AS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO TEXTO FALADO

Mariana Fernandes dos Santos*


Resumo
O presente artigo é o resultado de um projeto de pesquisa de campo, realizado com estudantes universitários da Universidade do Estado da Bahia, Campus de Ipiaú, que se ocupou em estudar os fenômenos relativos ao modo como se apresentam as construções orais e sua relevância na produção do discurso.

Palavras - chave: Oralidade . Estratégias . Texto . Discurso

"Cada vez que falamos, criamos de novo, e o que criamos é uma função da nossa linguagem e da nossa personalidade."
(John Firh)

É inegável a enorme complexidade do processo de construção do texto em geral e do texto falado em particular, que envolve uma gama de atividades e estratégias. Nesse processo de construção, o falante visa à produção de sentidos, possibilitando a interação verbal.
Essa interação é de cunho social e está intimamente ligada à oralidade uma vez que, o texto falado apresenta uma sintaxe característica, sem, no entanto, deixar de lado a sintaxe geral da língua e se configura num processo dinâmico com uma estruturação própria ditada pelas circunstancias sócio ? cognitivas de sua produção.
Neste artigo iremos direcionar os nossos estudos aos processadores de construção do texto falado, em que faremos uma abordagem geral da relação língua escrita e falada e ainda algumas considerações sobre a análise de conversação.
O estudo dos processadores textuais será feito a partir do corpus analisado no projeto de pesquisa mencionado, em que trataremos, generalizadamente, de todos os processadores e enforcaremos nosso estudo aos identificados no corpus analisado.

I. LÍNGUA ESCRITA E FALADA
A modalidade da língua escrita, assim como a falada, possui um sistema linguístico similar, porém a composição de ambas perpassa por peculiaridades que as diferenciam.
Durante muito tempo predominou uma grande importância à escrita. Por isso, quando nos referíamos à linguagem, só a pensávamos no aspecto da escrita. Sendo que, foi à modalidade falada, o primeiro recurso linguístico no uso da linguagem no processo de comunicação.
A língua escrita é uma sucessão da falada, assim, apesar de suas diferenças, devem andar interligadas, é o que afirma MATTOSO (1995:16):

"A rigor, a linguagem escrita não passa de um sucedâneo, de um ersatz da fala. Esta é que abrange a comunicação linguística em sua totalidade, pressupondo, alem da significação dos vocábulos e das frases, o timbre da voz, a entoação, os elementos subsidiários da mímica incluindo -se ai o jogo fisionômico."

É importante enfatizar que esta concepção, defendida por MATTOSO e por outros autores, só passou a vigorar a partir do século passado, antes, a fala não era considerada como uma forma de linguagem. Essa nova postura resultou na relação entre fala e escrita de que aquela passou a ser vista como primaria e esta como derivada.
Justificamos esta afirmação com BIBER (1998:8, In FÁVERO et all, 1999:11)

"Certamente em termos de desenvolvimento humano a fala é o status primário. Culturalmente, os homens aprendem a falar antes de escrever e, individualmente, as crianças aprendem a falar antes de ler e escrever. Todas as culturas fazem isso da comunicação oral, muitas línguas são ágrafas. De uma perspectiva a fala é claramente primária."

Vista de maneira dicotômica em relação à escrita, a fala inicialmente é caracterizada da seguinte forma: contextualizada, implícita, redundante, não-planejada, pragmática, fragmentada, pouco elaborada, predominância de frases curtas e simples, menor densidade lexical, entre outras características. A essa concepção de fala KOCH (2003:79), discorda em parte quando afirma:

"Nem todas essas características são exclusivas de uma ou outra das duas modalidades, tais características foram sempre estabelecidas tendo por parâmetro e ideal da escrita, o que levou a uma visão preconceituosa da fala, que chegou a ser comparada à linguagem rústica das sociedades primitivas ou à das crianças em fase de aquisição..."

