As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário, de Robert Castel – uma resenha

Walace Ferreira

Atualmente Professor no CAP-UERJ; Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP)/UERJ; mestre em Sociologia pelo IUPERJ; bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UERJ. Graduando em Direito na UERJ. Ex-Professor Substituto do Colégio Pedro II; Ex-Professor Substituto da Faculdade de Ciências Sociais da UERJ.

E-mail: [email protected].

 1.   Apresentação

O livro do sociólogo francês Robert Castel, As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário, surge num período em que o problema da insegurança socioeconômica das populações que vivem do trabalho volta a ser colocado na agenda política do Ocidente. É um problema cuja solução, para alguns, estava no Estado de Bem-Estar; expectativa que se revelou frustrada nas últimas décadas do século passado.

Este livro de Castel é a tentativa de reconstrução das diversas faces dessa insegurança ao longo da história européia a partir do período medieval, mostrando como as diversas sociedades enfrentaram o problema do excedente populacional que sucessivos arranjos econômicos não foram capazes de incorporar, a que Castel denomina de “desfiliação social”. Este termo é usado pelo autor para substituir o conceito de “exclusão”, pois ele considera que este conceito perdeu a sua capacidade explicativa, uma vez que todos os processos seriam explicados da mesma forma. Segundo Castel, o uso do termo “exclusão” é uma “resposta preguiçosa” às dificuldades de problematizar os diferentes processos que atravessam a sociedade contemporânea e que fazem com que os indivíduos passem de uma situação de integração para uma situação de extrema vulnerabilidade.

Tendo como inspiração para este livro a sociedade francesa, Castel insere sua obra no seio do debate que se desenvolve acerca do desemprego, da precarização e da flexibilização da presença de estrangeiros na disputa por postos de trabalho em mercados encolhidos. Debate este que não se localiza apenas entre intelectuais ou espaços midiáticos, mas habita o próprio universo das pessoas que vivem esses problemas. Assim, assume formas bastante consideráveis dentre organizações de desempregados e de trabalhadores precarizados, no seu movimento social e nas suas reivindicações.

É nesse sentido que o prefácio de Cibele Saliba Rizeck ressalta ser este livro bem-vindo não apenas ao público universitário, mas destinando-se a um público bem mais abrangente, na medida em que é portador de um interesse que ultrapassa de longe esse âmbito de leitura. Afinal, a questão central do livro extrapola ao interesse daqueles que foram atingidos pelas novas formas de desemprego ou de precarização, estando a margem da sociedade salarial, parecendo ter se tornado “inúteis do mundo”. O interesse, aqui, está também vinculado ao centro das relações salariais e sociais, ou seja, a própria natureza dos laços e vínculos que constituem o seu núcleo.

Nessa linha de pensamento, não se trata de pensar apenas os fenômenos que relatam como e quem foi posto à margem, mas também o que acontece com os que permanecem no interior das zonas de “coesão social” ou das “zonas de integração” em seu frágil equilíbrio, constituído a partir do vínculo entre as relações de trabalho e as formas de sociabilidade. Nesse sentido, é por essa via que se ergue o debate sobre a centralidade do trabalho como eixo das relações sociais, como processo que origina as configurações culturais, simbólicas e identitárias, debate esse que Castel revisita em As metamorfoses da questão social pelo ângulo das questões e dos termos da reflexão francesa, valendo-se de uma perspectiva ao mesmo tempo crítica e clássica.

Vale ressaltar que a escolha da palavra “metamorfose” não é uma metáfora empregada para sugerir que a perenidade da substância permanece sob a mudança de seus atributos; ao contrário, diz o autor, uma metamorfose faz as certezas tremerem e recompõe toda a paisagem social. Já a “questão social” seria, na sua visão, uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. Assim, é um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência.

2.    Os principais argumentos

No livro aqui tratado, Castel tece uma argumentação em que a questão social, tratada pelo filtro da sua historicidade, como dimensão que se constrói a partir de um equilíbrio frágil entre coesão e conflito, não pode ser vista como puro efeito mecânico, quer do ponto de vista da sua longa constituição, quer do ponto de vista de suas configurações contemporâneas. Assim, é pelo recurso a esta história do presente que os argumentos que constituem o livro escapam de algumas idealizações nostálgicas sobre o passado e de posições que poderiam se filiar ao profetismo ou catastrofismo em relação a um futuro cujas imagens também estão em crise.

