Introdução

Os dois volumes do livro Arte decorativa Cokwe (titulo da versão portuguesa 2010), publicados em 1961(versão original), de Marie-Louise Bastin é, sem dúvida, uma obra de referência sobre a arte da África Central, e um texto obrigatório para quem pretende estudar ou aprofundar os conhecimentos sobre os Cokwe. Ninguém, até hoje, levou tão a fundo um estudo sobre arte Cokwe e essa obra, apesar dos anos que se passaram desde a primeira publicação, ainda mantem-se actual.

Neste trabalho, Bastin colhe as informações históricas publicadas até aquele momento sobre os Cokwe e sobre as suas relações com os europeus, através de um trabalho etnográfico de recolha detalhado, junto aos agentes locais, produtores e utilizadores dos artefactos em análise. Tudo o que é entendido como “arte decorativa” são perscrutados nos mais diversos aspectos, tanto no concerne aos suportes físicos, quanto aos naturais, passando pelos artefactos utilitários, cerimoniais e, até mesmo, o corpo humano, no qual Bastin também dedica muitas páginas do seu livro para nos apresentar as características físicas desse povo que estende-se, também, para as características do corpo por eles modificadas, tais como o uso de tatuagens e mutilações, usados como sinal de reconhecimento. Podemos supor que existe uma linguagem articulada na decoração de artefactos e do corpo.

De facto, o exercício central do texto consiste em relevar a constância de figuras geométricas em diferentes suportes, proporcionando a designação vernacular de cada uma delas, bem como o seu significado para os Cokwe (…)” (PORTO, 2010).

Além das descrições minuciosas sobre a vida material, social, religiosa, e sobre as características antropológicas dos Cokwe, Bastin emprega um processo de comunicação em que texto e gravura são interdependentes resultando, assim, numa etnografia precisa, onde o leitor se depara com os objectos, mas também com a sua tradução cultural, com o contexto social no qual estes objectos estão inseridos e o significado que estes apresentam para a comunidade em questão. Elucida o carácter racional, prescritivo e lógico (PORTO, 2010), partindo sempre do ponto de vista dos Cokwe e não do seu. Aqui concentra-se, na minha opinião, um dos pontos essências dessa etnografia, pois Bastin tem mesmo a preocupação em entender as questões culturais desse povo a partir deles mesmo, ou seja, partindo da sua própria lógica, buscando entender a sua forma de ser e estar através dos objectos de uso diário e dos objectos usados de forma excepcional ou ritual. É um trabalho que se aproxima da chamada etnografia dialógica (CLIFFORD, 1998) que rompe com a etnografia na qual apenas a voz do etnógrafo se faz presente, numa produção que conta com a colaboração de informantes nativos. Os informantes nativos, os quais Bastin contou com a ajuda e colaboração, também foram construtores activos das interpretações culturais, tanto que no decorrer do livro ela destaca a importância que os seus colaboradores tiveram na execução do trabalho de recolha de informações, sobretudo no que concerne as informações técnicas relativas a execução de diferentes objectos, pinturas e tatuagens.

De acordo com Nuno Porto (2010), nem todas as manifestações plásticas são equivalentes entre si quer em termos de sua relevância para o grupo, quer enquanto objectos estéticos. Nesses termos, Bastin elege a escultura em madeira como a principal arte Cokwe, por se tratar de uma arte honorífica, tradicional e especializada. “Executadas por um mestre, estas esculturas tornam-se verdadeiras obras de arte” (BASTIN,1961). Também torna-se imprescindível ressaltar, com uma das questões centrais do trabalho de Bastin, a afirmativa de haver um “estilo Tshokwe”:

Trata-se de um argumento circular: por ser estilizada a escultura é praticada por especialistas; os saberes destes especialistas são adquiridos no interior do grupo familiar, sendo saberes tradicionais e antigos; tem por consumidores preferenciais os grandes chefes e a sua corte; este consumo honorífico conduziu a uma elevada mestria artística e, em consequência, ao desenvolvimento de um estilo particular. (PORTO, 2010, p.58).

No entanto, como bem aponta Nuno, a noção de “arte” e “arte decorativa” não são abordados de forma explícita, “pelo que são constituídos ao longo do livro como signos naturais dos Cokwes e da sua tradição cultural” (PORTO, 2010,p.58). Portanto, tentaremos no nosso trabalho sistemizar um pouco mais a noção de arte e do estilo tshokwe do qual nos fala Bastin.

