INTRODUÇÃO

A leitura inicial que fizemos de Sérgio Buarque de Holanda partiu de um de seus clássicos, Raízes do Brasil, que me garantiu alicerce para, então, desejar trabalhar com o autor. Averiguando um pouco de sua biografia, fomos ao encontro de um componente pouco estudado de Sérgio, isto é, Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário. Um trabalho organizado por Antonio Arnoni Prado reúne praticamente toda a produção de Sérgio, para revistas e jornais no campo da crítica literária, entre 1920, quando publicou o seu primeiro escrito, e 1959, quando encerrou suas atividades literárias para dedicar-se integralmente a sua atividade de historiador.
Em trabalhos anteriores analisamos a visão do nosso autor acerca de uma geração posterior a fase heróica do movimento modernista de 1922, período denominado por alguns por Geração de 45. Neste trabalho fomos ao um ponto distinto observando a gama de leituras que Sérgio Buarque de Holanda fazia para averiguar um pouco mais um personagem tão conspícuo.
Na primeira parte da pesquisa fomos a alguns aspectos biográficos do autor, analisando desta maneira quais eram suas influências e o porquê lia determinadas obras e não outras. Não obstante, também foi ponderado algumas observações de cunho teórico sobre história da leitura, ou seja, de que forma uma análise das leituras do autor poderá ser útil para então compreender sua época e o próprio artífice. Foram utilizados como suporte teórico o texto História da Leitura do autor Robert Darnton, a obra Leituras e Leitores na França do Antigo Regime de Roger Chartier, A Invenção da Sociedade de Jaques Revel, autores que me deram sustentação teórica para entender de que forma examinar as leituras de Sérgio Buarque.
No segundo capítulo analisamos mais o objetivo que são os Futuristas de São Paulo. Sérgio Buarque era um leitor audacioso como é demonstrado em Tentativas de Mitologia quando retorna de sua viagem e se vê em frente a um mundo literário modificado. O caso foi que Sérgio cuidou de se instruir de tudo aquilo que fosse de mais atual e de mais fecundo no tocante as técnicas de criação e crítica literária, comprando ou encomendando publicações especializadas, ou apelando para a boa vontade de seus amigos, melhor informados sobre o assunto, que se prontificaram a emprestar-lhe livros ou revistas de que necessitava. O que também consta é que o autor tinha em casa um bom número de obras, geralmente em francês ou alemão, acumuladas durante anos, que seriam de bom serviço para a atividade a que agora era chamado.
Sérgio Buarque expôs que não teria movido o empenho de satisfatoriamente cumprir as suas obrigações de crítico. Mesmo porque segundo o autor não houve neste caso nada de parecido, com uma improvisação, como sucedeu, até certo ponto, quando precisou absorver, às pressas algumas dos então recentes e complexos problemas de técnica e crítica literárias. O que ocorreu, foi o contrário: Sérgio forçado pelo tirocínio de quem deveria redigir cada semana um artigo novo sobre matéria nova, foi obrigado a procurar aproximar-se, da linguagem, de um ideal de clareza.
Seja como for, o que Sérgio Buarque de Holanda conseguiu realizar, mal ou bem, nessas tentativas de abordagem crítica, não veio como um desafio do tempo ou como uma dádiva milagrosa. Veio de uma conquista gradual e alcançada largamente sobre um vício de escrever de maneira rebuscada, que o fazia desenvolver quase sempre num raciocínio como se falasse ou escrevesse somente para si, "ignorante do interlocutor presente ou do leitor eventual"
Sérgio Buarque de Holanda acreditava, no entanto, que semelhante preocupação, onde ela existe, pode ser, em muitos casos, condicionada, pelas limitações de quem, exatamente pelo fato de não sentir o que se chamava um escritor de raça, em outras palavras, por saber que era incapaz de expressar-se, ao correr da pena, nos termos mais adequados, se via obrigado a procurar suprir essa deficiência pelo exercício de uma vigilância constante sobre a própria escrita, embora se sujeitando ao perigo de torná-la por vezes artificiosa. Foi para obviar esse mal, em dado momento, que Sérgio chegou a valer-se, mesmo em artigos publicados, daquela fala brasileira, inventada por Mario de Andrade, que tinha entre seus alvos o abreviar a distância grande que, nos tempos heróicos do modernismo, eram julgados a separar formas coloquiais da literatura escrita, muito marcada, esta, aos que parecia, pela influência dos clássicos portugueses.


1. HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA LITERÁRIA: SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA POR UMA HISTÓRIA DA LEITURA

De onde as obscuridades freqüentes em que tropeço ainda hoje, quando me ocorre passar os olhos sobre um dos meus antigos escritos, e que escapavam outrora, por mais que me advertissem vários amigos a respeito dela. Só aos poucos me fui compenetrando da necessidade de melhor trabalhar minha linguagem, ao menos a linguagem escrita, de modo a que a comunicação se fizesse sem estorvo. Depois disso, a verdade é que não faltou quem me acusasse de cuidar em demasia do bem escrever.