Contudo, a autora confirma as peculiaridades da fala e apresenta as seguintes (KOCH, 2003:79-78):
1. É relativamente não ? planejável de antemão, o que decorre de sua natureza altamente interacional, isto é, ela necessita ser localmente planejada, ou seja, planejada e replanejada a cada novo lance do jogo da linguagem;
2. O texto falado apresenta-se em se fazendo, isto é em sua própria gênese, tendendo, pois, a pôr "nu" o próprio processo da sua construção. Em outras palavras, ao contrário do que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor tem maior tempo de planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a revisões e correções etc. No texto falado, planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente, porque ele emerge no próprio momento da interação: ele é o seu próprio rascunho;
3. O fluxo discursivo apresenta descontinuidades frequentes, determinadas por uma série de fatores de ordem cognitivo ? interacional, as quais têm, portanto, justificativas pragmáticas de relevância;
4. O texto falado apresenta, pois uma sintaxe característica, sem, contudo, deixar de ter como pano de fundo a sintaxe geral da língua;
5. A escrita é o resultado de um processo, portanto estática, ao passo que a fala é processo, portanto, dinâmica, Halliday (1985:74) capta bem essa diferença, utilizando a metáfora do quadro e do filme. Para o leitor, o texto se apresenta de forma sinóptica: ele existe estampado numa página ? por trás dele vê ? se um quadro. Já no caso do ouvinte, o texto o atinge de forma dinâmica, coreográfica: ele acontece, viajando através do ar ? por trás dele é como se não existisse um quadro, mas um filme.

É importante lembrarmos que na construção do texto falado ocorre uma interação entre os interlocutores na produção do discurso. Esses são co-participes na concepção textual. Assim, devem ser considerados concomitantemente a produção de ambos os falantes, e ainda, o contexto o qual estão inseridos.
Compondo essa interação, estão os processadores pragmáticos de origem cognitiva e conversacional que possibilitam ao falante formular e/ou reformular seu discurso de acordo à sua conveniência.
Por tudo dito, o texto falado compõe-se de uma estrutura peculiar, que contempla fatores sociais e cognitivos, que devem ser considerados a partir de uma análise positiva de maneira que a dicotomia entre oralidade e escrita seja superada e pensemos em língua na sua totalidade.

II. A CONVERSAÇÃO

A organização lingüística da fala não se restringe à gramática ou ao léxico de uma língua, se estende aos mais variados recursos verbais e não verbais.
Para compreendermos o real funcionamento do texto falado em qualquer língua, faz-se necessário o estudo sobre os processos conversacionais, afinal é por meio deste estudo que conseguimos entender o contexto o qual os interlocutores estão inseridos e, ainda, qual a intenção e a ideologia que permeia o discurso produzido.

"Moda ou não, creio que há boas razões para o estudo da conversação. Em primeiro lugar, ela é a pratica social mais comum no dia ? dia do der humano; em segundo, desenvolve o espaço privilegiado para a construção de identidades sociais no contexto real, sendo uma das formas mais eficientes de controle social imediato; por fim, exige uma enorme coordenação de ações que exorbitam em muito a simples habilidade lingüística dos falantes" MARCUSCHI (2003:5)

Os primeiros estudos, em Analise da Conversação, aconteceram na década de 60 numa perspectiva Etnometodológica e Antropológica Cognitiva. Nessa época, havia uma preocupação na descrição das estruturas conversacionais e suas formas de organização.
Atualmente, os estudos em Análise da Conversação ocupam-se de novos aspectos ligados a atividade. Fatores estes que transcendem uma análise estrutural e atinge processos que permitem conhecermos a organização e a interpretação do texto falado.
Basicamente, a AC ocupa-se em estudar como os falantes dentro do processo de comunicação oral se comportam para se entenderem, como percebem esse entendimento e ainda, como criam condições para uma compreensão mútua e como resolvem as "falhas" comunicativas.
Metodologicamente ela utiliza-se da indução. Partindo de dados empíricos e situações reais e descartando as falas produzidas em situações reais e descartando as falas produzidas em situações fictícias. Ela busca uma análise qualitativa do ato de fala.

"... Este primado do empírico dá à AC uma vocação naturalística com poucas análises quantitativas, prevalecendo ainda às descrições e interpretações qualitativas." (MARCUSCHI, 2003:7)

Apesar de ocupar-se de um estudo singular da conversação, a AC realiza uma análise universal numa dada língua num determinado tempo, no intuito de conhecer o sistema de regras que livres de um contexto ainda assim, são influenciados por ele.
Em suma, a AC preocupa-se com a situacionalidade e com o caráter pragmático da conversação. Dessa forma, são os próprios interlocutores que fornecem ao analista os caminhos que este deve seguir para que compreenda suas construções orais.
Aqui, iremos nos ater a uma AC em que os objetos de estudo serão os processadores textuais do texto falado.

ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DO TEXTO FALADO

O texto falado como o escrito possui atividades de formulação na sua produção. Todavia, essas atividades são distintas em ambas as modalidades.
É no texto, seja o falado ou o escrito, que identificamos as regularidades que compõem o sistema linguístico de uma língua.
Em sua obra O texto e a construção de sentidos, KOCH trata as atividades de construção do texto falado e suas funções interativas, como estratégias de processamento textual. Fundamentados na autora, é desses processadores textuais que iremos tratar.


OS PROCESSADORES TEXTUAIS

Como já foi dito, para uma melhor análise, optamos por não estudar todos os processadores que compõem o texto falado, iremos enfocar nosso estudo apenas nos processadores identificados no corpus analisado. Esses são considerados como os mais recorrentes na fala.

INSERÇÃO

A inserção possui a função cognitiva de facilitar a compreensão entre os interlocutores. O locutor suspende a fala em andamento temporariamente e insere um novo discurso com intuito de: introduzir explicações ou justificativas, fazer alusão a um conhecimento prévio, apresentar ilustrações, entre outras intenções que possibilitarão a melhor compreensão entre os falantes:

(1) F1 -...teve muitas festas agora eu esperava mais de Itacaré... porque tinha muita gente feia não tinha muita gente bonita...E o pessoal assim em termos de festa sabe...


Nesse segmento (1) o falante usa a inserção explicativa, quando fala da quantidade de festas que a cidade de Itacaré tem, porém explica que a qualidade do público dessas festas aparentemente não a agradou.

(2) F2 - ...Acrescenta com a contra capa mais é isso que ela quer saber por que eu falei... pra ela que pelo menos ela dá: os módulos do pessoal do município.


Quando se utiliza a conjunção explicativa por que, mais uma vez o falante faz o uso da inserção para fazer alusão ao conhecimento prévio do que já havia sido informado.
HESITAÇÃO

A hesitação pode ser considerada como parte constitutiva do texto falado. Não existe texto falado sem hesitações como pode existir sem inserção ou reformulações.
A hesitação é um fenômeno indissociável da fala. Um outro fator que a diferencia dos outros processadores da fala e o fato de não ser controlada em sua totalidade cognitivamente pelo locutor, a não ser quando ocorrem algumas dificuldades no ato da fala. Geralmente essas dificuldades são simuladas pelo locutor quando este tem a intenção de chamar atenção do locutário.
As hesitações se manifestam por meio de pausas, alongamentos de vogais, consoantes ou sílabas iniciais ou finais, repetição de palavras de pequeno porte, truncamentos oracionais etc. Apesar do não controlamento total cognitivo, a hesitação exerce a função cognitiva de ganhar maior tempo para o planejamento e verbalização do texto. Esse menor controlamento ocorre devido às diversas pressões situacionais, as quais estão envolvidos os interlocutores:

(3) F1 ? Rapaz... Itacaré foi massa não foi Marta?


Nesse exemplo, o falante faz uma pausa depois da palavra Rapaz, para assim continuar a fala, com o intuito de enfatizar o quanto a sua ida à cidade de Itacaré foi divertida.
Ainda, nesse exemplo, ocorre uma repetição da palavra foi que pode ser considerada palavra de pequeno porte. A repetição é uma das atividades de formulação mais presente na oralidade. Neste caso, o falante desempenha a função de organizar a seqüência linguística da fala para maior coerência no discurso.

(4) F2 ? Foi ótimo... Meu fim de semana foi assim perfeito.


Neste caso, ocorre mais uma pausa quando o falante diz: Foi ótimo e só depois conclui o seu pensamento e a fala.

REFORMULAÇÃO SANEADORA


Pode ocorrer sob forma de correções ou reparos, repetições ou paráfrases. No caso da reformulação saneadora, o locutor tem a intenção de solucionar dificuldades encontradas tanto por ele, como pelo locutário. Em outros casos essas dificuldades são provocadas intencionalmente pelos interlocutores.

(5) ? F2 - Não eu... ali tirei não ai cheguei lá tu tava mais tinha saído eu falei...

No exemplo acima identificamos o tipo de reformulação saneadora, onde o falante 2 reformula a fala quando diz: "não ai cheguei"... para reparar o discurso anterior e assim com a nova fala, externar o que realmente gostaria de dizer.
Nas falas analisadas, não foram encontrados nenhum tipo de reformulação retórica.


