RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo principal destacar algumas das várias características presentes na obra de uma das grandes e marcantes poetisas portuguesas de todos os tempos, de expressiva personalidade excepcional, com profunda riqueza interior, e que fez poesia de sua experiência de mulher, Florbela de Alma Conceição Espanca, e apresentar uma breve análise crítica/reflexiva sobre algumas das suas poesias ardentes, marcada por forte dose de erotismo sincero e ousado para o seu tempo. Assim, tomará como objeto de estudo o amor na poesia florbeliana, sendo esse um dos caminhos para conhecê-la.
PALAVRAS-CHAVES: Poesia; Amor; Erotismo.

ABSTRACT: This study's main objective is to highlight some of the many features present in the work of one of the great Portuguese poets and striking of all time, expressive outstanding personality with great inner wealth, and made poetry of his experience as a woman, of Florbela de Alma Conceição Espanca, and provide a brief critical analysis / reflective some of his poetry ardent, marked by a strong dose of eroticism sincere and bold for its time. So, take an object of study love and eroticism in the poetry florbelian, this being one of the ways to know it.
KEY WORDS: Poetry, Love, Eroticism

APRESENTAÇÃO

O amor tem sido tema de muitos debates e questionamentos tanto quanto têm sido motivos que levam o artista a criar, pois ele está presente na literatura e nas artes de todos os tempos. Não há como delimitar tempo, espaço, fronteiras, sexo, raça quando se trata de algo tão profundo e singelo como o discurso amoroso. Se o amor foi, e continua sendo tema central de debates não só na literatura, como em outras áreas do conhecimento, não há como descartar sua eminência na construção do discurso literário dos diversos autores.

Assim, todo ser humano é presa de uma contradição básica: queremos o amor e a felicidade como parceiros eternos, mas a vida nos ensina que a morte põe um doloroso ponto final em tudo. Este paradoxo, essa defasagem entre o absoluto dos nossos sonhos e o provisório da vida é algo recorrente por todos, principalmente, pelos artistas. Segundo François Truffaut (1988), "(…) tudo o que é do domínio afetivo reclama o absoluto. O filho quer a mãe por toda a vida, os amantes querem se amar e serem amados por toda a vida, tudo em nós pede o definitivo – enquanto que a vida nos ensina o provisório. (…) O verdadeiro dilaceramento reside na necessidade de aceitarmos o provisório – para sobrevivermos".

Esse artigo tem como objetivo apresentar de forma crítica-reflexiva alguns pontos temáticos abordados na obra da poetisa portuguesa, Florbela de Alma da Conceição Espanca[1]. Sua poesia caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente idiossincrática, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico. No entanto, esse trabalho abordará, prioritariamente, como temática de estudo a busca incessante do amor incondicional presente em algumas de suas poesias.

E é baseado nas teorias da alma sentimental florbeliana que o presente trabalho passará a delinear de forma sucinta, reflexões acerca de interrogações de cunho existencial da poetisa neo-romântica, buscando assinalar as imagens concernentes ao fazer poético no âmbito da poesia lírica da eterna e memorável escritora portuguesa/modernista, Florbela Espanca, através dos seus magistrais poemas.

POESIA: a eterna arte do encantamento

De acordo com os registros oficiais, a poesia ganhou impulso e teria começando a existir como expressão de arte na primavera de 534 a.C., na Grécia antiga, época em que as primeiras tragédias foram encenadas, por decreto oficial, no Festival de Dioniso, em Atenas e se difundiu no espaço sendo levada para toda a Europa, e daí para o resto do mundo.

A poesia é caracterizada como uma forma de expressão literária que surgiu simultaneamente com a música, a dança e o teatro, em época que remonta à Antiguidade histórica. Ensaístas e filósofos já se preocupavam, então, com a essência da poesia, numa tentativa de desligá-la da matriz onde fermentara com outras expressões, que também foram conquistando autonomia e passando, por características afins, à qualidade de gêneros.

A poesia, ligada à estrutura da narrativa, é a expressão artística que mais discussões têm suscitado em relação à sua essência.Entre os filósofos gregos e os modernos estudos da ensaísta norte-americana Susanne Langer há uma longa escala interpretativa. Para ela, a poesia não é mais representativa, pois desvinculou-se da preocupação de imitar a natureza. O inglês Herbert Read, também, chega a conclusões semelhantes, quando estabelece a diferença entre poesia e prosa: "na prosa, as palavras implicam, geralmente, a análise de um estado mental, ao passo que na poesia as palavras aparecem como coisas objetivas, que mantêm uma definida equivalência com o estado de intensidade mental do poeta."