Podemos observar que houve no século XX um reconhecimento categórico que a linguagem está no centro de toda atividade humana. Sabe-se hoje que, sendo ela produzida pelo complexo jogo de relações que os homens estabelecem entre si e com a realidade, ela passou também a ser, a partir do próprio momento de sua constituição, um elemento modelador desse mesmo conjunto de relações.
Fonte do prazer e do medo, essa "substância impessoal" é um recurso poderoso para a existência humana, mas significa também um dos seus primeiros limites. Falar, nomear, conhecer, transmitir, criticar, esse conjunto de atos se formaliza e se reproduz incessantemente por meio da fixação de uma regularidade subjacente a toda ordem social: o discurso. "A palavra organizada em discurso incorpora em si, desse modo, toda a sorte de hierarquias e enquadramentos de valor intrínsecos às estruturas sociais de que emanam" . Para Michel Foucault o discurso se articula em função de regras e formas convencionais, cuja contravenção esbarra em resistências firmes e imediatas . Assim, maior do que a própria afinidade que se supõe existir entre as palavras e o real, talvez seja a homologia que elas guardam com o ser social .
Dentre muitas formas que assume a produção discursiva, a que nos interessa aqui, é saber como este discurso é proliferado de que maneira ele é adquirido, uma destas formas é a leitura. Um livro só começa a existir quando um leitor o abre. Esta afirmação resume o novo olhar dos historiadores em relação à leitura. Durante muito tempo eles mantiveram frente à leitura uma atitude linear, supondo-a invariável, natural a todas as pessoas de todas as épocas. Hoje, inúmeras pesquisas nos mostram que o gesto trivial de ler um texto, uma variação quase infinita, possível de ser reconstituída nos diversos momentos da história.
O que podemos observar também é que a difusão do "livro com páginas" tal como o conhecemos, assim como a primeira revolução na história do livro, a invenção da imprensa no século XV, provocaram um alargamento enorme do número de leitores. A segunda grande modificação nas maneiras de ler ocorreu no final do século XVIII com a passagem de hábitos intensivos de leitura, a leitura constante e repetida de textos de caráter religioso (a Bíblia era o grande best-seller!), para hábitos extensivos de leitura do leitor moderno, que (mal) lê vários livros, ávido por novidades.
Mas a leitura "intensiva" não chega a desaparecer, pois o advento do romance coincidiu com a disseminação de modos emocionais de leitura. Rousseau exigiu que o seu A Nova Heloísa fosse "lido tão intensamente quanto a Bíblia", o que realmente ocorreu, provocando nas leitoras desmaios, choros convulsivos e, no limite, suicídios. Com os olhos de hoje, distraídos pelo caleidoscópio de imagens nas telas, fica difícil concebermos a força desta paixão incendiária provocada pela leitura.
Poderíamos começar buscando o registro dos leitores. Carlo Ginzburg encontrou um deles, o de um humilde moleiro de Friuli no século XVI, nos papéis da inquisição. Segundo Robert Darnton o autor de O Queijo e os Vermes certamente demonstrou a possibilidade de se estudar a leitura como uma atividade entre pessoas comuns se essa visão pode ser atribuída a uma tradição popular antiga, como afirma o próprio Ginzburg, é uma questão a ser discutida .
Contudo, o objetivo deste trabalho não é ir tão longe quanto Ginzburg, mas sim promover um estudo acerca de um autor que nos é de certa forma familiar, Sérgio Buarque de Holanda, mais especificamente o que tentaremos demonstrar aqui é a variedade de leituras que nosso autor apreendia para gerar uma crítica tão notável. Contudo, nos limitaremos ao período modernista designadamente a insurgência do grupo dos Futuristas de São Paulo. Lembrando que, nosso autor já foi extremamente estudado,
Se, de acordo com os antigos aristotélicos, devemos chamar de comédia às histórias que começam mal e terminam bem, parece justo incluirmos no gênero os sucessos passados nestes 100 anos de Sérgio Buarque. Pois, hoje, de maneira quase unânime, ele é reconhecido como um dos grandes das ciências humanas no Brasil e, há bem pouco tempo, não era assim. Nos anos de 1970, por exemplo, era comum apresentarem-se graves reparos a suas idéias, sintetizadas preferencialmente no tópico da cordialidade brasileira. Eles tanto mascarariam, internamente, as contradições dos interesses de classes, quanto, externamente, a ruptura radical entre o Brasil e a antiga metrópole portuguesa, na passagem da condição de colônia para a de país independente .
As primeiras notícias do jovem Sérgio Buarque de Holanda nos trazem a imagem de um leitor irreverente e algo excêntrico, dizem alguns que excessivamente erudito para os padrões da época, os primeiros meses do ano de 1920, que é quando seus artigos começam a circular pelas páginas do Correio Paulista. . Sérgio Buarque de Holanda, escritor com uma suscetibilidade crítica exacerbada, com complexificada aptidão literária e certa disposição lúdica para o escárnio, um provocador com sensatez, se não de maneira dissimulada fastidioso, é por vezes um autor desconcertante para o leitor imprudente. Possuidor de uma erudição que parece beirar o improvável e de um aparato crítico invulgar empenhou-se desde o princípio de sua atividade profissional, aos 18 anos, em proferir a análise literária, em todas as suas especificidades formais.
Apesar de não serem muitos os testemunhos sobre o crítico que então surgia, um deles, pelo menos, nos dá conta de que ali pelos dezoito, vinte anos, Sérgio não era um rapaz levado muito a sério pelos companheiros. "De monóculo, ingerindo calmamente uns tabletes homeopáticos que insinuavam conterem misteriosos entorpecentes", consta que apreciava deixar correr em torno de seu nome uma série de anedotas de mau gosto, como aquela segunda a qual, já vivendo no Rio de Janeiro, ele costumava cruzar as avenidas do centro comendo maças com um galo branco debaixo do braço e pronto a fazer troça com o primeiro que aparecesse.
Sabemos hoje, que foi justamente a imprevisibilidade do novo século que levou o jovem Sérgio a arriscar os primeiros golpes contra o repertório da velha crítica. E nem é difícil imaginar, dois anos antes da Semana de 22, como repercutiram no contexto intelectual da época alguns dos juízos que ele costumava enxertar aos seus primeiros estudos literários, reticente ante a concepção estética da nossa poesia épica, insatisfeito com o indianismo artificioso de Alencar e Gonçalves Dias e inconformado com a "limitação intelectual dos nossos homens de letras", a ponto de fazer "piada" da vocação poética de Gonçalves de Magalhães , que julgava tão obscuro quanto o veio gongórico de Rocha Pita .
No entanto, se não parece lícito a essa altura indagar da coerência dos temas que abrem a trajetória de que alguém como expõe Antonio Arnoni Prado, que mal se lançava à aventura do espírito, o que se pode dizer é que nesse primeiro momento os seus interesses estão voltados para as relações entre o processo de emancipação intelectual do país e os mecanismos de emancipação política do continente, aos quais ele associa a busca da nossa identidade como única forma capaz de vencer os obstáculos cada vez maiores das influências de fora. Esses pontos serão bem definidos quando analisarmos as leituras que Sérgio Buarque realizava para promover uma crítica tão conspícua .
Ressalta-se ainda que, se não há propriamente um projeto nesse leitor interessado nos sinais ocultos da nossa autonomia intelectual, é inegável que já demonstrava a lucidez com que distinguiria mais, em Raízes do Brasil, por exemplo, as diferenças na atitude colonizadora de espanhóis e portugueses, com a desvantagem para nós, de que no terreno da cultura obstáculos maiores nos separam. E se há muito de sonho e de conjecturas nesse menino que lia García Calderón pensado em Fréderic Mistral , que repassava com inacreditável desenvoltura para um leitor da sua idade os áridos metros da Araucana de Ercila ou da Rusticatio Mexicana do padre Landívar, isso não impediu que vislumbrasse na obra de um Santos Chocano e de um García Calderón as sementes de um americanismo que ele então situava na linha de frente da integração latino-americana.
Como podemos averiguar Sérgio era um leitor de coisas diversas, mesmo com o que sucedia no Brasil, onde as influências do chauvinismo de matriz francesa nos empurravam para o estilo cada vez mais ruidoso e gongórico que alcançava a produção literária da América portuguesa ao mesmo nível das grandes literaturas da Europa. Ocorre que essa consciência de que a literatura no Brasil sempre tendera para o artificial e o palavrório, quando não para o rebuscamento que afastava da natureza e do "espírito" da terra, prenuncia em Sérgio um claro desejo de ação efetiva que vai encontrar no modernismo o ponto máximo de convergência.
Compreender esse ritual de passagem é compreender as circunstâncias que irão gradualmente transformar o comentador erudito num ativista à disposição da vanguarda . Quando lemos as páginas de A Cigarra, de Fon-Fon e do Correio Paulistano, Sérgio começa a identificar na voga art nouveau de certa crítica pós-simbolista uma atitude afinada com as mudanças que sacudiram o período. Discordando, segundo Arnoni Prado, por exemplo, dos preceitos de um Max Nordau ou mesmo de um Pompeyo Gener , que então cativavam a imaginação de autores tão diferentes quanto Graça Aranha , João do Rio e Elísio de Carvalho , ele muda logo de tom e traz o debate uma outra leitura do legado de Mallarmé , de Huysmans e de Maeterlinck , nomes então em alta junto a algumas correntes finisseculares posteriores ao simbolismo.
Ao interpretar em nova chave a rebeldia dos "decadistas", a crítica de Sérgio começa a funcionar como uma espécie de radar da consciência estética que mudava, constituindo-se numa síntese hoje indispensável para compreender as relações entre a modernização da linguagem e as transformações radicais que marcaram a fisionomia de sua época .

