AS METÁFORAS DO COMPORTAMENTO INCONSTANTE DE D. BENEDITA

 

CONTO DE MACHADO DE ASSIS  D. BENEDITA- O RETRATO

                                       Maria Aparecida Porfírio

 

RESUMO

 

O objetivo deste artigo consiste em demonstrar as metáforas do comportamento inconstante de uma personagem feminina na obra de Machado de Assis. Para isso selecionou-se o conto D. Benedita - o retrato, presente na coletânea Papéis Avulsos, que se refere ao tema. Consideraram-se três diferentes aspectos para justificar a inconstância no comportamento de D. Benedita; a contradição entre ser e parecer, entre a máscara e o desejo presente no papel que a mulher representava na sociedade; a construção de um caráter singular, moldado para as conveniências de uma mulher do século XIX; a conotação de um período histórico no fim da década de 1860, marcado pela indecisão, já que o regime imperial entrava em decadência nessa época. Como resultado, pode-se observar que a análise de um comportamento de um personagem, que aparenta ser, banalizado, pode esconder metáforas com vários significados. PALAVRA – CHAVE:

Comportamento inconstante- D. Benedita- Conto

 

 

The aim of this paper is to demonstrate the metaphors of behavior inconsistent one female character in the work of Machado de  Assis. For this we selected the short story D. Benedicta- the portrait, present papers  in the collection  broadsides, which refers to the subject. We considered three different aspects to justify the inconsistency in the behavior of D.Benedicta, the contradiction between being and seeming, between the mask and desire in this paper that the woman represented in society, the construction of a unique character ,shaped to the conveniences of a woman of the nineteenth century, the connotation of a historical period in order of the 1860s, marked by indecision, as the imperial regime went  into decline at this time. As a result, one can observe that the analysis of behavior of a character that appears to be common place, can hide metaphors with multiple meanings.

 

 

 

 

KEY WORDS:

Inconsistent behavior- D. Benecdita- short stories

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

    Papéis Avulsos, de 1882, foi o primeiro livro de coletânea de contos da 2ª fase de Machado de Assis, após a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que marca o início da fase realista no Brasil.

   Machado de Assis, com essa coletânea de contos, inaugura uma nova forma de narrar os assuntos de forma irônica, marca registrada de sua obra.

   Com estilo próprio, narra o dia-a-dia da sociedade carioca do início ao fim do século XIX, destacando as relações sociais que eram uma característica importante no interior das famílias, nas profissões, na vida pública, focalizando sempre as pessoas de classe média distinta.

 Bosi (2003) afirma que Machado sempre destacava as diferenças e as desigualdades presentes na sociedade carioca daquela época, e que se faz presente até os dias de hoje. Cada indivíduo está preocupado com interesses próprios.

 Segundo Bosi,

 

 “ [...] O olhar com que Machado penetra aquele universo de assimetrias tende a cruzar o círculo apertado dos condicionamentos locais na direção de um horizonte ao mesmo tempo individual e universal. Interessam-no cada homem e cada mulher na sua secreta singularidade, e o ser humano no seu fundo comum.” (p.54).

 

   Uma característica marcante na obra de Machado de Assis é a análise psicológica que ele fazia do ser humano, por meio de seus personagens, mostrando as dúvidas, desejos, ambições, egoísmos.  Pela falsa modéstia, ele ia traçando um perfil do homem configurado por traços que não eram somente da sua época, mas do homem de todos os tempos, num contexto cultural e social.

   D.Benedita- o retrato é um conto que para um leitor desatento, narra apenas a história de uma senhora da sociedade carioca que tem como característica um comportamento inconstante e superficial, mas se a leitura for feita, levando em consideração a nova forma em que Machado de Assis  dedicou- se a escrever,  ou seja, com várias mensagens nas entrelinhas do texto, verá que há diversas metáforas para interpretação desse conto. Algumas delas destacadas a seguir.