Poetas e leitores, críticos e historiadores, teóricos e professores tem-se reportado, ao longo da história, à poesia e ao poema, ora como coisas distintas, ora como coisas identificadas. São inúmeras as tentativas de definição, mas nenhuma se apresentou com a universalidade e o rigor necessários à sua afirmação estética, filosófica ou cientifica como a de Lyra. Para Pedro Lyra (1986:06) a poesia é situada de modo problemática em dois grandes grupos conceituais: ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema, mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana.

Já na visão de Guilherme de Geir Campos, "poesia é antes de tudo, comunicação efetuada por palavras apenas, de um conteúdo psíquico (afetivo-sensório-conceitual), aceito pelo espírito como um todo, uma síntese". Nesse conteúdo anímico predominará às vezes o sensório, outras vezes o afetivo, outras o conceitual, pois o poeta ao expressar-se nunca transmite puros conceitos, quer dizer, nunca transmite conceitos sem mescla de sensorialidade ou sentimentalidade. (Bousono in Campo, 1975:130).

Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2009), a poesia ainda pode ser definida como "arte de escrever em verso, composição poética, inspiração, o que desperta sentimento do belo". Contudo, a poesia prolonga e exercita em nossos tempos a obscura e imperiosa angústia de posse da realidade, e cada poema nada mais é do que uma armadilha onde cai um novo fragmento dessa mesma realidade, onde o poeta se transporta completamente para esse novo cosmo em busca da sua própria existência.

Mediante a tudo que fora explicitado sobre poesia, pode-se afirmar que o poeta herda dos seus remotos ascendentes uma ânsia de domínio, embora não há na esfera factual, pois o mago, nele foi vencido e só resta o poeta, mago metafísico, evocador de essências, ansioso pela posse crescente da realidade no plano do ser. Desta maneira, Florbela Espanca pode ser considerada um exemplo concreto, pois apresenta de forma original suas manifestações poéticas aquém da necessidade desse outro ser, um inconsciente imaginativo a impulsionar os sentimentos desde seu íntimo.

A ETERNA BUSCA PELO OBJETO DE DESEJO DA POESIA FLORBELIANA: o amor

Segundo Octavio Paz, apesar de todos os males e desgraças sempre se busca querer e ser querido. O amor é o mais próximo, nesta terra, à beatitude dos bem-aventurados. Não menos triste que ver envelhecer e morrer a pessoa amada é descobrir que ela nos enganou ou deixou de nos amar. Para o autor, o amor é vítima também do hábito e do cansaço quando submetido ao tempo, à mudança e à morte, pois viver implica se expor e correr riscos nem sempre calculados.

Baseado nesta ideologia, a poesia de Florbela assume um eminente papel de exteriorizar o que há de mais belo e extraordinário guardado em seu coração. Assim, a eterna busca pelo amor ideal pode ser vista de forma intensa em suas palavras, algo naturalmente humano, mas que nem todos têm a ousadia de externalizar. Amar e ser amado é tão profícuo quanto a existência da alma que alimenta o próprio corpo, e quando a ausência se faz presente destrói o sorriso mais puro de alegria. Esta ausência chama-se solidão, caracterizada por uma dor profunda, fobia, incompletude, vazio, escuridão e desistência.

Percebe-se em sua obra, principalmente as publicadas a partir de 1918 a 1930, a predominância pelo uso do soneto. Dentro desta pequena fórmula métrica e estrófica, ela se sente à vontade para transmitir a sua perturbante e sombria interioridade. A sua poesia é de um dos mais flagrantes exemplos de poesia "viva", pois ela nasce, vibra e se alimenta do seu muito real caso humano; do seu porventura demasiado caso humano.

Segundo Oliveira (1987: 50) é no canto de amor que Florbela constrói a sua melhor poética feita na mistura de tristeza e ternura, de dor e de auto-complacencia, de pranto e de projeção idílica, de desgraça e de vocação abençoada, nascido esse canto de uma possibilidade malograda e compensado pela nostalgia cuja fraqueza e cuja força vêm da fatalidade que o determina, como se pode observar ao longo dos versos do poema "Cantigas leva-as o vento" de Florbela.