É nesse momento em que se projeta escrever Os novecentistas, nunca publicado; em que alude à necessidade de definir novas tarefas para o intelectual latino-americano; em vislumbrar nos ideais de Vargas Vila o humor corrosivo que Taine só admite nos ingleses, mas que Sérgio amoldava aos impasses de uma geração exilada em sua própria terra e cada vez mais ameaçada pela maré montante do ianquismo, um mal capaz, a seu ver, de transformar a literatura numa espécie de press release de consumo imediato para os burgueses da nova ordem .
De acordo com Arnoni Prado, Sérgio estava atento para as vozes que brotavam da terra, descobre a força expansiva da arte primitiva, combinando a informalidade do leitor "sem compromisso" a um senso histórico de síntese, que dá a alguns dos comentários críticos dessa primeira fase uma feição singular de texto já sem o ranço erudito de origem e aberto aos riscos da observação à margem, à maneira da crônica de época. A novidade aqui vem da integração entre a linguagem do crítico e as impressões originais do cronista, vazadas num estilo cada vez mais próximo da agitação libertária em ascensão. "Basta ver como o cronista que registra os primeiros sinais da prosa instantânea, querendo transformar em literatura "as charlas que por aí se ouvem a rodo nos bondes"" , convive com leitor que escuta os poemas de Catulo da Paixão Cearense pensando nas correspondências sonoras ora com os Lesbos de Baudelaire ora com os pantuns malaios de Leconte de Lisle. É dele que partem os primeiros sinais de cumplicidade com os temas "futuristas" dos rapazes que preparavam a Semana, ao apontar para a novidade de alguns poemas tocados pelo ritmo forte dos táxis e do jazz-band, do fox-trot e dos telefones e avaliar num tom francamente inédito a luz violeta das estrelas artificiais que redescobriam a geografia da cidade sob o delírio da luz elétrica .
Do conjunto dessas impressões nascem as primeiras tentativas de ligar o chamado futurismo paulista a suas fontes européias, o que aquela altura servia não apenas para abrir o caminho dos novos, como também para estabelecer uma primeira medida crítica que passaria a funcionar como uma espécie de referência estética aos propósitos modernistas de romper com os processos, os temas e os próprios limites da obra literária. Estão neste caso as observações sobre a adesão de alguns poetas modernistas à ampliação do metro à maneira de Paul Fort e de Apollinaire, cujos versos Sérgio é o primeiro a comparar aos de Mario, Oswald e Guilherme de Almeida. Aliás, é de Sérgio aquele que talvez seja o primeiro informe acerca dos modernistas de São Paulo. Saiu publicado na revista Fon-Fon de 10 de dezembro de 1921e trazia a epígrafe uma passagem de Goethe que antecipava o barulho do Municipal a dois meses de acontecer . No corpo da nota a chamada para as diferenças que se radicalizaram na Paulicéia entre os que Sérgio Buarque chamava de beletristas e os seus adversários futuristas, estes últimos, segundo ele mais próximos de Tristan Tzara que de Marinetti, prontos para desencadear o que antevia como "um movimento de libertação dos velhos preconceitos e das convenções sem valor, único no Brasil e na América Lalina" .
Veremos que os acontecimentos da Semana acabaram acirrando as convicções antipassadistas da crítica de Sérgio. Depois das contendas do Municipal, o tom com que passa a avaliar o ideário estético do movimento, longe da imparcialidade que se esperava de um crítico, é já o tom de um parceiro de agitação mais interessado na vitória de suas teses do que propriamente nos méritos intelectuais da façanha, o que é visível, por exemplo, nas notas e comentários com que, em Klaxon, no Mundo Literário ou mesmo em Terra Roxa, fez a propaganda da troupe de 22, destacando em cada um de seus membros uma centelha nova a inflamar a chama do Brasil moderno. Neste instante podemos observar o Sérgio Buarque radical, o cúmplice do agit-prop que então escapa para os salões do Café Vienense em companhia de Mario, Oswald, de Guilherme de Almeida ou Rubens Borba de Morais prometendo textos esdrúxulos nem sempre escritos , ao lado de outros desconcertantes, e efetivamente publicados, como F-1 . Isso para não falar do episódio quase dramático Antinous .
Embora determinada pela estratégia imprevisível do movimento, sabemos que não foi pequena a contribuição intelectual de Sérgio Buarque de Holanda nessa etapa da trajetória de 22. O diálogo iniciado com Blaise Cendrans , a criação da revista Estética, com Prudente de Morais Neto, "que buscavam aliviar o Movimento Modernista de certos equívocos" , a revelação das fontes poéticas de Manuel Bandeira, a valorização precoce da estrutura sem unidade do João Miramar, o reconhecimento de um complexo arte-crítica-pesquisa em expansão na obra de Mario de Andrade são apenas alguns dos aspectos que acrescentariam à fisionomia do modernismo as precondições para a rumorosa entrevista-libelo de 1925 no Correio da Manhã, com Prudente de Morais Neto, que lança as bases para a ruptura que viria no ano seguinte com o artigo O lado oposto e outros lados .
Não pretendemos entrar em questões essenciais da obra de Sérgio Buarque de Holanda, iremos nos limitar a aspectos periféricos, ou, antes, a uma questão ligada a sua biografia, que parece importante para compreender a natureza de seu percurso intelectual.
Ele nasceu em São Paulo, filho de pai pernambucano e mãe carioca, e fez sempre muita questão de ser paulista, mas em 1921, com 19 anos, mudou coma família para o Rio de Janeiro, só voltando a cidade natal em 1946 a convite do interventor José Carlos de Macedo Soares para dirigir o Museu Paulista, em substituição a Afonso de Taunay (professor de história de Sérgio no Ginásio). Embora tenha sido de certa maneira precoce, o fato de ter ido adolescente para o Rio de Janeiro o amadureceu o que fez com que se realizasse intelectualmente. Quando foi, era autor de alguns artigos promissores. Quando voltou, era mestre consagrado de Raízes do Brasil, de Monções, de Cobra de Vidro.
No Rio de Janeiro Sérgio teve contato com inúmeros personagens como: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo de Franco Andrade, Lúcia Miguel Pereira, Otávio Tarquínio de Sousa, Francisco de Assis Barbosa, Afonso Arinos de Melo Franco e é claro seu grande amigo e colega de trabalho Prudente de Morais Neto. Talvez um dos acontecimentos mais importantes da vida de Sérgio Buarque no Rio de Janeiro, foi o casamento com Maria Amélia Cesário de Alvim, cujo movimento parece com o dele, pois era carioca filha de pai mineiro e mãe paulista, mas mudou para São Paulo em 1964 e lá ficou trinta e tantos anos antes de voltar a terra natal. Pode-se dizer que a sua constelação afetiva foi, sobretudo carioca, embora tenha incorporado posteriormente alguns amigos de São Paulo.
O modernismo propriamente dito foi um fenômeno localizado, sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, com um prolongamento em Minas Gerais. Em outros houve manifestações paralelas, como em Pernambuco, ou de compromisso, como no Rio Grande do Sul. E é curioso notar que, embora a Semana famosa tenha ocorrido em São Paulo, os modernistas do Rio de Janeiro não costumavam ir nem ter atividades em São Paulo, enquanto os paulistas freqüentavam muito o Rio e participavam da sua vida cultural. A razão aparentemente é óbvia, naquele tempo o Rio de Janeiro era a capital do país e o centro cultural por excelência, enquanto São Paulo ainda não passava sob o aspecto provinciano. O Rio tinha equipamento cultural muito mais importante e era o lugar que consagrava. Segundo Antonio Candido, quem desejasse receber a chancela em literatura, música, pintura, teatro precisava passar pelo crivo carioca.
Alguns exemplos: Guilherme de Almeida chegou a morar lá, como também Ribeiro Couto. Mario de Andrade lá morou e trabalhou, do mesmo modo que Rubens Borba de Moraes. Oswald de Andrade ia lá sempre e lá teve apartamento, como o mecenas de Paulo Prado .

Podemos observar é claro que hoje, tudo mudou e houve mesmo certa inversão. Do ponto de vista cultural, no século XX o cunho próprio de São Paulo só se definiu com o incremento rápido sólido da cultura universitária, do espírito de investigação nas ciências, tanto exatas quanto naturais e sociais. E, apesar da Semana tumultuosa e iconoclasta de 1922, nunca houve em São Paulo, segundo Candido, o toque de graça e imaginação, o brilho da boemia literária e artística, a liberdade de espírito que caracterizavam o Rio de Janeiro e davam a impressão de maior criatividade.
Candido assinala que Sérgio Buarque de Holanda, paulistano transferido para o Rio, participou, não apenas como à experiência de vida, mas quanto ao temperamento intelectual, ao modo de ser e à natureza da obra dos dois espaços que procurou se concentrar. Ele oscilou entre Rio e São Paulo, o que teve papel importante na sua formação e na sua caracterização como historiador e como crítico .
Nessa altura convém aludir às diferenças entre o modernismo em São Paulo e no Rio de Janeiro: aquele, mais moderado. Tanto assim, que de acordo com Candido, moderados de São Paulo, como Guilherme de Almeida e Ribeiro Couto, são mais parecidos com os do Rio.
Um indício disso é que os documentos mais importantes da teoria modernista foram produzidos em São Paulo, bastando lembrar o "Prefácio interessantíssimo", de Paulicéia Desvairada, e A Escrava que não é Isaura, de Mario de Andrade, ou o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade. Como sabemos, houve no modernismo uma ala nacionalista meio ornamental e politicamente conservadora representada em São Paulo pelos movimentos Verdeamarelo e Anta .