Daí um dos sentidos da recuperação das formas de constituição das sociedades que puderam ser caracterizadas como sociedades salariais, com suas zonas de assistência inseridas ou não em políticas sociais empreendidas pelo Estado, a partir das quais vão tomando corpo e ganhando nomes os que ficaram de fora, os “desfiliados”, tais como os estrangeiros, os vagabundos e os incapacitados.

Utilizando-se desse conceito de “desfiliação” a fim de substituir o termo “exclusão” – como já mencionado antes – Castel apresenta como uma das conseqüências dos processos de desfiliação a perda dos suportes sociais que garantem o exercício de direitos iguais em uma sociedade democrática e o desengajamento material e simbólico dos indivíduos no laço social. Assim, o hiperindividualismo contemporâneo consiste em um dos efeitos da nova configuração social, e a ameaça que pesa sobre o indivíduo faz como que ele se feche sobre si mesmo.  Como aparece no livro em que Castelescreveu com  Claudine Haroche, The Genealogy of the modern individual and the social supports of existence, Castel utiliza-se da metáfora de Narciso para explicar que o indivíduo que não pode referenciar-se em algo que esteja fora dele mesmo acaba por afogar-se na própria imagem. A individualização produzida pelo ideal neoliberal é a de um sujeito para o qual a sociedade não faz sentido, como se ele não possuísse nenhuma responsabilidade frente à sociedade. Esta ilusão pode ser interpretada como uma resposta às pressões sociais - tais como aquelas produzidas pela imposição da tecnologia e pelo capital financeiro - que são sentidas como impossíveis de serem suportadas ou controladas pelo indivíduo, produzindo uma recusa de todo o tipo de engajamento que implique nas responsabilidades referentes ao engajamento no laço social.

Um dos vários méritos de Castel em As metamorfoses da questão social consiste no fato de que, numa época em que se verifica o renascimento dos cânones liberais, ganha-se destaque a história das relações salariais como nexo e como imperativo cuja afirmação, por meio da substituição da tutela pelo contrato, instalou uma vulnerabilidade de massa que impôs o livre acesso ao trabalho como questão central. Sua constituição, segundo Castel, se fez através de um duplo movimento, na medida em que a condição operária se fragiliza ao mesmo tempo que se libera. A liberdade e o individualismo triunfantes comportavam, lembra o autor, um lado sombrio, a saber, a individualidade negativa, personificada pelo vagabundo, por aqueles que não tinham apoio ou vínculo, privados de toda proteção e de todo reconhecimento.

Na argumentação de Castel, a problemática contemporânea tem seu eixo no fato de que as regulações tecidas ao redor do trabalho vêm perdendo seu poder de integração. Nesse sentido, reencontra-se e reproduz-se a vulnerabilidade de massa, condição da necessidade de generalização das relações salariais, risco cujo equacionamento e expulsão estavam na origem do “Estado Social”. E como seu núcleo se constitui pelo enfraquecimento das formas de política social, ou pelo seu encolhimento, pelo crescimento do desemprego e da precarização, pela impossibilidade de acesso livre aos postos assalariados de trabalho, sua personificação se faz não pelo vagabundo, mas pelo desemprego e pelos desempregados, os novos “desfiliados” sem lugar, categorias que se desenvolveram como contraponto e reverso da situação configurada a partir do trabalho como imperativo.

Esta reversão ocorrida, entretanto, não repõe a antiga vulnerabilidade, até porque a construção histórica que redundou na sociedade salarial implicou no que Castel chamou de “cadastramento” da sociedade, ou seja, em novas formas de representá-la, na possibilidade de circunscrição do conjunto da “população ativa”, na enumeração rigorosa dos diferentes tipos e na clarificação de categorias ambíguas de emprego, na delimitação das atividades e na determinação clara da separação entre trabalho e não-trabalho. Contudo, ressalta que esta vulnerabilidade não é a mesma, haja vista que esta sucede o “Estado Social” e suas políticas sociais que ainda não se desmantelaram por completo.

