1º COLÓQUIO VAZIANO EM BELO HORIZONTE

COMUNICAÇÃO – 23/10/2008

FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

Raquel Ferreira de Souza

Mestranda em Filosofia

Linha de pesquisa: Ética

Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte/ MG

Área de concentração : Ética e Filosofia Política

Título: As motivações possibilitadoras da conclusão de um círculo dialético do agir humano ético, sob o olhar da ética vaziana

Resumo:

Buscamos através desse trabalho mostrar, a partir de conhecimentos prévios sobre o modelo da dialética hegeliana (inspiradora do sistema dialético da ética vaziana), que há em meio às passagensnecessárias que compõem a ética sistemática dialética de Henrique C. Lima Vaz (1- Momentos: universal, particular e singular; 2- Dimensões: subjetiva, intersubjetiva e objetiva, respectivamente) elementos que possibilitam a passagem da ação humana moralmente em formação, por cadamomento e dimensão de tal sistema, suprassumindo-os, a partir de suas motivações, até que se conclua, no mínimo, uma volta do círculo dialético pelo qual a ação humana passa eefetiva-se historicamente, para que se tenha uma ação verdadeiramente ética, que passou pela auto-reflexão do indivíduo agente e que este, por sua vez, apreendeu as razões de ser da construção do seu próprio agir enquanto ético.

Palavras- chave: ética; dialética; motivações.

As motivações possibilitadoras da conclusão de um círculo dialético do agir humano ético, sob o olhar da ética vaziana

Raquel Ferreira de Souza

Em um primeiro momento, faremos uma breve exposição e apresentação da ética de Henrique C. Lima Vaz, filósofo contemporâneo brasileiro, a partir de sua sistematização, que compreende categorias e subcategorias – aqui referidas como momentos e dimensões. Em um segundo momento, mostraremos as motivações que possibilitam a passagem entre as dimensões formadoras de tal sistema, que ao se concluir, compreenderá a constituição de um agir livre e consciente, formado a partir de um movimento dialético necessário para tal: o que é nosso objetivo neste.

A busca de um modelo ético que dê conta do todo social, de forma universal é uma questão que tem acompanhado a humanidade desde a antiguidade grega, e que vem sendo questionada muito em suas possibilidades de ocorrência a todo tempo.A ética é uma questão de todos os seres humanos, sendo que se apresenta como o único caminho de manifestação da liberdade.[1]

Lima Vaz apresenta um modelo ético que faz uma releitura do historicismo, dos fins do século XVIII, mais específico de Hegel, cujos pilares são a cultura, o ethos e a história. Esse busca na história o conteúdo necessário para se pensar uma ética filosófica, que de forma sistematizada, se manifesta na Razão prática, ou seja, manifesta-se no agir humano (práxis), que pode ser universalizado no próprio ethos.

"É justamente na práxis ética que a inter-relação dialética entre razão e liberdade e a abertura do ato à universalidade do dever-ser ou, em termos éticos, a relação da consciência moral com o Bem definem o invariante fundamental da vida ética que assegura, a um tempo, a permanência e abertura do agir ético e a possibilidade da sua integração na ordem racional de um sistema aberto." (VAZ, 2000, p.15)

Hegel via a filosofia como aquilo que "pensa o que é, pois o que é, é razão" [2], ou seja, pensou uma Razão prática que pudesse se manifestar na história do indivíduo. Logo, não falamos aqui de um sistema formal, falamos de um sistema[3] dinâmico (está acontecendo, se formando continuamente – no sentido mais estrito do uso do gerúndio), isto é, de uma ética que considera a tradição como uma possibilidade de instituição educadora, de forma que vê no ethos (na história/ mundo da vida) o lugar de manifestação do agir ético, que levará o indivíduo a ser livre e digno.