Contudo, mesmo essa modalidade teve em São Paulo maior densidade teórica, com Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. No Rio de Janeiro, houve apenas arroubos cósmicos de Graça Aranha e alguns artigos de Ronald de Carvalho, que não marcaram o movimento nem tiveram grande conseqüência. Isto talvez se explique, ao menos em parte, porque em São Paulo a pista estava mais livre e os novos tinham pouca coisa para respeitar, enquanto no Rio havia de longa data um acervo cultural forte, que impunha, correspondia a hábitos arraigados e não se deixava derrocar facilmente.
Para comprovar isto, embora não seja nosso objetivo, basta comparar a atitude mental e os escritos de Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado com os de Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Renato Almeida. Mesmo os escritores mais convencionais de São Paulo, como os nacionalistas mencionados, se consideravam de vanguarda e queriam ir esteticamente para diante, embora os automatismos e o temperamento os puxassem para trás. Um exemplo bem interessante são os escritos de Menotti Del Picchia, que só eram modernistas na intenção do autor, que apenas na teoria era paladino radical. Segundo o próprio Sérgio Picchia foi quem deu o primeiro grito de alarme contra o parnasianismo que imperava e abriu caminho assim para a nova geração mais audaz e mais fecunda em talentos. O poema Moisés, esse grito de alarme, não era um poema moderno para a época, mas era moderna para São Paulo .
Já no Rio de Janeiro houve logo uma oposição doutrinária e prática às inovações, modernistas, como as do grupo de Festa, com Cecília Meireles, Tasso da Silveira, Murilo Araujo, logo seguidos Augusto Federico Schmidt. No Rio houve, portanto, certa modernidade desconfiada e franca oposição ao modernismo, bastando pensar no teor de revistas como Terra de Sol, Pan, a citada Festa. Somente poucos poetas tiveram envergadura para manifestar uma verdadeira radicalidade literária. Uma deles foi Manuel Bandeira, vindo do pós-simbolismo, mas convertido de fato à nova estética.
Essas coisas são ditas para fundamentar a impressão de que Sérgio Buarque de Holanda manifestou no Rio de Janeiro uma mentalidade mais próxima do modernismo radical paulista. Fato visível em 1924 na revista Estética, onde ele e Prudente de Morais Neto têm franca preferência pelo modo paulista de ser moderno, inclusive com restrições a escritos de Ronald de Carvalho e Graça Aranha, eixos do modernismo carioca, em contraste com a simpatia pelas posições de Mario de Andrade e Oswald de Andrade. De certo modo, essa atitude teve seu momento paradigmático no famoso artigo O lado oposto e outros lados, que Sérgio Publicou em 1926 na Revista do Brasil. Nele identifica o modernismo autêntico com o que se pode chamar o modo paulista, mais duro e mais radical.
Esse Sérgio radical, que se manifesta, sobretudo na crítica literária, é completado pelo Sérgio estudioso, que se beneficiou com a estadia na Alemanha, de 1929 a 1930, oportunidade para ampliar os conhecimentos e renovar a bibliografia, que os amigos podiam ver pesando nas suas estantes em alentados volumes de Max Weber, Werner Sombart ou o grossíssimo Dicionário de Sociologia (Handwörterbuch der Soziologie), organizado por Alfred Vierkandt e marco nos estudos da matéria. Essa experiência enriqueceu o Sérgio carioca e o preparou para a eclosão do decênio de 1930, no qual se situa outra experiência decisiva na sua formação como historiador.











2. SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: O HISTORIADOR CRÍTICO LITERÁRIO

Quem lê a trajetória intelectual do jovem Sérgio Buarque de Holanda, recuando, por exemplo, à fase da convivência com Afonso d? Escragnolle Taunay, no velho Colégio São Bento e das escapadas do Café Vienense em companhia dos futuros modernistas Mario e Oswald de Andrade, Alcântara Machado e Rubens Borba de Moraes, desde logo se apercebe de que muito cedo despontariam nele as duas faces do grande intelectual que muito em breve viria a ser, a do historiador e a do homem de letras .
Umas das contribuições mais originais de Sérgio Buarque de Holanda à crítica literária vem justamente de sua sensibilidade de historiador. De acordo com Antonio Arnoni Prado, Sérgio tinha consciência de que o primeiro passo da crítica está na própria elaboração do poético, em cada passo em cada época, as tarefas que assumem em face desse processo aprofundam os reflexos que o produto de semelhante elaboração vai encontrar em seu público e em sua época.
Da perspectiva de Sérgio, não há como compreender o esforço de criação poética fora das circunstâncias históricas, sociais ou culturais que correspondem ao instante de criação da obra em si mesma. O efeito que lhe interessa mostrar é o de que, apesar das aparentes dissonâncias entre a lógica da ficção e a leitura de seu significado no momento em que se instaura, perdura sempre entre eles um traço de união que as torna inconfundíveis.
Para João Ricardo de Castro Caldeira, o caminho que Sérgio Buarque segue para esta constatação vem pelo estudo das circunstâncias. Nas mãos de Sérgio, os diários, as cartas, a crônica de uma vida ou de uma época, a leitura histórica, ao contrário de meras referências, entram como fundamentos na busca desta unidade entre o homem que pensa e o homem que sente, de cuja perspectiva procura aproximar-se para compreender as diferentes instâncias que cercam as relações entre o universo da obra e o universo de seus leitores.
Num dos primeiros artigos que publicou na imprensa quando ainda tinha vinte anos, já era clara no cronista que surgia a tendência para farejar o estético nas transformações do cotidiano. De acordo com Antonio Arnoni Prado, já se revelara pelas páginas do Correio Paulista a intuição de historiador que seria, ao rastrear na evolução da nossa vida literária os programas com que as diferentes gerações se empenhavam na identificação de um estilo genuinamente nacional .
Muito mais que um crítico meticuloso é paradoxalmente o faro de historiador que, na crítica de Sérgio Buarque, contribui para enriquecer a dimensão estética da literatura. Na verdade, era a maneira que interrogava essas convergências que dava singularidade a tudo que leu e escreveu enquanto crítico. Sérgio Buarque de Holanda tem uma distinção de outros críticos, ele não procurava dentro da literatura a relação com a história, e muito menos que é da perspectiva da história que se situava para conceber suas reflexões literárias.
Segundo Caldeira, seu foco era uma espécie de olho móvel a flutuar sobre o que chamou de paisagem transcendente da obra, ou seja, aquele plano virtual que não pertence efetivamente ao mundo histórico nem ao mundo da ficção, "a dimensão em que nasce e se expande o núcleo da composição, a inteligência central e a moldura da verdade ficcional legitimada como símbolo à parte, mas interferindo vivamente nas instâncias da realidade do mundo em que se insere.
Segundo João Ricardo da Costa Caldeira, Sérgio transcende a essas mediações para ajustá-las ao campo virtual de onde a crítica literária pode contribuir para recriar os momentos essenciais no processo de composição da obra. No entanto, "se a meta é a fisionomia literária, o modo de compreendê-la não deixa nunca de pressupor a análise minuciosa do conjunto das circunstâncias de quem depende o seu processo de significação e leitura no tempo e no espaço em que essa obra vai circular" .
No entanto, antes de avançar na direção sugerida, seria interessante retomar uma consideração feita por Sérgio Buarque de Holanda sobre este período de militância na imprensa. Ao ser inquirido anos mais tarde por Homero Senna a propósito da lição que havia recolhido desta atividade, ele respondia de maneira paradoxal que não se considerava um crítico literário. E completava sua resposta com as seguintes palavras:
A função, que desempenhei por algum tempo, de analisar obras alheias nu rodapé de crítica, foi-me útil Poe que me obrigou a variar, mas confesso que tive de fazer um grande esforço para exercê-la. Obrigado a tratar de assuntos que não eram, muitas vezes, de minha especialidade, a crítica, para mim, foi uma experiência interessante e fecunda. Abandonei-a, porém, porque nela não me sinto à vontade. E deste então venho recusando sempre as oportunidades que me têm surgido de voltar a esse gênero .