Castel aponta, de forma crítica, como a forma liberal do contrato, primeira configuração da condição salarial compreendia como estatuto ao qual se vinculam garantias e direitos, definiu o estado de assalariamento não apenas como vulnerável mas como “impossível de ser vivido”. Erigiram daí algumas soluções liberais bem conhecidas no nosso tempo, tais como a patronagem, a filantropia, uma política social sem o Estado, que construíram e reconstruíram as esferas extra-salariais em torno da condição de assalariamento, com vistas à montagem de um plano de governabilidade assentado na reconstituição do mundo do trabalho a partir de um sistema de obrigações morais. Foi o fracasso dessas iniciativas, entretanto, que instaurou novas estratégias, indexadas a partir do Estado, trazendo novas formas de segurança e de proteção social – nascia o “Estado Social”. Este, portanto, nascia a partir do compromisso entre os interesses do mercado e as reivindicações do trabalho.

Já o momento contemporâneo é marcado por uma situação de transitoriedade que clama por diagnósticos precisos, na medida em que o que se tem são os indícios de transformação desenhados. Como aponta Castel, o processo de degradação dos eixos que se constituíram nos pilares da sociedade salarial tem posto em xeque modos de socialização e formas de integração com base no trabalho, além de reverter identidades, filiações, formas de coesão e de solidariedade. Nesse sentido, a organização ou desorganização do trabalho, a estruturação ou desestruturação das formas de sociabilidade convidam a repensar, atualmente, a questão social nos termos de um novo crescimento de vulnerabilidade de massa cujo risco se acreditava afastado, pelo menos nas sociedades européias, já que entre nós (no Brasil) a própria constituição do Estado Social (ou Estado Previdência como preferem alguns) nunca chegou a se completar – como defende uma boa gama de pensadores.

Nosso tempo é caracterizado, na visão de Castel, por um espectro de possibilidades e riscos, o que impõe uma reflexão densa que se desenvolve a partir de quatro questões fundamentais.

A primeira estaria ligada à continuidade da degradação da condição salarial que substitui o vagabundo pelo “inempregável” como personificação de uma individualidade pelo avesso, que faz da “reabilitação da empresa”, por exemplo, um novo “imperativo categórico”, ao qual toda a sociedade deve se conformar, imperativo este que opera por meio das novas e múltiplas formas da flexibilização do trabalho e de precarização, pela imposição das “leis naturais” do mercado que podem destruir as condições mínimas de uma sociedade em que a idéia de igualdade ainda possa ter alguma legitimidade.

A segunda possibilidade consiste na busca de manutenção e estabilização da situação atual, referindo-se especialmente à sociedade francesa, o que parece estar sendo obstaculizado pela escalada da violência por um lado, e pela fragilidade do movimento operário, vinculado à possibilidade de uma organização estruturada em torno de uma condição comum, de um projeto alternativo de sociedade e do sentimento de ser indispensável ao seu funcionamento.

Já a terceira questão estaria ligada ao debate sobre o fim da sociedade do trabalho, tratando-se de abordar o fim da centralidade do trabalho e de lhe propor alternativas. Consiste numa questão polêmica na qual Castel situa-se alegando que o trabalho continua como referência dominante não somente economicamente como também psicologicamente, culturalmente e simbolicamente, fato que se comprova especialmente na reação daqueles que não o tem.

Por fim, a quarta questão diz respeito a uma redistribuição dos “recursos escassos” que provém do trabalho socialmente útil, tratando-se de partilhar o trabalho útil e significativo no quadro de uma sociedade salarial que, como formação social, tem uma natureza histórica. A força desta posição resulta do fato de que o trabalho ainda é o principal fundamento da cidadania na medida em que esta comporta uma dimensão econômica e social, e que é precisamente nesta dimensão que a “sociedade salarial” e a democracia se vinculam – sendo a sociedade salarial, na opinião de Castel, a forma mais avançada de democracia da história ocidental.

Um dos empreendimentos do autor neste livro consiste em procurar entender como a condição de assalariado chegou a superar todas as fantásticas desvantagens atribuídas ao assalariado, vindo a se tornar, nos anos 1960, a matriz de base da chamada “sociedade salarial” moderna. Assim, o autor escapa de uma análise apenas histórica de todas essas percepções, e faz uma sociologia de primeira linha em seu engenho aqui elaborado. Esse é um dos motivos pelos quais essa obra é exemplar para as ciências sociais, tendo seu foco central armado sob inspiração sociológica, mas abrindo-se ao leque de amplas percepções por parte das ciências humanas em geral.