A lembrança dos teus beijos

Inda na minh' alma triste,

Como um perfume perdido,

Nas folhas dum livro triste.

(...)

Amar a quem nos despreza

È sina que a gente tem.

 

Posteriormente, Oliveira (1987:51) afirma ainda que através dos tristes versos florbeliano, nota-se a exaltação dos sentidos, a ânsia do amor, o delírio da carne, a ternura, a paixão, a volúpia, numa linguagem desinibida que supera a hipocrisia e as convenções, poesia sem precedentes entre os portugueses, com tonalidades ora egoístas, ora de uma sublime abnegação de si mesma.

Para Anthony Giddens (1993:10), o amor pressupõe a possibilidade de se estabelecer um vínculo emocional durável com o outro, tendo-se como base as qualidades intrínsecas desse próprio vínculo. É o precursor do relacionamento puro, embora permaneça em tensão em relação a ele. Fica evidente que para o autor é necessário se manter um laço mais consistente entre os amantes, mas nem sempre esse desejo é compartilhado e contínuo entre os seres humanos.

Verifica-se que o amor é tratado, na obra florbeliana, como essência da vida, pois antes de se buscar um alguém especial, visa-se viver um amor, como bem apresenta o verso retirado do livro (Hora que passa, 1923), "minh'alma sem amor é cinza e pó". Nesta perspectiva, o amor é visto como um objeto de uma procura interminável que recomeça a cada alvorada junto ao ser, dominado pelo sentimento do vazio.

O que caracteriza Florbela Espanca é a insatisfação, a insaciabilidade, a ansiedade de atingir seus objetivos, principalmente, os referentes ao coração. Poetisa do amor como tantos outros, sobretudo através de suas atitudes amorosas, confessa os "transportes" dos seus sentidos, sem timidez, pejo ou outro elemento que a limitasse, ainda que uma vez ou outra por sólidos áridos. O que evidencia que nasceu daí, então, suas infindáveis decepções, como se pode observar nos versos que seguem retirados do poema "Realidade", in "Charneca em Flor[2]", ), onde a constituição do "Eu", do sujeito, parece sero centro das preocupações dela nos poemas que se inscrevem nessa temática.

Tens sido vida afora o meu desejo

E agora que te falo, que te vejo,

Não sei se te encontrei... se te perdi....

 

Deus fez-me atravessar o teu caminho.

- Que contos dás a Deus indo sozinho,

Passando junto a mim sem me encontrares?

 

Eu ando a procura-te e já te vejo!...

E tu já me encontraste e não me vês!...

(...)

Pode-se afirmar que a poetisa sofre porque a sociedade não compreende o conflito íntimo e a escorraça, por querer a realização de um amor que catalogam de imortal, sem lhe compreender o alcance e a atitude. Mais que a hipócrita condenação social, sofre a ausência dum "outro", ou melhor, do "outro", para satisfazer-lhe a ânsia dum amor mais forte que a vontade e as convenções burguesas, conforme denunciam as estrofes abaixo do poema "Amar", da obra Charneca em Flor (1930).

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...

Amar! Amar! E não amar ninguém!

(...)

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira

é porque mente!

(...)

 

Mediante análise do poema "Amar", percebe-se que suas palavras incitam a reflexão do leitor mais ávido acerca da concepção de amor. Assim, amar Este ou Aquele, significa na verdade, não amar ninguém, onde desfruta-se de uma sensação marcante no âmbito da sexualidade e do prazer; o "Outro", no entanto, não será o amor legitimo e real com quem se divide uma vida para todo o sempre. A proximidade e a indefinição do objeto amoroso são anunciadas pelos pronomes demonstrativos e pelo indefinido que aparecem no terceiro verso: "Este e Aquele, o Outro e toda a gente...".

Segundo Patricia Aragão, em sua Monografia intitulada "O Donjuanismo na poesia de Florbela Espanca: Amar, amar e não amar ninguém", o soneto permite a seguinte leitura: Procura! Procurar! E não encontra ninguém! Há uma tentativa de Este, que fracassa e, então, a Bela Flor parte para outra busca desejando amar Aquele, não encontrando a plenitude, fazendo-se necessário amar toda a gente. A conquista do Outro não ocorre pelo simples prazer da sedução, mas pela necessidade de amor: amar só pelo amor... aqui ou além.