"Se atribuirmos, porém, à idéia de sistema uma estrutura analógica, a objeção se desfaz em face da possibilidade de discorrer sistematicamente sobre o ethos, respeitando as peculiaridades de sua natureza histórico-social." (VAZ, 2000, p.12)

Para tal arquitetura da ética hegeliana, o pensador viu na cultura/ tradição um circulo dialético em que se considera, inicialmente, três dimensões do agir humano: objetivo, subjetivo e intersubjetivo, sendo queo mesmo só vê a possibilidade de uma ética (prática ou uma práxis ética) que relê o passadoeo toma como conteúdo para a construção das açõespresentes; o que só será possível quando se completar no mínimo uma volta no círculo dialético histórico.

"Cada estágio da manifestação do Ser é comparável, pois, segundo a metáfora de Hegel há um círculo dialético em que o fim retorna ao princípio para assumi-lo na verdade plena de sua manifestação, apresentando-se então o Sistema como um círculo dos círculos, abrangendo a totalidade das formas fundamentais em que o Ser se manifesta." (VAZ, 2002, p. 106)

Segundo Vaz (2002, p.92), o historicismo vê na cultura, da qual o ethos é uma forma fundamental, o campo privilegiado para o exercício da reflexão ética, ou seja, o modelo de uma ética que instaura um diálogo entre o passado e o presente, como mecanismo de construção de uma sociedade ética, é um solo fértil para uma instituição educadora para o Bem: a própria sociedade, representada pelo sujeito ético/ pessoa moral.

No entanto, Lima Vaz não se assentou apenas no sistema ético apresentado por Hegel. O pensador buscou fazer uma categorização e sistematização das dimensões já apresentadas por Hegel, na busca de uma melhor delimitação do historicismo. Vaz traça caminhos para se chegar ao sucesso desse, que perpassam pela demonstração dos momentosdas passagens entre as dimensões do agir humano ético, imersas num processo dialético-temporal que o constrói a partir da educação para a vida ética, que ao cumprir um círculo histórico volta-se ao ethos, num movimento auto-reflexivo, como que em um evento fenomenológico, educa os demais indivíduos, que por sua vez passarão pelo mesmo movimento dialético, de forma contínua e necessária, visto que "a filosofia só pode pensar a história quando um círculo histórico se cumpriu e as razões nele presentes podem ser dialeticamente articuladas. Ela não é um programa para o futuro, mas uma lição a ser aprendida do passado." (VAZ, 2002, p.121).

O ser humano é por si só social, ou seja, tem a necessidade de se relacionar com seus semelhantes, construindo assim um ethos, ou seja, o lugar de suas manifestações: obviamente sua história. Se almejamos conceber uma sociedade que age universalmente[4], não há outro lugar para a realização de tal construção / educação senão o ethos.

"A práxis, com efeito, tem seus princípios causais na razão e na liberdade, conquanto submetida aos condicionamentos orgânicos, psíquicos e do mundo circundante físico e social que estruturam o espaço sine qua nom[5] de seu exercício." (VAZ, 2000, p. 15)

Tem-se aí, segundo Lima Vaz (2000, p.20) um sujeito que se automanifesta como indivíduo ético, logo, parte de uma comunidade ética, que só é possível a partir da mediação do Eu sou tornando-se participante ou existente na realidade do ethos.

Desta forma, partiremos aqui do pressuposto de que o movimento do agir, de forma livre e consciente, e a busca de uma universalização do agir, só são possíveis a partir de uma construção histórico-cultural. Contudo, faz necessário esclarecer que, Lima Vaz não nega o fato de o indivíduo ser um ser moral, antes de um processo educativo, visto que o ser humano é dotado de uma virtualidade ética desde a sua gênese, o que lhe compete a dignidade e o direito à vida.[6]

Lima Vaz, ao pensar o agir humano, viu a possibilidade de um diálogo entre o ethos e tudo que se manifesta nele e a Razão, de forma que os vê como que em um acordo, concebendo assim o conceito de Razão Prática.[7]