Como o próprio Castel aponta, se a história ocupa um lugar importante nesta obra, é a história do presente que se trata, o esforço de reentender o surgimento do mais contemporâneo, reconstruindo o sistema de transformações de que a situação atual seria herdeira. Nesse sentido, o autor trabalha com várias categorias, tais como a desconversão social, o individualismo negativo, a vulnerabilidade de massa, a desvantagem, a invalidação social, a desfiliação, dentre outros que ganham sentido no quadro de uma problemática da integração, ou da anomia, visto que seu trabalho é uma reflexão sobre as condições da coesão social a partir de situações de dissociação.

Todas essas questões têm na relação com o trabalho o fator determinante para recolocá-las na dinâmica social que as constitui. O “trabalho” na perspectiva de Robert Castel não é pensada, com isso, enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Para o autor, há uma forte correlação entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção que cobrem um indivíduo diante dos acasos da existência. São esses sistemas de proteção que comportam o que ele chama de “zonas” de coesão social. A associação do trabalho estável que caracteriza uma área de integração tem como contraponto a ausência de participação em qualquer atividade produtiva e o isolamento relacional que conjugam seus efeitos negativos para produzir exclusão (ou nos termos de Castel, desfiliação). Já a vulnerabilidade social é uma zona intermediária, marcada pela instabilidade, e que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. No seu argumento, a composição dos equilíbrios entre essas “zonas” pode servir como indicador privilegiado para avaliar a coesão de um conjunto social num dado momento, daí a relevância desse ponto na sua argumentação.

Embora o esquema de Castel seja formal, ele próprio salienta que sua leitura não deve ser feita pelo corte da estratificação social, pois é possível, por exemplo, haver grupos fortemente integrados e fracamente providos. Esse esquema também não é estático, pois menos do que situar indivíduos nessas “zonas”, trata-se de esclarecer os processos que os fazem transitar de uma para outra, podendo passar da integração à vulnerabilidade, por exemplo, ou deslizar da vulnerabilidade para a inexistência social.

Foi nos anos 1930 que suscitou, segundo Castel, uma tomada de consciência das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução industrial. Nas palavras do autor:

“Momento essencial aquele em que pareceu ser quase total o divórcio entre uma ordem jurídico-política, fundada sobre o reconhecimento dos direitos dos cidadãos, e uma ordem econômica que acarreta uma miséria e uma desmoralização de massa. Difunde-se então a convicção de que há aí de fato ‘uma ameaça à ordem política e mora’, ou, mais energicamente ainda: ‘É preciso encontrar um remédio eficaz para a chaga do pauperismo ou preparar-se para a desordem do mundo’” (Castel, p. 30).

Assim, esse fenômeno representa o fato de que a sociedade liberal corre o risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a conseqüência de uma industrialização selvagem. Durkheim e os republicanos do fim do século XIX chamaram de solidariedade esse vínculo problemático que assegura a complementaridade dos componentes de uma sociedade a despeito da complexidade crescente de sua organização, sendo, portanto, o fundamento do pacto social. Durkheim reformulava-o nesses termos no momento em que o desenvolvimento da industrialização ameaçava solidariedades mais antigas que ainda deviam muito à reprodução de uma ordem baseada na tradição e no costume. Assim, na aurora do século XXI, quando as regulações implantadas no contexto da sociedade industrial estão profundamente abaladas, considera Castel que é o mesmo contrato social que deve ser redefinido a novas expensas.

3.    A modernidade liberal

No seio da sociedade liberal, a partir do século XVII e início do século XVIII, o modo como se apresenta a questão do lugar ocupado pelos grupos mais desfavorecidos sofrem modificações. De uma lado está a tomada de consciência de uma vulnerabilidade de massa que torna cada vez mais fictícia a propensão a reduzir a questão social ao tratamento destes dois grupos extremos, os indigentes incapazes de trabalhar, que são assistidos, e os vagabundos, que são reprimidos. De outro lado está uma transformação da concepção do trabalho, que não é mais só um dever que responde a exigências religiosas, morais ou mesmo econômicas. O trabalho torna-se a fonte de toda riqueza, e, para ser socialmente útil, deve ser repensado e reorganizado a partir dos princípios da nova economia política.