Dessa forma, a poesia de Florbela mostra toda uma ampla gama de estados emocionais ligados ao amor, desde a exaltação dos sentidos (entrega por inteiro), até ao desejo de sacrifícios, oscilando entre momentos de plenitude e de grande fragilidade emocional, decorrentes de relações amorosas frustradas ou que não corresponderam as suas expectativas. Assim, para Florbela, amar é uma experiência única, é a força impulsionadora da sua alma, e por isso quer amar, amar perdidamente.

Mergulhando nos estudos da psicanálise, Julia Leite, em seus Estudos Psicanalíticos sobre as dimensões do amor, afirma que as contribuições de Lacan sobre o tema do amor atravessam seu ensino e seu tempo, avançando em caminhos abertos por Freud. Ressaltando a dificuldade de se dizer, sobre o amor, algo que se sustente, Lacan circunscreve uma primeira distinção fundamental: o amor como paixão imaginária e o amor em sua face simbólica. O amor-paixão se dirige ao outro como objeto, buscando complementaridade e revelando sua raiz narcísica, já indicada por Freud, ou seja, o sujeito ama para ser amado.

Acrescenta, ainda, que a paixão (além do amor, o ódio e a ignorância) é, justamente, a alienação do desejo no objeto. Em sua face simbólica, diferentemente, o eixo do amor é situado, não no objeto, mas naquilo que o objeto não tem. Como dom ativo, o amor visa o ser, para além da captura imaginária, sustentando-se e equivocando-se na trama significante. O que Lacan sublinha é, sobretudo, a falta de harmonia fundamental entre sujeito e objeto. Como a linguagem, o amor, em sua vertente simbólica, revela um esforço, sempre precário, de fazer frente ao real da falta.

Atrelado a isso, pode se comprovar e justificar as teorias de Lacan através da poética florbeliana. Em Florbela, o amor é sempre um amor perdido, mesmo antes de ser encontrado; acarreta sucessivas desilusões, que ela procura compensar com um novo amor, que lhe traz novas desilusões. É um amor impossível, que só mostra mentiras e lhe traz constantes desenganos, como bem pode ser comprovado através do endereço eletrônico (prahoje.com.br/florbela) que dedica algumas páginas para estudo da poesia florbeliana.

Segundo Octavio Paz, em "O Arco e a Lira", que o leitor busca algo ao ler um poema e encontra, uma vez que o trazia dentro de si (1981:29). Em outras palavras segundo Patricia Aragão, em sua monografia, o segredo do poema será desvendado de acordo com a perspectiva de cada leitor, desde que não ultrapasse suas fronteiras, com as experiências de vida que carrega consigo.

O amor é sempre uma busca perdida na poesia de Florbela, pois mesmo antes de ser encontrado já acarreta contínuas desilusões, que ela procura compensar com um novo amor, que lhe trará novas decepções, como bem define o site (prahoje.com.br/florbela). No soneto "Em busca de amor" encontra-se o tema de perda de ilusão, causada pela desilusão amorosa, como se pode comprovar nos tristes versos dasestrofes abaixo:

O meu Destino disse-me a chorar:

"Pela estrada da Vida vai andando,

E, aos que vires passar, interrogando

Acerca do Amor, que há de encontrar."

Fui pela estrada a rir e cantar,

As contas do meu sonho desfiando...

E noite e dia, a chuva e ao luar,

Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei: "Velhinho,

Viste o Amor acaso em teu caminho?"

E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,

Voltam todos pra trás desanimados...

E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!...".

Nas primeiras duas estrofes observa-se que a autora ainda acredita que um dia encontrará o amor, e que ainda não perdeu as suas divagações oníricas. No último verso da terceira estrofe já se reflete uma vicissitude, e o clímax surge na última estrofe em que a autora perde a sua ilusão. Como já foi dito, o motivo do destino é muito comum nesta coletânea e mesmo neste soneto pode se refletir a presença da predestinação.