No final da década de 1920, Sérgio Buarque partiria para Berlim. Não obstante, contrariando sua afirmação de que não era crítico literário, ele voltaria na década de 1940 e 1950 ao exercício da crítica na imprensa brasileira, depois de uma fase de profundo desinteresse pela poesia e ficção, "o crítico que agora nos fala é o modernista que adapta novos conceitos sobre a transformação do romance". Na verdade segundo Arnoni Prado, Sérgio acreditava que os homens de 1940, por força do modernismo ainda permaneciam românticos, daí recuperar, como 1922 recuperou, a idéia de que em todo verdadeiro poeta existe um crítico vigilante e enérgico que não é lícito separar em nome da sistematização pedagógica ou de um programa a seguir.
Para Sérgio Buarque de Holanda, o crítico ideal seria aquele que conseguisse ajustar-se, enriquecendo-o de perspectivas novas, aquele momento da obra em que a consciência crítica transmuda em criação literária, tarefa a seu ver inviável, mesmo levando em conta "que o rumo que esse alvo parece indicar representa a única alternativa provável para as formas de subjetivismo que têm imperado com freqüência para as formas de subjetivismo que têm imperado com freqüência na crítica" . O esforço crítico, neste caso, deveria "ser intimo do ato de criação e eminentemente associado aos horizontes e experiências pessoais do autor criticado" , desta maneira, incluindo o seu clã e sua época.


2.1 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E OS NOVOS DE SÃO PAULO

Analisando a questão paulista, naquela época São Paulo ocupava uma posição de excepcional destaque no nosso mundo literário. Não se imaginava que o movimento modernista que lá se dava era uma contribuição ou o resultado de uma evolução de movimentos anteriores. Isso segundo o próprio Sérgio era absolutamente falso. Quando no Brasil surgiu o simbolismo, reflexo mais ou menos esbatido do simbolismo europeu, a Faculdade de São Paulo já não era mais o centro de todas as inovações literárias realizadas no país. Os estudantes, quando muito, liam Verlaine , mas escreviam versos de Leconte. São Paulo não tinha mais tempo de olhar para trás. De acordo com Sérgio Buarque, se deram um passo errado ninguém sabia. Os poetas do passado podiam berrar à vontade que ninguém mais tinha ouvidos para eles.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, foi Teófilo Gautier quem primeiro enunciou aquela teoria célebre, hoje muito batida, da arte pela arte. Aliás, de acordo com nosso autor, é um dos raros lugares-comuns que tem alguma razão de ser. Mas o próprio Gautier não a empregou em um bom sentido, o único aceitável, que ficou obliterado, devido à poesia filosófica, à poesia científica e outras tolices do mesmo jaez . A frase de Flaubert, tão mal interpretada, para Sérgio não é muito mais do que uma variante daquele princípio: "Um belo verso que nada significa é inferior a um verso menos belo que significa alguma coisa".
Só muito modernamente, porém, alguns poetas tiveram consciência do preceito do autor dos Émaux et camées. Aldo Palazzeschi, por exemplo, possuiu-a sempre no mais alto grau. E foi precisamente a propósito dele que Soffici, o homem mais inteligente da Itália, expôs aquela idéia interessantíssima que dá o clown como figura do artista desinteressado, idéia do divertimento pelo divertimento. A estética de Palazzeschi coaduna-se com essa teoria. Ele próprio diz em poemeto admirável: "Chi sono?/ I saltimbanco dell? anima mia" .

Segundo Sérgio, foi Palazzeschi, quem como nenhum outro, usou de uma poesia compreendida como simples capricho, como mera efusão de um estado lírico qualquer que este seja, sem nenhum escopo, sem nenhuma razão de ser nem relação com os valores sociais correntes. Digo isto para mostrar as leituras que nosso autor fazia, toda análise feita por Sérgio ao movimento modernista brasileiro era tentando demonstrar a inovação da Semana de 22 e não como simples cópia ou reflexo da literatura européia.
De acordo com Sérgio Buarque no Brasil quem se achava mais precisamente nestes casos era, sem dúvida, Manuel Bandeira, o poeta do Carnaval. Ele não queria dizer que Bandeira seja um epígono do criador da Perelà . Ao contrário sua obra reveste-se de tal cunho de originalidade que seria inútil ir procurar quem mais influência exerceu sobre ele. Há nela um pouco dessa melancolia muito brasileira que existe por exemplo naquele verso, o último do seu último livro. "O meu Carnaval sem nenhuma alegria". Essa melancolia é, porém mais acentuada em sua primeira obra, As cinzas da hora, um exemplo na poesia Desencanto .
Sérgio cita essa particularidade da poesia de Bandeira precisamente para mostrar que a influência de Palazzeschi não existia ali. Era sabido que o criador da Perelà não admitia tristeza como elemento de emoção artística. Em seu manifesto futurista de dezembro de 1913, declarava sem rodeios que o solilóquio de Hamleto, o ciúme de Otelo, as fúrias de Orestes, o fim de Margarida Gautier, os gemidos de Oswald, acompanhados por um público inteligente, deveriam suscitar as mais clamorosas risadas. E diz mais: que as maiores fontes de alegria humana estão no homem que chora e no homem que morre. Que segundo Sérgio nada disso se deduz da poesia de Manuel Bandeira.
A Manuel Bandeira cabia, uma bela posição na literatura nacional: a de indicador do movimento modernista. O autor do Carnaval deu o primeiro golpe na poesia idiota da época em que ainda se usava guarda-chuva , que é positivamente uma prova evidente de mau gosto estético dos nossos avós .
Sérgio tinha em mente que o único critério possível para estudar um livro, ou um autor, ou uma época literária, é positivamente não se possuir critério algum, quer dizer, um critério único, fixo. Essa idéia opõe-se à sujeição do autor, em geral, às regras preestabelecidas pelos críticos na maioria dos casos e de um modo geral está em posição inferior à do autor. "Os zoilos, porém, não se conformam com isso, achando que os autores é que se devem amoldar a seus pontos de vista, geralmente estreitos,
às suas idéias absurdas, aos seus preconceitos idiotas, às suas regrinhas, aos seus part-pris, às suas burrices em suma" . Seguindo estas regras seria dever de um crítico emitir um juízo imparcial sem se preocupar como o fato da obra estar ou não de acordo com seu modo de ver. Mas utilizando uma terminologia que Sérgio utiliza é deveras occamiano demais.
Há cinco anos atrás, em São Paulo, o parnasianismo imperava de tal maneira que cairia logo no ridículo o poeta que não fizesse do tratado de Banville o seu livro de cabeceira. Foi o já citado Menotti Del Picchia conjuntamente a Guilherme de Almeida que observaram e alarmaram a literatura paulista. Simultaneamente surgia o movimento sertanista com a Revista do Brasil, que embora partisse de um princípio estreito e errôneo, não deixou de produzir uma obra do valor do Urupês de Monteiro Lobato .
Todavia os novos continuaram a reagir. Guiados por Oswald de Andrade, o grande romancista da Estrela do Absinto , leram os modernos de todos os países como: Apollinaire, Jacob, Salmon, Marinetti, Cendrars, Consteau, Papini, Soficci, Palazzeschi, Govoni, leram os imagistas ingleses e norte-americanos. Mas em lugar de os tomarem por mestres, desenvolveram na medida do possível a própria personalidade, tomando-os apenas por modelos de rebeldia literária. A Semana de Arte Moderna, aplaudida por todos os homens decentes, consagrou-os definitivamente.
Mas os modernos não se limitavam somente a palavra. Em poucos dias sairia dos prelos a Paulicéia desvairada , de Mario de Andrade, que segundo Sérgio era um dos talentos mais sérios da nova geração paulista. Monteiro Lobato & Cia, apresentaram o primeiro dos três romances que constituíram a Trilogia do exílio, de Oswald de Andrade. Guilherme de Almeida dava aos paulistanos a Scharazada, A flor que foi um homem e A frauta que eu perdi. Em suma como expõe Sérgio, os novos de São Paulo tinham tanta convicção no próprio valor como a geração anterior na infalibilidade das regrinhas de Banville.
A literatura nova de São Paulo segue naturalmente como observa Sérgio dois planos diversos, mas legítimos, um vertical e um horizontal. São estas, aliás, as duas eternas tendências universais da arte, tendências que raro se encontram sem predominância de uma sobre a outra. Não havia um só país que não possuísse pelo menos um grande tipo representativo em cada uma delas.
Alfred Wolfenstein na Alemanha, Blaise Cendrars na França, Marinetti na Itália e Carl SandBurg nos Estados Unidos, para citar um só em cada país, pertencem manifestamente ao último grupo. Do outro lado há Becher, Claudel, Lee Masters e Palazzeschi .