Nessa sociedade, gera-se pessoas que dependem, para sobreviver, de um atendimento dispensado sob distintas formas, seja de uma assistência total nos hospitais e nos órgãos de caridade, seja de ajudas parciais, por exemplo, sob a forma de uma distribuição pontual ou regulação de alimentos ou subsídios. Assim, uma indigência estrutural importante constitui um traço incontestável dessas sociedades, o que se mantém de maneira mais ou menos constante durante vários séculos, afetando o conjunto dos países que representam a Europa rica e desenvolvida. Ao lado da indigência estrutural, uma massa importante de pessoas vive em condição precária e basta-se uma situação conjuntural para que caiam na dependência.

Faz-se relevante ressaltar que no século XVII aparece um novo discurso sobre a indigência, que é sua insistência no caráter de massa do fenômeno. Esta parece residir na tomada de consciência de uma vulnerabilidade de massa, diferente da consciência secular de uma pobreza de massa. Tornam-se um risco que afeta a condição laboriosa enquanto tal, isto é, a maioria do povo da cidade e do campo. A questão social vai se tornar a questão criada pela situação de uma parte do povo enquanto tal e não apenas por suas franjas mais estigmatizadas. Esta precariedade da condição popular não aparece apenas nos baixos salários que selam o destino da miséria laboriosa, mas também a instabilidade do emprego, a busca de ocupações provisórias, a intermitência dos tempos de trabalho e de não-emprego. “A vulnerabilidade tornou-se uma dimensão coletiva da condição popular” (Castel, p. 222).

Paralelamente a essa tomada de consciência de uma vulnerabilidade de massa, ocorre uma transformação da concepção do próprio trabalho e que vai afetar profundamente a condição laboriosa. O trabalho é reconhecido como a fonte da riqueza social. Como diz Castel, tratando-se do mercantilismo ou das formas anteriores de regulação do trabalho por meio dos imperativos morais ou religiosos, o valor econômico do trabalho é sempre subordinado a outras exigências. Resulta dessa proposição que o trabalho não conseguiria desenvolver-se “livremente”, sendo sempre necessário enquadrá-lo por sistemas externos de coerções. E somente com o liberalismo é que a representação do trabalho vai ser “liberada”, e o imperativo da liberdade do trabalho acaba se impondo.

Portanto, segundo Castel, a verdadeira descoberta que o século XVIII promove não é a da necessidade do trabalho, mas, sim, a da necessidade da liberdade de trabalho, implicando a destruição dos modos de organização do trabalho até então dominantes. Esse livre acesso ao trabalho beneficiava, incontestavelmente, as classes burguesas que iriam tomar o poder, e conseqüentemente o sistema capitalista de produção.

4.    A sociedade salarial

Na sociedade salarial, três são as formas dominantes de cristalização das relações de trabalho e também três modalidades das relações que o mundo do trabalho mantém com a sociedade global: condição proletária, condição operária e condição salarial. A condição proletária representa uma situação de quase-exclusão do corpo social. O proletário é um elo essencial no processo de industrialização nascente, mas está condenado a trabalhar para se reproduzir. Já a relação da condição operária com a sociedade como um todo é mais complexa. Constituiu-se uma nova relação salarial e, através dela, o salário deixa de ser a retribuição pontual de uma tarefa, pois assegura direitos, oferece acesso a subvenções extratrabalho (como doenças, acidentes, aposentadoria) e permite uma participação ampliada na vida social (consumo, habitação, instrução e lazer). Esboça-se aqui uma estratificação mais complexa do que a oposição dominantes-dominados que compreende zonas interseqüentes através das quais a classe operária vive a participação na subordinação – exatamente no consumo, na instrução e no lazer. É por isso que essa estrutura é instável. Como diz Castel, o momento em que se estrutura a classe operária é também aquele em que se afirma a consciência de classe, ou seja, entre “eles” e “nós”, nada está definitivamente decidido.