A autora foi incumbida pelo destino de encontrar o amor e, como não o encontrou, foi predestinada para não o encontrar, foi predestinada para acabar em desilusão. A nomeação é também, muito crítica na poesia de Florbela Espanca, e, como se pode observar neste soneto, Florbela usa maiúsculas nas palavras o "Destino", a "Vida" e o "Amor". Trata-se, portanto da personificação de termos abstratos que são, obviamente, palavras-chave do soneto. Para Octavio Paz:

"O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo, antes de se desmanchar, ergue-se numa plenitude na qual tudo (...) alcança um equilíbrio em apoio sustentado em si mesmo (...) Sem deixar de fluir o tempo se detém repleto de si" (1981:29).

Verifica-se através da assertiva que o amor é uma construção conjunta, onde ambas as partes se beneficiam de forma mútua e se completam, sem com isso um intervir na busca do equilíbrio alheio, mesmo correndo os riscos de ser atingido por fortes tempestades.

E, finalmente, mais tarde, a legitima e orgulhosa inspiração poética de Florbela atinge seu verdadeiro auge. Então, encontra-se suprema e verdadeira expressão no soneto "Mais Alto", in: Antologia de Poetas Alentejanos.


Mais alto, sim! Mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem

 

O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!

 

Mais alto, sim! Mais alto! A intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!

 

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!

 

Visto isso, o escritor Jorge de Sena, em seu livro intitulado "Florbela Espanca e a expressão do feminino" (1947), chamou a atenção para este soneto de Florbela, pois o que para muitos parece orgulho, megalomania, delírio, não é senão outro aspecto do que ao mesmo tempo, incapacitou Florbela para a vida do mundo, e a predestinou para a arte: o sempre querer mais. Começando pelo vulgar sonho do amor de um, ei-la que chegou ao amor, ao sonho do amor de um Deus, ao amor cósmico... E não é de crer que um qualquer amor tivesse atingido, ou pudesse atingir descanso. Ela que logo no poema "Eu" do Livro de Mágoas escreveu estes versos extraordinários: "sou talvez a visão que Alguém sonhou, Alguém que veio ao mundo pra me ver, e que nunca na vida me encontrou!".

Verifica-se que a forte presença do Eu, um Eu categórico, que sabe quem é, sem conjecturas, e a incidência de termos significativamente negativos, são as principais particularidades deste poema, e por meio desses elementos marcantes, o eu lírico busca traçar um retrato negativo de si mesmo. Assim, a auto definição torna-se uma tarefa árdua, complexa e quase impossível quando se depara com a complexidade da composição do "Eu". Como resultado tem-se a ambigüidade, a oscilação e a indefinição no perfil do sujeito.

Uma outra forma de amor que pode ser encontrada ao longo das belíssimas produções poéticas de Florbela Espanca é o amor dedicado ao seu irmão Apeles, a quem dedicou com muito ternura e cumplicidade desde a infância. Sua relação era muito próxima, pois trocavam cartas íntimas sobre relações amorosas, e, outrossim, sobre a relação entre si. Tal relação deu início a várias polemicas sobre incesto. Contudo, a poetisa dedicou nas suas obras a expressão de seu amor fraterno, em particular no poema "Roseira Brava".

Há nos teus olhos um tal fulgor
E no teu riso tanta claridade,
Que o lembrar-me de ti é ter saudade
Duma roseira brava toda em flor.

Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade
São como a alma a arder do próprio Amor!

Nasci envolta em trajes de mendiga;
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de rainha!

Tua irmã… teu amor… e tua amiga…
E também, toda em flor, a tua filha,
Minha roseira brava que é só minha!…

Contudo, não se pode afirmar que há mediante ao poema uma relação incestuosa entre Florbela e Apeles, pois não se tem registros que fora provada tal desvario. Segundo o poema pode supor que Apeles era pessoa muito rara e muito amada, pessoa de grande importância para Florbela. Segundo Antonio Freire (1977:57) descreveu a relação assim: "O certo que Florbela dedicava ao irmão uma amizade, uma ternura, como de mãe a filho estremecido. Fora ele quem melhor compreendera, quem procurava suavizar as suas moças, quem passara a tela um dos mais originais retratos da poetisa; e quem, finalmente, privado, como ela, do carinho de pai e mãe, mais veio a precisar do afeto maternal, que ela já desde os quatro anos lhe dispensava." Noutras palavras, Antonio Freire vê a relação entre eles como relação de amizade profunda, de grande dedicação e de grande pureza sentimental.