 

   O conto D. Benedita- o retrato foi publicado no suplemento literário d’ A estação, revista de modas femininas do século XIX. Segundo Gledson (p.10) o jornal mais simpático e vivaz do Rio de Janeiro, outros oito contos de Machado também foram publicados nessa revista, porém de forma mais curta. Nesses contos, ele estabelecia o padrão que seguiria para o resto da carreira concentrando sua produção nesses periódicos.

 

 

   D. Benedita-  o retrato

 

   A contradição entre o ser e o parecer

 

 

   O conto é como seu subtítulo sugere, um retrato da personagem principal, porém  um retrato de sua personalidade por meio de seu comportamento e atitudes diante da sociedade em que pertence.  

   Machado de Assis vai descrevendo a personagem Benedita, dando-lhe um perfil de mulher amadurecida na idade, mas cheia de indecisão e incertezas.

   O conto começa no dia em que ela, com um jantar, comemora seus quarenta e dois anos.

   Benedita é uma mulher típica da sociedade, com suas atitudes artificiais. Um exemplo dessas atitudes é a bajulação com D. Maria dos Anjos, a mais nova amiga, cujo filho Leandrinho era bacharel, tinha vinte e dois anos, ou seja, um bom partido para a filha Eulália que já estava na idade de casar. Um exemplo disso segue abaixo;

   “D. Benedita repete com a bcca a D. Maria dos Anjos tudo o que com os olhos lhe tem dito: que está encantada, que considera uma fortuna conhecê-la, que é muito simpática, muito digna, que traz o coração nos olhos, etc., etc., etc.”.

 

   Neste fragmento, é notável uma crítica fina e irônica, por meio do comportamento artificial de D. Benedita, à sociedade da época em que as amizades velavam sempre algum interesse.

   Eulália, filha de D.Benedita, era moça na idade de casar e cabia a mãe, lhe arranjar um marido que fosse um bom partido, já que o pai morava no Pará, depois de ter sido nomeado desembargador pelo ministério de Zacarias.

  Embora a mulher do século XIX ocupasse uma função secundária na família, inferior ao do homem, segundo Stein (p.23), para D.Benedita era muito importante arranjar um marido que fosse bom partido para a filha, já que o casamento, naquela época representava a maior aspiração das moças. Isso pode ser visto no dizer de Costa ( p.32);

 

“Casar-se representava na vida da mulher uma função importantíssima, pois só com isto ela obtinha um status social mais elevado: as alternativas, além de pouco sedutoras acarretavam um adicional desprestígio. Para a mulher como para o homem o casamento podia implicar ascensão social, mas para ela, esta era a única maneira de alcançá-la, uma vez que não se lhe permitiam atividades que lhe possibilitassem promover-se  socialmente por esforço próprio.”

 

   A bajulação de D.Benedita com D.Maria dos Anjos dura pouco; o tempo de aparecer um partido mais promissor para Eulália. Esse comportamento volúvel da personagem principal do conto, justifica-se pelo papel que ela representa na sociedade, de uma mulher que valoriza as aparências e as relações artificiais voltado para o próprio benefício, ou seja, há sempre um jogo de interesse que move as “amizades”. Machado mostra isso de uma forma irônica e corrosiva. Isso é afirmado, segundo Coutinho (p.25).  

” Para ele, os homens só são capazes de vícios e defeitos morais, más qualidades e pecados que inteiramente dominam os homens na vida individual e social. Há sempre uma causa secreta, que é preciso pesquisar, nos atos humanos, e esse é um trabalho constante do romancista.”

 

 

   A construção de um caráter singular

 

 

    A personalidade inconstante de D.Benedita vai se formando no decorrer do conto e Machado de Assis ajusta-se a isso, um modo de focalização marcado pela volubilidade narrativa, conceito utilizado por Roberto Schwarz em “um mestre na periferia do capitalismo”   Assis (São Paulo: Duas cidades, 1990)

   Machado de Assis vai construindo o perfil de D.Benedita ao longo do conto em meio a uma crítica fina e irônica.