O advento da sociedade salarial não será, segundo Castel, o triunfo da condição operária. A salarização da sociedade cerca o operariado e subordina-o novamente, desta vez sem a esperança de que possa, um dia, impor sua liderança. O argumento central vincula-se ao fato de que é a partir da posição ocupada na condição de assalariado que se define a identidade social. A escala social comporta uma graduação crescente em que os assalariados dependuram sua identidade, sublinhando a diferença em relação ao escalão inferior e aspirando ao estrato superior.

A sociedade salarial liga-se intimamente ao processo de acumulação de bens e de riquezas, criação de novas posições e de oportunidades inéditas, ampliação dos direitos e das garantias, multiplicação das seguridades e das proteções. O incrível aqui é que, na história dessa sociedade, existiram condições que a tornaram possível, fazendo da sociedade salarial uma estrutura inédita, ao mesmo tempo em que sofisticada e frágil. A tomada de consciência dessa fragilidade, contudo, é recente, datando da década de 70, e hoje constitui – no argumento de Castel - no nosso principal problema.

5.    A nova questão social e o individualismo negativo

A nova questão social, como chama Castel, deve ser interpretada a partir do enfrentamento da condição salarial. A questão da exclusão que há alguns anos ocupa o primeiro plano é um de seus efeitos, essencial sem nenhuma dúvida, mas que desloca para a margem da sociedade o que a atinge primeiro no coração. O assalariado acampou durante muito tempo às margens da sociedade; depois aí se instalou, permanecendo subordinado; enfim, se difundiu até envolvê-la completamente para impor sua marca por toda parte. Mas é exatamente no momento em que os atributos vinculados ao trabalho para caracterizar o status que situa e classifica um indivíduo na sociedade pareciam ter-se imposto definitivamente que essa centralidade do trabalho é brutalmente recolocada em questão.

Também a característica mais perturbadora da situação atual é o reaparecimento de um perfil de “trabalhadores sem trabalho” – nos termos de Hannah Arendt -, os quais ocupam na sociedade um lugar de supranuméricos, de “inúteis para o mundo”. Além disso, outra novidade não consiste só na retração do crescimento nem mesmo no fim do quase-emprego, a menos que se veja aí a manifestação de uma transformação do papel de “grande integrador” desempenhado pelo trabalho, O trabalho, assim, é mais que o trabalho, e o não-trabalho é mais que o desemprego.

Outro argumento de Castel que o leva a identificar a questão social atual, consiste na posição do Estado. Com o progresso, não se trata mais de instaurar à força um mundo melhor, mas de preparar transições que, progressivamente, permitirão que dele se aproxime. Essa representação da história é indissociável da valorização do papel do Estado, pois é preciso um ator central para conduzir tais estratégias, obrigar os parceiros a aceitarem objetivos sensatos, zelar pelo respeito dos compromissos, e o Estado é esse ator. “Em sua gênese, primeiro foi montado com peças e pedaços. Mas à medida que se fortalece, chega a ambição de conduzir o progresso” (Castel, p. 498).

Nesse sentido, o Estado moderno ajuda a mitigar algumas disfunções gritantes, assegurando um mínimo de coesão dentre os grupos sociais. Contudo, seria através do ideal social-democrata que o Estado social surge como o princípio de governo da sociedade, a força motriz que deve assumir a responsabilidade pela melhoria progressiva da condição de todos. Castel, no entanto, recusa tal posição do Estado social democrata: “É possível objetar que esse Estado social-democrata ‘não existe’. De fato, sob essa forma, é um tipo ideal” (Castel, p. 499).

O núcleo da questão social hoje seria novamente a existência de “inúteis para o mundo”, de “supranumerários, e em torno destes, uma nebulosa nuvem de situações marcadas pela instabilidade e pela incerteza do amanhã que atestam o crescimento de uma vulnerabilidade de massa. É no momento em que a “civilização do trabalho” parece impor-se definitivamente sob a hegemonia da condição de assalariado que surge uma fratura, repondo na ordem do dia a velha obsessão popular de ter que viver “com o que ganha a cada dia”. A condição de assalariado conservou uma dimensão “heterônoma”, mas suas transformações até a constituição da sociedade salarial tinham consistido, de um lado, em apagar os traços mais arcaicos dessa subordinação e, por outro lado, em compensar com garantias e direitos, bem como com o acesso ao consumo além da satisfação das necessidades vitais. O salário tornara-se assim, pelo menos através de várias de suas formas, uma condição capaz de rivalizar, com duas outras condições que durante muito tempo o tinham esmagado, a do proprietário e a do trabalhador independente. A despeito das dificuldades atuais, esse movimento não está acabado, visto que numerosas profissões liberais, por exemplo, tornam-se cada vez mais profissões assalariadas, com médicos, advogados e artistas assinando verdadeiros contratos de trabalho com as instituições que os empregam.