Escolhemos as máscaras de dança, principalmente a máscara mwana pwo, como representante das esculturas Tshokwe, pois elas apresentam as qualidades que as tornam relevantes para o grupo enquanto objectos estéticos, e apresentam as características que a Bastin cita: é estilizada, por isso é praticada por especialistas; os saberes para a sua execução são adquiridos no interior do grupo familiar, portanto, são saberes tradicionais, e, por fim, tem por consumidor, também, os grandes chefes e sua corte, daí ser honorífica. No decorrer no trabalho faremos uma breve apresentação das máscaras Cokwe, o modo como essas máscaras são executadas, a maneira como as técnicas para sua fabricação são repassadas para outros membros e o significado subjacente as máscaras e aos mascarados.

1. Máscaras Tshokwe

De acordo com Bastin, os Tshokwe distinguem três categorias de máscaras: máscara sacrificial, máscara de iniciação e máscara de dança. Cada uma dessas categorias de máscaras revela uma função específica no seio do grupo, e, também, impõe regras de comportamentos específicos. Como veremos mais adiante, a maioria das máscaras são interditas as mulheres e não iniciados, cabendo a estes não aproximarem-se delas quando entram na aldeia. No entanto, a máscara mwana pwo, a máscara de dança, não é tabu para as mulheres e não iniciados, pelo contrário, os mascarados vão ao encontro das mulheres, dançam com elas, e tentam aprender a sua maneira elegante e graciosa de dançar. São máscaras que possuem, também, a finalidade de ensinar as mulheres boas maneiras. Princípios de moralidade, organização politica e social, assim como a história e religião do grupo são apresentados publicamente em várias cerimónias de máscaras. Dai a diversidade de significados e atribuições que as diferentes categorias de máscaras carregam. Tentaremos elucidar algumas dessas atribuições e significados mais adiante.

O primeiro tipo de máscara Cikungu ou mukishi[1] wa mwanagana representa os antepassados do chefe, é a máscara mais poderosa, de uso apenas do soberano. Essa máscara quando usada implica a fuga de mulheres, homens e crianças, quando esta entra na aldeia. Só é permitido vê-la e aproximar-se dela outros soberanos e alguns anciões. Essa modalidade de diferenciação social são criadas para hierarquizar os escalões dentro da ordem estabelecida na comunidade. Tais modalidades obedecem aos padrões culturais estabelecidos no que concerne a maneira pela qual os membros se vêem e se respeitam. Assim, qualquer desvio desse padrão implica uma forte coesão social que, em casos extremos, pode até levar a morte.

Geralmente, essa máscara é feita de resina e guardada numa cabana construída no mato na periferia da aldeia, sendo retirada da cabana apenas em ocasiões raras, não sendo permitido a ninguém, tanto do sexo masculino como do feminino, vê-la, exceto alguns anciões e outros soberanos como citamos anteriormente.

O segundo tipo de máscara consiste na mukishi e ku mukanda que desempenha um papel preponderante na iniciação mukanda[2]. Essas máscaras são utilizadas para controlar a Mukanda, mantendo as mulheres longe da cerimónia e recolhendo os alimentos preparados pelas mães dos iniciados da aldeia, quanto tais máscaras surgem, as mulheres e os não iniciados refugiam-se em suas casas e não se aproximam delas. Pois na maneira de pensar dos Tshokwe as máscaras representam os antepassados que devem ser venerados, mas só os rapazes que passam pelo rito de iniciação mukanda compreendem que os bailarinos mascarados são homens como eles, pois é no rito de iniciação que esse, assim como outros mistérios relativos ao grupo, lhe são revelados. É proibido, portanto, o uso da máscara por não iniciados, sob pena de sofrer os mais diversos infortúnios. A maioria dessas máscaras é feita em resina, são bastante numerosas e possuem uma grande variedade de chapéus, depois do ritual geralmente são queimadas.

Por fim, a terceira categoria das máscaras é a mukishi a kuhangana, ou máscara de dança, em geral são feitas de fibras vegetais de madeira esculpidas com toda habilidade. Essas máscaras carregam muitos símbolos, além de outros acessórios que fazem parte da sua indumentária. São as máscaras mais conhecidas dos Tshokwe, encontram-se em museus, variados colecções privadas e antiquários. Os principais tipos são o Cihongo (para os homens) e Pwo (para as mulheres), são também as mais antigas. São guardadas pelos seus donos que são os únicos autorizados a vesti-las ou dançar com elas. É possível herdar uma máscara, geralmente herda-se do tio por parte da mãe (comunidade matrilinear) ou pode-se encomendar uma máscara a um escultor, desde que tenha mostrado talento como dançarino durante a Mukanda. Portanto, todos estes mascarados são convenientes desde que sejam honrados ritualmente.