    A inconstância de D.Benedita se evidencia porque ela é uma pessoa impaciente que inicia várias atividades ao mesmo tempo e quase nunca as termina: começa a leitura de vários livros, simultaneamente e não chega ao final de nenhum; faz diversos projetos de ir ao Pará visitar o marido e isso também nunca se concretiza; ao saber que a filha não tinha interesse em se casar com Leandrinho, filho de D.Maria dos Anjos, ela jura que a obrigará a fazê-lo porque a amizade que está se iniciando entre as duas, já tinha como objetivo os planos desse casamento, isso também não se cumpre.

   A empolgação da amizade durou pouco tempo, já que as relações afetivas de amizade de D.Benedita tinham o impacto da inconstância dos sentimentos e das mudanças inesperadas de atitudes. Maria dos Anjos não entendeu essa alternância de comportamento e buscou explicação para a frieza daquela relação, conforme aparece em passagem transcrita abaixo;

 

[D.Maria dos Anjos]. “Estava atônita, revolvia a memória a ver se descobria alguma inadvertência sua que pudesse explicar a frieza das relações; não achando nada, supôs alguma intriga.”

   Aliando-se a essa personalidade indecisa de D.Benedita, Machado de Assis focaliza a volubilidade narrativa que aparece em todo o conto.

    Para justificar uma personagem artificial, interesseira e que por meio dessas alternâncias de atitudes, de amizades, vai sempre selecionando a que lhe for mais conveniente para viver dentro de uma sociedade em que a aparência é sempre mais valorizada.  As pessoas valem mais pelo que tem e pelo que podem proporcionar de melhor para as outras, como no exemplo abaixo em que      D.Benedita admira o futuro genro.

 

“Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D.Benedita, que amava os espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre os outros moços à paisana, que o preferiu a todos.”

   O ponto mais marcante da inconstância de D.Benedita é revelado na expressão “Isto acaba!”, repetida três vezes por sua filha Eulália. Esta sabia que uma característica de sua mãe era sempre mudar de opinião, o que Eulália sempre usava a seu favor, como é o caso da escolha do marido.

   Essas atitudes indecisas de D.Benedita não eram percebidas apenas pelos parentes, mas também pelos amigos e vizinhos que conviviam com ela como nessa passagem em que ela decide viajar para visitar o marido no Pará.

 

   “D.Benedita, entretanto, noticiou a viagem aos amigos e conhecidos, nenhum dos quais a ouviu espantada. Um chegou a perguntar-lhe se enfim, daquela vez era certa.”

 

  Até em certas expressões, ditas por D. Benedita, registra-se a marca de sua inconstância, como em;

    “Por que é que as modas hão de durar mais de quinze dias?”

 

   O que se vê nessa análise psicológica de D.Benedita é algo que em Machado de Assis se chamou de reticência, de vago, de vai e vem de um espírito sempre com dúvida e insatisfeito, daí a duplicidade de comportamento, ou mesmo a polissemia psicológica que se encontra em seus personagens. Como observa Meyer em seu astucioso Machado de Assis, sua razão de ser é a dúvida que vem da neutralização, por excesso de clarividência, D.Benedita, vive o mito da hesitação, para ela, a plenitude está num centro social ideal, como fantasma inatingível.

   Segundo Gledson, no prefácio de Papéis Avulsos, o conto D.Benedita- o retrato “nos corta o acesso à realidade a cada guinada”.

 

 “Ela não é isto , não é aquilo, fica entre isso e aqueloutro – Talvez fosse possível adivinhar que não era Medusa, já que o cabelo desta compunha-se de serpentes!”

 

   Essa afirmação traduz perfeitamente a personalidade de D.Benedita, uma mulher artificial, fruto da sociedade da época cujo objetivo era sempre o parecer e não o ser.

   Há também nessas afirmações, as referências a gesto de “múltipla significação”, palavras de Roberto Schwarz, a exposição de posturas indecisas e hesitantes, e a imprecisão do anúncio de certas informações como quanta a idade de D.Benedita “quarenta anos ou trinta e oito”.

