mérito, tarefa que é responsável pelo maior dispêndio de tempo e energia para ser concluída. O volume de processos, em todas as áreas do Direito, como é notório, encontra-se em crescimento exponencial, enquanto a quantidade de servidores do judiciário e juízes não. 

            Cumpre esclarecer o relevante papel da teoria das nulidades no processo penal, seja para garantir a segurança jurídica ou primar pelo respeito ao princípio da legalidade, afastando a possibilidade de julgamentos aberrantes, em desconformidade com a lei, ferindo direitos individuais e chancelando a arbitrariedade do aparato punitivo do Estado.

            Quando, todavia, o respeito integral às formalidades exigidas no curso do processo torna a sua finalidade difícil de ser alcançada, temos que a teoria se volta contra si mesma. O processo se distancia cada vez mais da realidade dos fatos, não alcançando seus objetivos. É a vitória da burocracia jurídica estatal sobre o ofendido, e, por tabela, o coletivo.

            Segundo reportagem do Estado de Minas de 25.09.2011, dos 58.800 delitos de trânsito ocorridos em Minas Gerais em 2010, somente 459 foram apreciados pela justiça. O índice é de 0,7%.

             Estamos falando de delitos, que por sua própria natureza, culminam com a morte de milhares de pessoas por ano, ferimentos graves de todos os tipos, que deixam seqüelas irreversíveis nas vítimas, além do enorme dispêndio de recursos públicos, já que os acidentados, em decorrência de condutas criminosas de outros motoristas, demandam internações prolongadas, uso de medicamentos e inúmeras sessões de fisioterapias para se recuperarem, além de sofrerem com traumas psicológicos que não se apagam. 

            Os efeitos negativos dessas estatísticas na sociedade chegam a superar os efeitos negativos da não observância estrita das formalidades legais, razão pela qual se torna necessário a desconstrução desse culto ao formalismo e uma jurisprudência voltada para a realidade, buscando chancelar aqueles atos que, apesar de irregulares, alcancem os seus objetivos, para que uma maior quantidade de processos penais seja julgada com a resolução do mérito. 

            Em entrevista à revista Veja, a ex ministra Ellen Grace, após quase 11 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal, expressou a sua preocupação com a atual fase do processo penal brasileiro:

  “O grande problema do Judiciário hoje é a lerdeza. As ações demoram muito, especialmente as penais. O sistema de recursos e nulidades do processo penal brasileiro é inacreditável, quase impede uma condenação. Um bom advogado tem à sua disposição um arsenal quase infinito de manobras para dificultar o desenvolvimento do processo”. 

            É preciso, mais do que nunca, a revisão da teoria das nulidades, para modificar esse quadro da impunidade e evitar que nulidades sejam usadas em benefício de criminosos que se veem absolvidos em razão de erros procedimentais que poderiam ser facilmente convalidados. 

            O Código de Processo Penal elenca, em seu artigo 564, nulidades que a doutrina auxiliou a criar, divididas entre absolutas, como aquelas que devem ser argüidas a qualquer momento, assim que reconhecidas, e as relativas, como aquelas que só devem ser decretadas se comprovado o prejuízo para a parte. Como é sabido, a doutrina e a jurisprudência criaram diversas outras classificações e entendimentos que não têm pertinência no presente trabalho. 

             As nulidades absolutas, como aquelas graves, que causam prejuízos evidentes às partes, além de ofensa direta ao princípio da legalidade e à Constituição, merecem especial atenção do magistrado e não devem ser alteradas. Mas as relativas, que têm sido usadas para a promoção da “farra” das nulidades, impedindo que os processos cheguem ao seu fim, devem ser alavancadas, permitindo que atos processuais irregulares, que alcancem o seu fim, sejam validados, desde que não haja prejuízo manifesto às partes.

 

            Para isso, deve o magistrado atenta observação ao princípio geral que rege a matéria, insculpido no art. 563 do CPP, que diz: “Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. 

            O prejuízo deve ser devidamente comprovado, e avaliado com a cautela exigida do juiz, a fim de se restringir a amplitude de sua ocorrência. Como já dito, é imperioso, atualmente, que o propósito do formalismo procedimental exista para a segurança jurídica do coletivo, e este seja o seu fim, para que não volte contra si mesmo, como artifício jurídico usado para desafogar o judiciário e absolver criminosos pela via transversa.

             As nulidades, portanto, devem cada vez mais ser decretadas tendo-se em vista a comprovação do alegado prejuízo à parte, reduzindo-se a margem para a sua presunção. Somente aqueles atos procedimentais que violem diretamente preceitos constitucionais e resultam em nulidades manifestas e de fácil constatação devem ser anulados. 

            De maneira otimista, Guilherme de Souza Nucci acentua:

 “A tendência hoje é estreitar o campo das absolutas e alargar o das relativas. Embora na situação geradora de uma nulidade absoluta continue a ser presumido o prejuízo, sem admitir prova em contrário, o que se vem fazendo é transferir determinadas situações processuais, antes tidas como de prejuízo nítido, para o campo dos atos processuais cujo prejuízo é sujeito a comprovação.” (2006, pág. 890)

            Como se vê, trata-se de uma orientação que deve ser usada para dar maior eficácia e funcionalidade ao processo penal contemporâneo. Já que o conceito de nulidade absoluta permanece inalterado, os princípios da segurança jurídica e da legalidade se mantêm intocados, em respeito à nossa Carta Magna, enquanto o processo penal se torna mais eficaz e justo, na tentativa de reversão do atual quadro da impunidade no Brasil.

 

 Referências Bibliográficas:

 Jornal Estado de Minas. Data: 25.09.2011. Disponível em:

(http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2011/09/25/interna_gerais,252481/apenas-sete-em-cada-mil-crimes-de-transito-tem-condenacao-em-minas.shtml)

 Revista Veja. ed. n° 2232. Data: 31.08.2011

 SOUZA NUCCI, Guilherme de. In Código de Processo Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 TOURINHO FILHO, Fernando da costa. Processo penal. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. 3v.