Geralmente, essas máscaras são utilizadas como objectos de culto, necessitam ser vestidas regularmente, exibidas, participar das cerimónias importantes e ritos de iniciação, e, quando necessário, também devem ser utilizadas em rituais de exorcismo.

 

1.1. Máscara Mwana Pwo

Entre os Tshokwe, acredita-se haver dois tipos de espíritos hamba que podem trazer felicidade ou infelicidade, dependendo da veneração que lhe for empregada. É necessário, para uma melhor compreensão, diferenciar o hamba wa usoko (espirito de um morto que se instala num parente) do hamba wa cipwila (espirito de um morto que se instala em outra pessoa fora da família). A máscara feminina Mukishi-Hamba Pwo é um hamba por natureza, mas apenas para o seu dono. O nome da máscara é Pwo, mulher, ou Mwana Pwo, rapariga ou jovem mulher. No passado essas máscaras costumavam representar uma mulher madura (ideal de beleza entre os Tshokwe), sabia, que já tivesse dado a luz e, portanto, comprovado sua fertilidade. Recentemente, houve uma alteração dos valores africanos, acredita-se que devido a influência europeia, e está máscara passou a representar uma jovem mulher, simbolizando o ideal de beleza Tshokwe.

Acredita-se que o mascarado, nesse caso sempre um homem, ao usar a máscara incarna o antepassado feminino e garante fertilidade aos espectadores durante a sua apresentação. O bailarino mascarado, para além da máscara, traz peitos falsos e veste um fato de fibra que lhe cobre todo o corpo, nas ancas veste um pano drapeado e um cinto pesado em forma de crescente, que movimenta-se para cima e para baixo seguindo o bailar do dançarino. Estes gestos discretos, graciosos e belos, têm como intuito ensinar as mulheres modos elegantes.

As máscaras entre os Tshokwe tem vida, são tratados como pessoas. Se o dono de uma máscara ficasse doente poderia atribuir ao espirito da máscara tal infortúnio. Se o dançarino deixasse de ter uma máscara encomendaria uma nova e inaugurava-a depois de sua esposa dedicar um sacrifício em homenagem a máscara. Ao encomendar uma máscara, o dançarino oferecia um anel de latão como preço simbólico por uma noiva, e a máscara era enterrada pela morte do dançarino, cuja profissão passava para o sobrinho. Depois da morte do dançarino, ficava ao cargo de um escultor profissional (songi) produzir uma nova máscara, num processo que antigamente durava muitas semanas.

O escultor encarregado de produzir as máscaras trabalhava no mato e usava como modelo uma mulher, dentre as que encontravam-se no seio da comunidade, cuja beleza admirava. Para tal, aproveitava todas as ocasiões possíveis para se encontrar com ela e observar as suas feições, tatuagens, jóias e o seu penteado.

No geral, essa máscara era esculpida em madeira, mas já foram encontrados alguns exemplares em resina. As máscaras de madeira são as mais apreciadas, pois são mais trabalhosas e são capazes de atingir um semi-realismo surpreendente. Entre os Tshokwe a madeira é trabalhada exclusivamente por homens. É durante a Mukanda que os meninos aprendem os segredos rituais das máscaras, assim como as técnicas para sua produção. Os padrinhos os ensinam como escolher a melhor árvore para cortar a madeira e as técnicas que utilizarão no fabrico das máscaras.

 

1.2. Significado das máscaras e dos mascarados

No presente capítulo faremos uma breve reflexão acerca do uso das máscaras e da sua função social para os cokwe. É possível observar, nas mais diversas comunidades africanas, a presença desse elemento tradicional: a máscara. A máscara encontra-se presente nas mais diversas localidades geográficas, desde tempos muito remotos, envolta por uma áurea de mistérios e segredos, suscitando sempre a curiosidade. Ao que tudo indica, um dos primeiros elementos motivadores para a sua produção seria uma exigência mágico-religiosa ligada, sobretudo, as necessidades da vida cotidiana.

O ato simbólico de mascarar – transformar, esconder o rosto, modificar- pressupõe o uso da peça para essa finalidade. O mascarado perde sua qualidade de homem ao usar a máscara e liga-se ao divino, ao sobrenatural, aos seus ancestrais, seus antepassados, num ritual que revela a memória remota. O mascarado é um mensageiro, traz mensagens do além. Enquanto a máscara estiver em uso e o personagem prevalecer, são as acções dos antepassados que estão a se desenrolar, é o próprio parente que já morreu que está ali a falar, a dançar e a mandar mensagens. O mascarado incarna o ancestral.