Os poetas brasileiros se filiaram ao primeiro grupo. Ribeiro Couto em seus versos inéditos falavam, por exemplo, nos freqüentadores do cinema do arrabalde fazendo interessar por ele, entre outros, o desinteressante senhor subdiretor da Terceira Repartição das Águas conjuntamente com sua senhora e os filhos, com uma naturalidade que espanta . Segundo Sérgio Buarque, lembrava em certo ponto Sandburg, o maior poeta americano daquela época, o cantor de Chicago, esse hog butcher for the World que o próprio autor chamou.
Em Guilherme de Almeida essa tendência era tão acentuada que toda a sua obra poética consiste na horizontalização de noções naturalmente verticais. Tratava-se, portanto de um verdadeiro tour de force. Soror Dolorosa é toda ela uma documentação. Isso reveste num formal desmentido a um prejuízo abundantemente espalhado. O poeta das Canções gregas apontado em geral como romântico era no fundo principalmente um clássico. O classicismo consistindo antes de tudo na concretização das noções abstratas, de outra maneira: na objetivação do subjetivo e na horizontalização do vertical . De acordo com Sérgio a atitude lírico-romântica de Guilherme de Almeida era meramente artificial, portanto insincera.
As leituras de Sérgio Buarque vão muito longe e demonstrar nas suas análises uma erudição impressionante. Segundo ele era um uso muito espalhado o supor-se que a literatura paulista, foi monopolizada por meia dúzia de indivíduos residentes na capital do Estado. Fora dela existiam numerosos homens de letras cujas obras se vendiam. Sem contar os que residiam fora do Estado e também a de contar aqueles que viviam afastados do meio literário paulistano, espalhados pelas cidades do interior. Alguns como Gustavo Teixeira , Otoniel Mota, E. de Lima eram conhecidos em todos os meios cultos do Brasil. E de acordo com nosso autor, nenhuma outra cidade, porém, afora a capital, existia um meio literário tão adiantado como o de Santos .
Sérgio Buarque explicitava que faltava naquela época um homem de coragem e de audácia que se encarregasse de espalhar aos quatro ventos que Santos também possuía uma literatura, uma literatura que sobrepujava talvez a de qualquer capital brasileira nortista ou sulista. Graças a ele o Brasil aprenderia que na cidade de Santos, apesar de suas célebres docas, havia ainda um lugarzinho para os espíritos que pensam e que produzem . Acompanhando a trilha aberta em São Paulo por Monteiro Lobato, esse homem admirável para Sérgio era Galeão Coutinho organizou uma empresa editora onde começou a publicar seus próprios livros.
Nesta parte explicitada tentamos demonstrar as leituras e de que forma o nosso autor expunha algumas idéias acerca de do movimento de 22, especificamente dos Futuristas de São Paulo, creio que o objetivo foi alcançado. Acreditamos que já está mais que elucidado que Sérgio não era leitor simples obras de cunho canônico e sim de uma variedade incomensurável de compêndios. Assim já demonstrava o amigo Manuel Bandeira com o retorno de Sérgio Buarque de Holanda da Alemanha "Ninguém diria também que voltasse de ponto em branco, a par de tudo o que se passara no mundo das letras" .


2.2 OLHARES ACERCA DE SÉRGIO CRÍTICO

Bem firmado em sua mais que merecida carreira de grande historiador, talvez o maior que já houve no país, foi quase com surpresa que se redescobriu, já nos anos de 1990, Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário. A primeira contribuição que deu a historiografia, Raízes do Brasil publicado em 1936, é até hoje seu livro mais conhecidos, reeditado e traduzido. Procedendo ao cotejo entre duas colonizações latino-americanas (portuguesa e a espanhola), encarnou-as respectivamente em dois tipos ao estilo weberiano (o semeador e o ladrilhador), que lhe forneceram bases para avançar hipóteses sobre a sociedade brasileira.
Depois, Monções (1945), Caminhos e fronteiras (1957), aos quais se deve anexar O extremo oeste (este publicado somente em 1986), formam um bloco, pois tratam do desbravamento e ocupação dos interiores do Brasil, sobretudo pelo sertão paulista afora. Ali, o trato com as fontes primárias, aliás, traço distintivo de sua obra, é fecundada pela visão antropológica, resultando em notáveis investigações de cultura material, que mostram a importância de índios e mamelucos nos costumes coloniais, bem como no povoamento do território .
Em Visão do paraíso (1959), tese de cátedra, Sérgio Buarque de Holanda estudou os motivos edênicos que presidiram aos descobrimentos, quando os conquistadores almejavam chegar ao paraíso terreal. Começando pelos devaneios com as terras ignotas já em vigência na Antigüidade, demonstra como à utopia paradisíaca se opõe uma fantasia demoníaca, que envolve o canibalismo, a existência de monstros e a intervenção de Satanás. É um monumento de erudição e gosto .
Nesse livro, embora ninguém possa negar que se trata de um marco na historiografia, a contribuição dos estudos literários é enorme, fato que não é único na obra do historiador, embora aqui mais acentuado. Sobressaem as sondagens de E.R. Curtius, autor de A literatura ocidental e a Idade Média latina, expoente da estilística alemã, insuperável pela perquirição filológica e membro de uma trindade completada por E. Auerbach, autor de Mimesis: a representação da realidade em literatura, e L. Spitzer, autor de Estudos de estilo. Curtius é referência constante: foi ele quem estudou na tradição literária ocidental a tópica com que o historiador está operando, erigindo-se em fonte para a exegese dos motivos edênicos. Mas são convocados poetas e ficcionistas, facultando ao leitor inteirar-se da extensão e profundidade de seu preparo anterior enquanto crítico literário .