Na sociedade atual, pois, é necessário enfatizar que esta se torna cada vez mais uma sociedade de indivíduos. O fato de existir como indivíduo e a possibilidade de dispor de proteções mantém relações complexas, pois as proteções decorrem da participação em coletivos. Esse tipo de implicação em coletivos assegurava, ao mesmo tempo, a identidade social dos indivíduos e o que Castel chamou de proteção máxima. Todavia, nesta sociedade, existem formas de individualização que poderiam ser classificadas – tal como ele chama - de individualismo negativo, que são obtidas por subtração em relação ao cadastramento em coletivos. Assim, chama-se individualismo porque se declina em termos de falta – falta de consideração, falta de seguridade, falta de bens garantidos e de vínculos estáveis.

Castel entende estar se desenvolvendo, na atualidade, um outro individualismo, desta vez de massa, e que aparece como uma metamorfose do individualismo “negativo”, desenvolvido nos interstícios da sociedade pré-industrial. Metamorfoses e de modo algum reprodução, porque é o produto do enfraquecimento ou da perda das regulações coletivas, não de sua extrema rigidez. Porém, conserva o traço fundamental de ser um individualismo por falta de referências, e não por excesso de investimentos subjetivos. E sem a mediação de direitos coletivos, a individualização das ajudas e o poder de decisão fundado sobre interconhecimentos, tendo em vista as instâncias locais, correm sempre o risco de encontrar a velha lógica da filantropia.

Na opinião de Castel, o poder público é a única instância capaz de impor um mínimo de coesão à sociedade. As coerções impiedosas da economia exercem uma crescente pressão centrífuga. As antigas formas de solidariedade estão esgotadas demais para reconstruir bases consistentes de resistência.

“O que a incerteza dos tempos parece exigir não é menos Estado – salvo se entregar completamente às ‘leis’ do mercado. Também não é, sem dúvida, mais Estado – salvo para querer reconstruir à força o edifício do início da década de 70, definitivamente minado pela decomposição dos antigos coletivos e pelo crescimento do individualismo de massa. O recurso é um Estado estrategista que estenda amplamente suas intervenções para acompanhar esse processo de individualização, desarmar seus pontos de tensão, evitar suas rupturas e reconciliar os que aquém da linha de flutuação. (...) Mas esse Estado deveria ajustar o melhor possível suas intervenções, acompanhando as nervuras do processo de individualização” (Castel, p. 610).

6.    Conclusão

A obra aqui resenhada nos permite, dessa maneira, refletir sobre as novas facetas da exclusão presentes em nossa sociedade. Pois, ainda que o foco de Castel seja essencialmente o cenário francês, muitos elementos são úteis para pensarmos questões como a “precariedade do emprego” e a “desfiliação social” no contexto brasileiro.

A verdade é que a partir do livro As metamorfoses da questão social: uma crônica

do salário, Castel tornou-se uma referência obrigatória para a discussão do lugar do trabalho e dos suportes sociais a ele associados como garantia do laço social na sociedade contemporânea, tratando-se de todos os campos interessados em problematizar o trabalho como elemento estruturante da sociedade capitalista e como dispositivo que possibilita compreender a genealogia do indivíduo moderno.

Pela densidade teórica do livro e pela riqueza dos argumentos sociológicos elaborados por Castel, certamente essa obra pode ser considerada exemplar para as Ciências Sociais, e devido ao largo alcance que sua temática alcança, porque não dizer das Ciências Humanas em geral.

Bibliografia consultada

CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

NARDI, Henrique Caetano. Resenha crítica de A genealogia do indivíduo e os suportes sociais da existência. In: Psicologia & Sociedade; 14 (1): 141-146; jan./jun.2002.

SOUZA, Maria Antônia. Desigualdade e exclusão: reflexões a partir da obra de Robert Castel. Ver em: http://www.uepg.br/nupes/paper.htm.