"A possibilidade de agir de acordo com o ethos e de avaliar o êxito da ação reside na forma de razão imanente ao próprio agir, que a tradição aristotélica denominou justamente Razão Prática. A Razão prática é, portanto, um dos usos fundamentais da razão que deve ser dito universal seja enquanto racional ou predicado do ser humano definido como possuidor do Logos, seja enquanto homólogo ao fenômeno universal do ethos." (VAZ, 2000, p.26)

A Razão prática pode ser provada pelo agente ético enquanto tal, a partir da regulamentação de seus atos e hábitos pelas normas e valores do ethos. Ao se pensar na teia histórica do ethos, automaticamente faz-se necessário pensar em uma forma de Razão prática, já que, caso contrário, todos os indivíduos agiriam a partir de suas vontades particulares, o que impossibilitaria a existência de um ethos, isto é, de uma sociedade. Logo, fica claro que a universalidade do ethos só é possível sob uma perspectiva antropológica.

No que tange os elementos motivadores que possibilitam as passagens de dimensões e momentos da ética vaziana, e já que a dialética que constitui o agir ético, de acordo com o sistema ético desenvolvido por Lima Vaz, apresenta-se ordenadamente em três dimensões: subjetiva, intersubjetiva e objetiva, sendo a primeira intrínseca ao sujeito (subjetiva); a segunda, o lugar do encontro com o outro (intersubjetiva), e a última mais ligada ao "real" (objetiva), i.é., à efetivação concreta da ação ética, ou como Vaz diz, ao mundo da vida; passaremos a tal análise e demonstração a partir de agora, de forma rápida e delimitada apenas em meio ao agir ético[8], que é somente um dos lugares constituintes da formação da pessoa moral, , ordenadamente conforme dito anteriormente. Ressaltamos pois, que há muito mais a ser visto, que não foi possível aqui devido às restrições temporal e temática.

A dimensão subjetiva em seu momento de universalidade apresenta-se como abstrata, ou seja, apresenta ao indivíduo princípios abstratos para seu agir, que não cabem condicionamentos e situações particulares, ou seja, são atemporais e estão fora do espaço. Nessa dimensão encontra-se o predicado da inteligência aberta à universalidade do ser e da vontade - o que Lima Vaz chamará de atributos do espírito - para tal, apresenta-se as características de razoabilidade e de liberdade, nessa ordem. É importante lembrar que é no universal abstrato que se apresenta os pressupostos do Bem e que o Bem aparece como fim último.

É na consciência e na busca pelo Bem que os princípios universais ainda abstratos são lançados ao momento particular, ou da deliberação. Nesse aparecerão motivações (vontades humanas) que nem sempre são racionais; de forma que, só será possível a escolha pela ação boa e justa com o uso da phronesis, que é o saber deliberar o que é bom e o que é mau ao homem no conjunto da vida, ou seja, o ser humano persegue o Bem, mas cabe a ele a análise situacional, que só se dá no particular, que é exatamente o que resguarda sua liberdade.

Lançados os princípios universais à particularidade, e passado o instante de deliberação do agir, este é lançado ao momento singular, que pressupõe o encontro da inteligência e da vontade do indivíduo, que através de sua consciência moral, auto-determinará o seu agir enquanto ético.

Após o cumprimento dos três momentos da dimensão subjetiva, tal agir é lançado à dimensão intersubjetiva, também reconhecida como lugar do encontro com o outro: elemento fundamental à ética.

Assim como exposto anteriormente, a dimensão intersubjetiva também apresenta três momentos de passagem, que são: universal, particular e singular.

No momento universal de tal dimensão é que se apresenta a possibilidade do encontro do Eu com o Tu, que deve ser visto como outro Eu, o que só é possível a partir do reconhecimento.

É valido dizer que a idéia de reconhecimento está diretamente ligada à consciência moral (demonstrada na dimensão subjetiva, em seu momento singular), já que o Eu se reconhece como ser de consciência moral e reconhece no Outro também tal consciência. É do encontro e do reconhecimento que surge o consenso, que se apresentará como um horizonte comum.