 

   A conotação de um período histórico

 

 

   O conto opera carregado de significações e outra metáfora possível, segundo Gledson, é que D.Benedita dramatiza o momento histórico, no fim da década de 1860, em que o regime imperial começou a perder controle. Ele sugere que esta instabilidade e indecisão de D.Benedita e a perda de controle sobre a filha Eulália, que entrega o poder à geração mais jovem, ou seja, Eulália e Mascarenhas o oficial da Marinha, namorado dela, representam o império que passa por altos e baixos, por momentos de inconstância dos governantes. A expressão dita por Eulália por três vezes, “Isto acaba!”, nada mais é do que uma metáfora daqueles vai e vem do período político que o Brasil atravessava ao final da Guerra do Paraguai.

   Na opinião de Maretti, o conto metaforiza a impossibilidade de sustentar a ordem política e social reinante. O contraste entre mãe e filha remete a uma associação com a ruptura política iniciada neste período por ocasião da crise do poder monárquico e da fundação do partido Republicano.

    A personagem D.Benedita, na visão de Maretti em seu artigo “Isto acaba!”, fundamentada nos estudos de Roberto Schwarz e de John Gledson, é a representação da visão machadiana da História do Brasil.

   Com isso, o conto D.Benedita – o retrato ajusta-se com a proposta atribuída por Gledson na coletânea Papéis Avulsos, porque ironiza a relação indivíduo/realidade nacional.

   De acordo com Maretti, o exagero de referências a datas e gabinetes ministeriais do Segundo Reinado, e detalhes pouco percebidos representam a “composição alegórica do retrato do Brasil em um momento característico de ruptura em vários níveis de sua história econômica, política e social.”

   Ainda na opinião de Maretti, a idade de D.Benedita e a inconstância que permeia as suas atitudes são arquitetadas para fazer referências metafóricas a um período histórico em crise(1867/1871), marcada principalmente por altos e baixos em função das consequências da Guerra do Paraguai e da incerteza quanto à existência da formação de uma identidade nacional.

   Isso justifica a alternância das relações de amizade de D.Benedita, pois evoca a instabilidade política do país motivada pelas constantes trocas ministeriais, como é o caso do gabinete Zacarias que aparece no conto, mas que na realidade existiu e durou pouco mais de cinco dias.

   Então a inconstância da personagem remete à fragilidade da identidade nacional e a vulnerabilidade político-econômica do país.

   Portanto o retrato de D.Benedita é um perfil feminino, um caráter que se define pela inconstância, pela volubilidade mas que nas entrelinhas  traz várias metáforas, como foi visto. Essas diversas significações traduzem-se em traços de transitoriedade, efemeridade, figura vaga, névoa, sem contorno definidos. A última parte confirma a imagem configurada durante o percurso do conto quando por meio do fantástico, o autor confirma o tema da inconstância, como nesse fragmento;

 

 

   “Uma noite (...) viu um singular espetáculo. Primeiramente uma claridade opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da enseada, fronteiro à janela. Nesse
quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transparente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contorno definidos, porque morriam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D.Benedita; e de um gesto sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:

-Casa...não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando...

  (...)

Meu nome é Veleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersou-se na noite e no silêncio.” (p.158,159)

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ASSIS, Machado; Papéis Avulsos. São Paulo. Editora SCHWARCZ  LTDA, 2011.

BOSI, Alfredo; “A máscara e a fenda”.In: O enigma do olhar. São Paulo, Ática, 1999.

COSTA, Jurandir Freire; Ordem Médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Editora  Graal, 1983.

COUTINHO, Afrânio; A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.

GLEDSON, John; Machado de Assis; Ficção e história. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996

                            - Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

                            -   Prefácio do livro Papéis Avulsos de Machado de Assis. Companhia das Letras, 2011.

MARETTI, Lídia Lichtscheidel; “Isto Acaba!- uma leitura do conto ‘D.Benedita: um retrato’ de Machado de Assis”, em Revista de Males nº 14 (Campinas : Unicamp,1994).                           

MEYER, Augusto; Machado de Assis. 2 ed. Rio de Janeiro, Organizações Simões, 1952.

SCHWARZ, Roberto; Um mestre da periferia do capitalismo. São Paulo, Editora Duas cidades, 1990.  

STEIN, Ingrid; Figuras femininas em Machado de Assis. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora  Paz e  Terra, 1984.