A representatividade do simbólico entre os Tshokwe traduz o respeito que se deve ter aos antepassados como forças protectoras da comunidade, forças que para os Tshokwe fazem a mediação entre o mundo natural e o mundo sobrenatural. Procuram preservar os usos e costumes deixados pelos antepassados, através dos objectos e símbolos neles incrustados, como uma maneira de manter coesa a estrutura social.A máscara é também um distintivo de classe, de categoria profissional e de papel social, demarca o lugar do homem e da mulher, da criança e do adolescente na sociedade. De acordo com Sousa (2010), devemos reconhecer que os objectos Tshokwe, quando bem estudados, são capazes de revelar sua estrutura social. “Assim as linhas paralelas, horizontais, verticais e perpendiculares que se cruzam e presentes em muitas obras, (…) nos levam a entender a rede de relações que se estabelece no dia-a-dia entre os homens”.

 Podemos supor que o homem Cokwe também vê a máscara com um meio de fugir a realidade, numa tentativa de evadir-se a si mesmo, transformar-se em outra coisa, ligar-se a forças universais e transcendentes. É uma possibilidade de criar realidades diferentes daquela meramente humana. Pois como mascarado ele pode ser homem-divino, homem-animal, homem-espirito . Dai o medo que a máscara suscita, pois o mascarado transfigura-se, metamorfoseia-se quando está sob seu uso.

Assim, tais máscaras possuem uma função que não se prende apenas ao plano metafisico, tem mesmo uma serventia prática: fazer observar certas leis, educar jovens e mulheres, presidir funerais, manter a ordem ou, simplesmente, divertir os habitantes da aldeia. A máscara carrega consigo essa multiplicidade de funções e significados que a tornam ainda mais emblemática e bela.

2. Arte Cokwe

De acordo com a definição do Dicionário da Língua Portuguesa (2010) arte é uma criação humana com valores estéticos (beleza, equilíbrio, harmonia, revolta) que sintetizam as suas emoções, sua história, seus sentimentos e a sua cultura. É um conjunto de procedimentos utilizados para realizar obras, e no qual aplicamos nossos conhecimentos. Apresenta-se sob variadas formas (…).

Há uma dificuldade em definir arte, refiro-me a uma definição que seja compartilhada pelas mais diversas sociedades do planeta. Aquilo que é considerado como uma obra de arte para uma determinada sociedade, pode ser compreendido por outra como um objecto sem valor aparente. Não é fácil compreender com determinada exactidão aquilo que faz parte do domínio da arte e aquilo que já não pertence a esse âmbito. Assim, podemos nos perguntar: onde começa a arte? O objecto utilitário quando decorado, embelezado, não será uma obra de arte? A máscara é um objecto que transcende um valor utilitário? Pode-se enquadra-la na categoria de objectos de arte? A arte não é senão aquilo que tem qualquer utilidade imediata? Para Balogun (1980) a arte é, acima de tudo, um veículo de comunicação numa determinada sociedade que tem por função difundir influências civilizadores. Portanto, a arte não se situa apenas no empreendimento ao nível espiritual, pois consistui, sobretudo, um factor activo da organização social, permitindo que o homem aja no seu próprio meio.

Durante o seculo XX o adjectivo primitivo foi bastante usado para designar a “arte africana”. Com carácter visivelmente etnocêntrico essa visão pautada nas ideias de evolução Darwinistas via toda arte, que não fosse europeia, como inferior e mais simples. Afirmavam que a “arte africana” era primitiva pois os escultures africanos não realizavam cópias exactas das formas naturais, seguindo o modelo clássico, pois eram incapazes de o fazer. Daí a ideia de que a humanidade passou pelo estágio da arte mal feita, e aqui enquadra-se a “arte africana”, para então “evoluir” até o modelo clássico greco-latino, estágio mais avançado da arte. De acordo com Balogun, esse argumento é falacioso, pois dois erros básicos se apresentam: primeiro, de acordo com a autora, os critérios estéticos não são os mesmos em todo o mundo e não comportam, necessariamente, a noção de imitação das formas naturais. Segundo, somente uma visão etnocêntrica, como a já citada, poderia afirmar qua a ausência de uma concepção estética análoga significa uma falta de perfeição formal.