Do Império à República (1972) tem um percurso original, pois, à época, Sérgio Buarque de Holanda dirigia a coleção História Geral da Civilização Brasileira, a qual mobilizava dezenas de colaboradores, dentre o que havia de melhor no pensamento brasileiro. Exerceu o encargo de 1960 a 1972, tendo sido produzidos sob sua direção os dois volumes da Colônia, para os quais contribuiu com vários ensaios, e os cinco do Império. Quando chegou ao último, cansado de tanta cobrança e tanto atraso na entrega dos trabalhos, sentou-se e escreveu sozinho as quase 500 páginas do sétimo volume, caso único na coleção. Depois disso desistiu e passou-a adiante.
De acordo com Walnice Nogueira Galvão uma observação mais acurada infere que Sérgio Buarque de Holanda talvez pudesse ter conhecido ainda mais fama em vida, influenciado mais discípulos e feito mais escola do que de fato ocorreu. A razão parece ser óbvia, ou seja, a de que remava contra a maré nativa de seu tempo: tempo de fastígio da história econômica. Também, para azar dos não-brasileiros, de todos os seus livros só Raízes do Brasil foi várias vezes traduzido, e em primeiro lugar na Itália, com o título de Alle radici del Brasile. Um ponto interessante e até mesmo com uma tonalidade de escárnio, Sérgio gostava de contar que o livro fora visto naquele país na seção de Botânica de uma livraria.
O que podemos observar é que uma característica, que perpassa a obra de ponta a ponta, é a perícia estilística: "estamos diante de um verdadeiro escritor, sem prejuízo dos méritos científicos daquilo que escreve. Em suma, um mestre da prosa, com certo pendor castiço e até clássico, ou classicizante, como que absorvendo a atmosfera lingüística das fontes primárias que tanto prezava" .
A certa altura, indo avançada sua carreira de historiador de renome estabelecido e identidade intelectual reconhecida, Sérgio Buarque de Holanda publicava, bem apartados no tempo, dois livros de crítica literária: Cobra de vidro (1978), reedição de um mais antigo de 1944, e Tentativas de mitologia (1979). Some-se a isso outra reedição literária coeva, a da Antologia dos poetas da fase colonial (1979), cuja primeira edição é de 1952-1953.
Os dois primeiros reúnem artigos oriundos da crítica militante em vários periódicos, mas especialmente do rodapé semanal do Diário de Notícias do Rio (onde substituiu Mário de Andrade) nos anos de 1940 e 1941, da Folha da Manhã e do Diário Carioca, compreendendo um lapso que se encerra em 1952. Completa o segundo dois trabalhos publicados no O Estado de São Paulo em 1956, estes avulsos, ou pelo menos não-comprometidos com o exercício semanal.
Os artigos reunidos nesses dois volumes cobrem extensa gama e diversos tipos, além de notícias de lançamentos, como cabe a um rodapé. Vão desde minuciosas análises de poemas até textos de reflexão sobre determinados assuntos, como o romantismo ou o americanismo, ou sobre autores tão variados quanto Kafka, Pound, Lima Barreto, Gilberto Freyre, Gide, Thomas Hardy, Fargue, Auerbach, entre outros, sem esquecer o constante diálogo do membro da Semana de Arte Moderna de 1922 com os modernistas contemporâneos e seus sucessores.
Se necessário precisar qual a diferença entre ambos, o resultado revela-se curioso: embora tenham aproximadamente o mesmo número de artigos, o segundo é bem mais volumoso que o primeiro (Cobra de vidro: 19 artigos em 191 páginas; Tentativas de mitologia: 17 artigos em 284 páginas), resultando portanto da soma de trabalhos mais extensos. Todavia, por um critério não-quantitativo e mais pertinente de distinção, nota-se que o primeiro é de cunho mais literário, enquanto o segundo o é com menor exclusividade, enveredando francamente pelo campo da historiografia, com ênfase no Barroco e no Arcadismo, já prefigurando tanto Visão do paraíso quanto Capítulos de literatura colônia l.

Sérgio abandonou as lides da crítica militante em 1957, quando tornou-se professor de História da Civilização Brasileira na Universidade de São Paulo, embora nunca deixasse de escrever avulsamente para jornais e revistas. Não se dava aí sua estréia como professor, pois desde 1936 já lecionava História Moderna e Econômica no Rio, como assistente de Henri Hauser na Universidade do Distrito Federal, mais, e sintomaticamente, também Literatura Comparada, como assistente de Trouchon, na mesma escola. Em 1937, quando os dois franceses se retiraram, assumiu a cadeira de História da América e de Cultura Luso-brasileira até 1939, quando a escola foi extinta. A partir de 1948 lecionou ainda História Social e Econômica do Brasil na Escola de Sociologia e Política, em São Paulo .
No ano de 1958 abria-se concurso para provimento da cadeira de História da Civilização Brasileira, que já ocupava desde o ano anterior, Sérgio concorre com a tese de cátedra já citada Visão do paraíso. A partir de então, até sua morte em 1982, sua reputação fica consolidada como historiador, esquecido o crítico literário.
Quase um decênio após sua morte, sai, para surpresa geral, Capítulos de literatura colonial (1991), alentado volume com cerca de 500 páginas, cujos originais foram preparados por Antonio Candido. Instigado por um compromisso com José Olympio, Sérgio Buarque de Holanda aproveitara sua estada como professor na Universidade de Roma (1952-1954) para pesquisar o acervo da Arcádia Romana ? vindo a demonstrar sua superior influência sobre o Arcadismo mineiro ? e ler exaustivamente, como se verifica pela bibliografia, os árcades italianos e os seus estudiosos. Ainda pouco conhecido, trata-se, no juízo de um especialista no mesmo campo como Antonio Candido, do mais importante trabalho até hoje feito sobre o assunto .

Como se comprovava, mal se acomodando dentro dos limites do crítico de rodapé semanal, Sérgio Buarque franqueiava ao leitor uma reflexão de amplo espectro. Assim, pode escrever sobre a literatura da Antigüidade e da Idade Média; ou sobre vastos temas teóricos como mito e arte, poética e estética, símbolo e alegoria, hermetismo em poesia; ou então entabular uma discussão com os modernistas seus contemporâneos ou com os da geração de 1945, de certa forma também seus contemporâneos; ou acompanhar os modernos do mundo, como Proust, Joyce, Pound, Eliot, Kafka, os surrealistas ou o New Criticism , de que foi grande conhecedor.
Entretanto, no arco que se desenhava nesses 40 anos de crítica literária, iniciados com o primeiro artigo, escrito em 1920 aos 18 anos, certas constantes se definiam, de tal modo que cada vez mais a atenção ia se concentrando no Barroco e no Arcadismo, prefigurando os Capítulos de literatura colonial , em gestação nessa época. Passavam a freqüentar em sua pena temas correlatos, como se pode verificar, sobretudo em Tentativas de mitologia e em O espírito e a letra. Com as edições da década de 1990 vindo a constituir uma verdadeira redescoberta dessa vertente de sua obra obscurecida pela do historiador, o que se pode dizer é que a recepção de Sérgio Buarque de Holanda crítico literário .
Como podemos observar, o legado do crítico literário mal começava a dar frutos, no entanto, certamente, "após o indispensável resgate dessa vertente de sua obra, o futuro saberá mostrar-se à altura de uma tal herança" . Os trabalhos já elaborados ainda não são numerosos, alinhando-se apenas os mais detidos, que ultrapassavam a mera resenha para assinalar o lançamento, e exclusivos do campo literário.
De Alexandre Eulálio foi a conferência "Sérgio Buarque de Holanda escritor", proferida em 1986 quando da inauguração da biblioteca que leva o nome do historiador e guarda seu acervo na Unicamp, depois publicada em número especial da Revista do Brasil de julho de 1987; posteriormente, seria incorporada à l8ª edição de Raízes do Brasil .