Segundo Claúdia Alonso (1997, p: 31-32), Florbela delineou, em seus versos, várias imagens de si, por vezes diametralmente opostas. Subjacente a todas as imagens que ela constrói de si mesma, está o problema da identidade feminina, pois a cada poema escrito e a cada livro finalizado, um pouco mais de Florbela se revelava ao mundo. Através de seus escritos, Florbela teve a ousadia de mostrar-se como mulher que conclama o direito de sentir e dar prazer, embora só começasse a ser publicamente reconhecida muitos anos depois.

Baseado no que fora exposto, observa-se, então, que o amor em Florbela aparece em nuances variadas, desde a exploração do amor incondicional, o arrebatamento amoroso, a louvação ao amor, sua valorização extremada, até sua desvalorização pelo outro, ao qual sempre fora objeto de desejo, mas, ironicamente, em sua essência nunca foi concretizado. Em suma, o universo poético de Florbela Espanca admite muitas portas para desvendá-lo, principalmente, quando se trata das suas múltiplas facetas relacionadas ao amor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como sepode observar, a poesia florbeliana foi, portanto, em grande parte inspirada pela sua própria vida e pelas relações que fizeram parte dela, pois é de uma grande expressividade dramática, possui uma carga emocional que a torna diferente da poesia contemporânea. Ela é a sua obra e a sua obra é ela, e em quase todos os seus poemas existe uma prova flagrante dessa identificação absoluta, daí que se tenha escolhido estas poesias como paradigma de um tempo e de uma ambiência mental feminina.

Enfim, a preocupação com o fazer poético nas poesias aqui estudadas cultiva uma reflexão, uma atitude de questionamento e uma tentativa de tradução do sentimento. Por conseguinte, a poesia de Florbela caminha para a fusão da vida e da poesia, numa incessante busca da plenitude artística. E, quiçá, o processo de criação para atender às pressões do inconsciente é que levaram Florbela a uma permanente angústia de nunca conseguir expressar-se na proporção em que a força erótica de sua alma oculta o exigia.

Florbela Espanca possuiu como que uma predisposição para o sofrimento e por isso cultivou-o, desenvolveu-o, deixou-o crescer ainda mais dentro de si, escrevendo e referindo constantemente o passado, insistindo numa recordação saudosista exagerada. Destarte, não é fácil compreender tamanhas sensações e sentir-lhes a beleza, mas ela está lá, num ponto que ultrapassa muitos de nós, pois como a própria poetisa escreveu: "ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens!".

REFERÊNCIAS

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ESPANCA, Florbela. Poesia de Florbela Espanca. Porto Alegre: L&PM, 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Movo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: 4ª ed.revista e atualizada, ED. Positivo, 2009.

FREIRE, Antonio. O Destino em Florbela Espanca. Porto: Edições Salesianas, 1977.

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Aceso em Agosto de 2009.

TRUFFAUT O, François. Cinema segundo François Truffauto. Editora Nova Fronteira, 1988.

Disponível em: http://www.prahoje.com.br/florbela/. Acesso em Agosto de 2009


[1] Florbela Espanca nasceu em Vila Viçosa, no dia 08 de Dezembro de 1894 e faleceu em Matosinhos no dia08 de Dezembro de 1930. Filha de Antónia da Conceição Lobo e do republicano João Maria Espanca foi batizada com o nome Flor Bela de Alma da Conceição. Considerada uma grande poetisa portuguesa teve uma vida bastante tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos e que a autora soube transformar brilhantemente em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotização e feminilidade onde temas como amor,pessimismo,morte, tempo, desejo de evasão, ânsia do infinito, entre outros foram bastante recorrentes ao longo de sua criação poética. Foi uma mulher escritora que se dedicou à árdua tarefa de conquistar seu espaço no meio literário em que vivia, consciente de suas possibilidades e impossibilidades num mundo masculino.

[2] O livro "Charneca em Flor" representa o amadurecimento da escritora de forma completa, pois nele parece haver um extravasamento, uma liberação da paixão, do desejo, do erotismo que, talvez, não haja nos livros anteriores da poetisa. O livro apresenta-se composto por cinqüenta e sete sonetos, escritos quando a vida da autora já entrava num período crepuscular, embora prematuramente, pois logo ela deixaria de existir.