Balogun afirma que o juízo estético que se pode fazer a respeito das formas da arte africana, tais como as máscaras, deve acompanhar uma compreensão da finalidade do objecto de arte. Por conseguinte, é necessário analisar a natureza das cerimónias africanas em que os participantes usam a máscara e tentar perceber o clima geral. De acordo com a autora as obras de arte estão intrinsecamente ligadas aos factores sociais, históricos e culturais específicos das sociedades das quais surgiram, não estando acessíveis aqueles que são estranhos ao meio em que elas surgiram. Esse pressuposto vai na contracorrente da ideia de que a arte seria uma linguagem universal e, portanto, capaz de transmitir a mesma mensagem a todos os homens, independente da localização geográfica, da raça e do credo. A autora cita como exemplo paradigmático a influência que as máscaras tiveram nos movimentos artísticos de vanguarda (cubismo, dadaísmo). Haveria nesses movimentos artísticos um erro de interpretação que provinha do desconhecimento do contexto intelectual no qual trabalha um escultor de máscaras em Africa. Os escultores não procuravam realizar, a priori, uma abstracção, ou seja, da um interpretação intelectual as formas naturais. O estilo que caracteriza a concepção das máscaras é que ela foi feita para expressar (aqui encontra-se a concepção do estilo Tshokwe que nos fala a Bastin), sugerir, e não reproduzir. Para tais artistas reproduzir, ser fiel a determinadas formas exteriores, não era o objectivo, eles procuram uma essência oculta e não formas aparentes, “o estilo do escultor de máscara não lhe será, pois, imposto pela técnica, nascendo antes de uma certa concepção que ele próprio tem do sistema de crenças e do quadro conceptual no qual ele vive e trabalha (BALOGUN,1980) ”.

Assim, torna-se evidente que a linguagem da arte só ganha um sentido universal se conhecermos o contexto no qual cada objecto foi produzido, ou se ao menos deixarmos de lado os critérios de arte estabelecidos pela nossa sociedade, pois, como vimos anteriormente, a arte africana tem um padrão estético diferente do padrão clássico greco-latino. Devemos ter, portanto, um certo distanciamento do olhar, evitando cair em interpretações etnocêntricas. As normas estéticas variam muito consoante as regiões e a época, não são absolutas e nem universais.

Apesar da dificuldade e, até mesmo, da impossibilidade de uma definição de arte que possa satisfazer toda a gente, podemos supor que a arte é um meio de comunicação social que utiliza as harmonias e as discordâncias das formas e das expressões a fim de transmitir emoções alcançáveis pelos sentidos (BALOGUN, 1980). Um pouco mais além, podemos dizer que a arte é uma meditação sobre a vida e sobre a nossa presença no mundo. Ora, não seria a máscara o objecto que nos remete a tudo isso? Comunica, provoca emoções, utiliza harmonias e discordâncias de forma, faz a comunidade pensar sobre a vida, a morte e as tradições? Sendo assim, a máscara não seria, de facto, uma obra de arte por nos fazer mergulhar o mais profundo na vida e nos costumes Cokwe?

 

 

 

 

Referências bibliográficas:

 

BALOGUN,Ola. “Forma e expressões nas Artes Africanas”. In Sow,Alpha. Introdução á cultura africana. Lisboa, ed. Unesco, 1980.

 BASTIN, Marie-Louise 1961, Art Tshokwe, (2 vols.) Lisboa, Publicações Culturais do Museu do Dundo- Cmpanhia de Diamentes de Angola, nª55.

 CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiencia etnográfica: antropologia e literatura no seculo XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 320p.

 PORTO, Nuno. “Arte e etnografia Cokwe: antes e depois de Marie-Louise Bastin. In: A arte na sociedade Cokwe e nas comunidades circunvizinhas”. Luanda, 2010.

 SOUSA, Fonseca. “O equilíbrio entre o belo e o simbólico na arte utilitária Cokwe representada na obra de Marie-Louise Bastin”. Luanda, 2010.



[1] Os Tshokwe utilizam essa palavra para designar um espírito ancestral ou da natureza que é encarnado por uma máscara.

[2] É um rito de passagem do qual os meninos participam, na altura na puberdade, afim de entrarem na comunidade dos adultos. Este rito começa pelo ato de circuncisão. E mukanda designa o acampamento rodeado por uma cerca e compreendendo palhotas, construídas no mato, que estes meninos ficam durante o período da iniciação. Os iniciados vivem na Mukanda, apartados das suas famílias, durante um período que pode variar entre 1 ano ou 2 anos, sob a guarda dos seus tutores, que lhe servem como padrinhos, que o assiste na altura da operação, que o trata e o guia durante todo o ritual, iniciando-o na história e na vida do grupo, ensinando-o os segredos da fabricação das máscaras e a prover suas próprias necessidades.