Ocorrido o consenso ainda abstrato, tal ação é lançada ao momento particular , que pressupõe uma teia de condições sociais, temporais e modais, o que faz aparecer a necessidade concreta do consenso e do reconhecimento, que pressuporá a criação de instituições ordenadoras dos participantes desse consenso, no horizonte transcendental do Bem. Com tal necessidade surgida, vê-se no momento singular a possibilidade de suprassumição da particularidade, a partir da consciência moral – que sempre se apresenta como lugar de ordenação das dimensões – para que tal agir seja lançado à universalidade concreta, apresentando-se já como ação ética, que só se realiza no encontro com o outro.

Tendo construído a ação ética a partir das passagens dos três momentos das duas primeiras dimensões (subjetiva e intersubjetiva), lança-se pois a ação à dimensão objetiva, que está diretamente ligada ao mundo da vida, ou seja, à realidade, que se apresenta no seio do ethos.

Na dimensão objetiva em seu momento universal, apresenta- se normas, leis e valores sociais – só possíveis após os estágios do reconhecimento e do consenso. No entanto, tais normas, leis e valores ainda abstratos já trazem consigo as categorias de fim, bem e valor, já que são construídas no movimento da história.

Lançados os princípios universais sociais (normas, leis e valores) à particularidade, tais se esbarram nas condições particulares e situacionais do indivíduo e/ou do ethos, e é através do rompimento da teia de condições, que se mantém a intencionalidade orientada para o Bem, instituída na dimensão subjetiva.

Aqui se delibera os fatores condicionantes da ação, do indivíduo ou do ethos, e a partir de tal ação orienta-se segundo os critérios da objetividade, que se encontram nas normas e nas leis de cada ethos – construídas no evento da história do mesmo. Tendo havido todo esse processo, o sujeito, de forma livre e consciente, age de acordo com as leis e as normas objetivas, pois sabe que sua ação real/social (universal concreto objetivo) é uma ação ética, boa e justa, não apenas para ele, mas para todos os membros da comunidade ética, o que já pertence ao momento singular.

Tendo apresentado um pouco do sistema dialético do agir humano enquanto ético, desenvolvido por Lima Vaz e as motivações que compreendem esse, deixamos um convite à leitura da obra desse pensador e ressaltamos que há muito a ser aprendido com tal.

Referências

I- Vaz, H. C. L. Escritos de filosofia V: introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000. p. 11-127.

II- Vaz, H. C. L. Ética e direito. São Paulo: Loyola, 2002. p. 99-131.

III-_________. Fenomenologia do ethos. Preliminares semânticos. Escritos de Filosofia 2; Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988. p.11-78.

IV-_________. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p. 105-115.

V-________. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. p. 325-349/ 365-405.

VI- ________. Ética e razão moderna. Síntese Nova Fase, v. 22, n. 68 (1995) 53-84 (artigo).

VII- CIRNE-LIMA, C. R. Dialética para principiantes. 3ª Ed. RS: Unisinos, 2005.

VIII- GODOY, R. Metafísica e modernidade: método e estrutura, temas e sistema em Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 2006. p.243-259/ 316- 328.



[1] Ver o artigo "Fenomenologia do Ethos", in Ética e Cultura, p. 15-16.

[2] Vaz cita Hegel, em Ética e Direito, p. 121.

[3] Ver definições de "sistema" em EF. V, p. 11-14.

[4] A universalidade aqui é entendida como o Bem, como Fim Último.

[5] A expressão Sine qua nom traduzida literalmente seria "sem a qual não", aqui a entenderemos como "necessário a/de".

[6] Ver nota -24- EF. V, p. 22/23.

[7] Conceito rememorado da ética aristotélica.

[8] Ver esquema em anexo (anexo 1).