REPETIÇÃO

Tradicionalmente, a repetição tem sido avaliada como fator causador de redundância e desestrutura textual, sendo que esta é na verdade um recurso constituinte do discurso oral.
Qualquer discurso se desenvolve interacionalmente, no sentido de se utilizar de discursos anteriores. Ou seja, a todo o momento, estamos repetindo discursos, consequência da capacidade criativa do falante.
Não iremos nos aprofundar no estudo da repetição, a nossa intenção é comprovar o quanto nós utilizamos desta, no texto falado como fator integrante para melhor compreensão entre os falantes.

(6) ? F1 ? não é não é primeira ela ta:: quase no final do modulo.

A dupla negação é um fenômeno frequente no português. É o tipo de repetição não enfática em que o falante apenas enfatiza a negação.

(7) ? F-1 ? E ai?... Como é que foi a festa lá? Muita festa... muita gatinha?

F-2 ? Teve muitas festas agora eu esperava mais de itacaré... porque tinha muita gente feia não tinha muita gente bonita... E o pessoal... assim em termos de festa sabe...


Nesse corpus ocorre a repetição da palavra muita seja na flexão do singular ou do plural com intuito de demonstrar a necessidade a qual o falante quer externar a intensidade do seu discurso na disposição das palavras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após concluir a aplicação do projeto de pesquisa que culminou neste artigo, constatamos que a linguagem humana é fundamentalmente dialógica, mesmo em sua modalidade escrita. Uma diferença, entretanto, é que na Língua Escrita(LE) é necessário explicar as coordenadas espaços-temporais em que se movem as personagens, ao passo que na Língua Falada(LF) tais coordenadas já estão dadas pela própria situação da fala. Tanto assim que a leitura de uma transcrição da LF em que não constem os elementos situacionais causa por vezes a impressão de que o locutor é afásico.
Os fatos linguísticos, aqui apresentados, constituem evidencias claras de que nós falantes de uma língua utilizamos a linguagem para dar sentido ao discurso falado diante de um contexto. Buscando por meio dessas estratégias de construção facilitar a compreensão dos interlocutores e ainda dá sentido no discurso oral.
Após a realização da referida pesquisa de campo de caráter quantitativo, constatamos que as marcas da oralidade que caracterizam a língua falada ocorrem com menos frequência entre os universitários, clientela então analisada, isto porque apesar de essas marcas predominarem em qualquer falante de qualquer moral intelectual, percebemos que num falante de grau de instrução elevado que supostamente entendemos que se adéqua a categoria dos universitários, essas estratégias ocorrem com menor freqüência.
Assim, faz-se necessário no ensino de Língua materna, consideramos as diversidades e variações linguísticas que um falante utiliza no uso da linguagem como um todo e não como meras reflexões gramaticais. E entender que a língua falada é uma modalidade privilegiada para inspeção dos processos e dos produtos da língua.
Portanto, a interação social está intimamente ligada à oralidade uma vez que o texto falado apresenta uma sintaxe característica, sem, no entanto, deixar de lado a sintaxe geral da língua que se configura num processo dinâmico com uma estrutura própria ditada pelas circunstâncias sócio-cognitivas de sua produção.
Embora algumas pessoas ainda considerem tais atividades linguísticas como desnecessárias, na justificativa de "empobrecer" é importante salientar que as mesmas compõem um contexto de referencias para quem as realiza. Assim, acredita-se que tal processo "... exige o domínio não só de habilidades linguísticas, como também de estratégias de ordem cognitiva, social e cultural." (KOCH, 2003).
Contudo, esta não é uma pesquisa acabada e polida de resultados, dada a riqueza do material e do assunto abordado, abre-se um leque de possibilidades para novos estudos e abordagens em relação à temática estudada.


REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Linguística da norma.São Paulo: Edições Loyola Brasil, 2002.

CAMARA JR, Mattoso. Manual de expressão oral e escrita. Petrópolis: Vozes, 1986.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A língua falada no ensino de português. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1998.

FÁVERO, Leonor Lopes et all. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua materna. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

KOCH, Igedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.

MARCUSSHI, Luis Antonio. Analise da conversação. 5ª ed. São Paulo: Ática, 2003.