Nesse texto de Alexandre Eulálio como aponta Galvão a atenção do leitor é logo chamada, desde o título, para o domínio do meio expressivo, a escrita, que caracterizava toda a obra, tanto na historiografia quanto na atividade propriamente crítica. Esta, à época, ainda se encontrava dispersa, mas já era objeto de meticuloso levantamento, realizado por Rosemarie Erika Horch e publicado em Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. Traça-se o desenho de um percurso, começando pela participação intensa nas polêmicas do Modernismo dos anos 20, a que se seguem a adesão ao Surrealismo e a temporada na Alemanha, esta última predispondo à visão do Brasil de uma perspectiva distante. Registra, com cuidado, sua participação em diferentes periódicos em diferentes temporadas. Lembra como características dessa atividade a capacidade de argumentar, a receptividade à pesquisa formal inovadora, a coragem intelectual e o bom uso da ironia na formulação do juízo crítico .
Pouco tempo depois, em 1991, surgia a introdução de Antonio Candido a Capítulos de literatura colonial. Afora comentara minuciosamente cada um dos oito ensaios, o crítico aprofundava a análise e interpretação tanto de sua originalidade quanto da abrangência da erudição ali demonstrada. Cruciais para a compreensão não só da literatura colonial, mas também do Barroco e do Arcadismo entre nós ou fora daqui, neles Sérgio, segundo Candido, colocava-se num ângulo de visão que lhe permitia diagnosticar uma literatura oitocentista cindida entre o culto do passado e a sensibilidade do presente. "Daí o estudo da escolha do índio como protagonista, quando se postula um brasileiro nativo por influência da voga do homem natural" . Entregando-se ao comparatismo, vai revelar como o peso dos italianos, que pesquisou in loco nos arquivos da Arcádia Romana, foi preponderante naquele momento. Ao expor como nosso Arcadismo é, tardiamente, ainda barroco, o historiador mostraria que "o tecido da obra literária é uma encruzilhada secular na qual vem bater toda a aventura espiritual do Ocidente" .
Em dois grossos volumes, totalizando 1088 páginas, vieram a público em 1996, sob o título de O espírito e letra, os estudos literários com que Sérgio Buarque de Holanda colaborou na imprensa por quase quarenta anos.
O organizador dos rodapés literários dispersos, Antonio Arnoni Prado, além da Introdução a O espírito e a letra, escreveu ainda Raízes do Brasil e o Modernismo (publicado em Novos Estudos Cebrap, n. 50, mar. 1998 e em Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil) e Uma visita à casa de Balzac (Revista USP, n. 39, set./nov. 1998). Conforme adianta na Introdução, mesmo antes da irrupção do Modernismo o futuro historiador já estava externando convicções antipassadistas, de que o novo movimento viria ao encontro. Contextualizando a trajetória de seus interesses, realça como eles se relacionavam com o momento e com preocupações de aprofundamento. Três de suas contribuições são consideradas definitivas: a discussão de método e funções, inovadora e com bibliografia invulgarmente atualizada; a concepção da literatura como uma forma privilegiada de conhecimento; a fidelidade aos deveres do crítico, ao acompanhar e questionar tudo o que cada geração ia sucessivamente realizando em literatura .

A vastidão da escolha induz a pensar que, se nem tudo foi escrito, uma solução talvez mais apropriada teria sido selecionar os textos mais relevantes. Abrangendo, no entanto, a sua (quase) totalidade, "lucra o especialista, que deste modo tem acesso a um registro vivo e lúcido de nossa atividade literária entre o crepúsculo da Belle Époque e o fim dos anos de 1950" .
Dispostos em ordem cronológica, esses estudos de crítica literária, como é demonstrado no subtítulo de O espírito e a letra, permite acompanhar a trajetória do autor desde a mocidade até a maturidade. "Conquanto se possa falar numa evolução, ou em mudanças naturais, que o próprio exercício crítico vai introduzindo na mente de quem o pratica, é possível divisar uma unidade entre o primeiro e o derradeiro artigo" . Uma unidade que denota o lento, mas inexorável progresso do crítico no rumo da sua vocação, ou das características que o individualizaram como tal, distinguido-o dentre os que se dedicaram às mesmas tarefas ao longo do Modernismo.
Já nos artigos iniciais podemos notar uma inclinação visível para a historiografia, fundada em vária erudição, notadamente sociológico, "a prenunciar as Raízes do Brasil, obra do autor que viria a constituir, uma das balizas ideológicas para entender a dualidade que permeia os anos de 1930" . O gosto da investigação acurada, da minúcia bibliográfica rigorosa, das copiosas leituras, que alguém mais afoito poderia atribuir à juventude do autor, era verdadeiramente o indício de uma maneira toda sua de encarar as obras e os fatos literários.
Nem tudo, porém, ostenta equilíbrio necessário: Sérgio Buarque de Holanda tinha do seu ofício noções precisas, e na coerência ou não com que pôs em prática residiriam os acertos ou os deslizes que disseminou pelos ensaios, bem como os fortes sinais de sua "vocação" de historiador. "O que diferencia um zoilo comum de um crítico justo é essencialmente o poder de distinguir bem", sustenta ele, com muita razão, salvo no emprego do restritivo "justo", fazendo supor que o "zoilo comum" ainda continua a ser crítico .

De acordo com Massaud Moisés, a sua noção de crítica, que refluía mais de uma vez na série de artigos, permite admitir que, ao se negar como crítico, podia estar fazendo uma afirmação-piada, bem ao gosto dos modernistas de 22, mas a um só tempo inclinava-se a suspeitar que a sua flecha crítica apontava para outra direção. Nos anos de 1940, ao retornar a sua atividade, após seis anos de afastamentos, parecia vir carregado de novas e estimulantes leituras.
O historiador finalmente encontrava o crítico: não seria despropositado pensar que tais estudos correspondiam, na verdade, ao triunfo do historiador sobre o crítico. O que não significava, evidentemente, que a partir daí dispensasse as exigências críticas. Como aponta Moisés, uma coisa, porém, era fazer história literária, com todo rigor crítico, outra, bem diversa, era fazer o registro interpretativo da produção literária contemporânea. "Nem a hipótese de aí se esboçar uma história do presente salva os riscos da precariedade os artigos de jornal" . De qualquer um dos modos, quando Sérgio Buarque de Holanda se debruça sobre o passado, depara o seu lugar de eleição e a matéria mais propícia ao exercício da sua inteligência crítica e da sua diversificada erudição.
De acordo com Flora Sussekind em comentário ao texto Nota breve sobre Sérgio crítico de Antonio Arnoni Prado, a tentativa de aproximação do trabalho intelectual de Sérgio Buarque de Holanda, por meio de sua vasta colaboração na imprensa, serviria de eco indescartável, em direção ao pensamento e à forma peculiar de escrita do historiador, exatamente seus textos breves, suas polêmicas e resenhas publicadas no Correio Paulistano, na Revista do Brasil, em A Cigarra, Klaxon, Estética, Terra Roxa e outras terras, O Jornal, Diário de Notícias, Folha da Manhã, Diário Carioca ou no suplemento literário de O Estado de São Paulo.
No calor da hora da imprensa carioca e paulista, Arnoni procurava sublinhar que sua aparente duplicidade de papéis de Sérgio, a do historiador e homem de letras, apontaria, na verdade, para uma fusão entre os dois lados, para ma figura de "historiador que pressupõe o crítico" . Raciocínio que se aproxima como aponta Sussekind, de comentário do próprio Sérgio Buarque: "Quanto a mim, julgo que o exercício da crítica, mesmo que a não aperfeiçoasse, não transformou minha vocação principal, de historiador. Inclino-me à suposição de que ela me foi ao cabo proveitosa, embora não seja eu o melhor juiz para dizê-lo" . "No estilo tenso do ensaio sergiano, tanto naquele totalizante como naquele fragmentário, flexibilidade inventiva e a erudição permeada de sensibilidade do artista autêntico faziam um só o historiador preciso e o ensaísta de vôo livre" .
Segundo Sussekind, o distinguiria a afirmação de unidade por Arnoni Prado e por Alexandre Eulálio, até porque Arnoni estava preocupado, neste texto, com a pesquisa histórica de Sérgio Buarque de Holanda, apenas com sua crítica de jornal, não deixa de ser curiosa a duplicidade do próprio Arnoni no seu texto nota breve. Desta maneira, podemos observar que, de um lado, reclamava identidades no aparentemente múltiplo, as vertentes da obra do escritor, de outro, operava distinções, procurava demarcar fases, dentro daquela vertente, a crítica, que Arnoni escolheu como objeto de estudo. Neste sentido sugeriu uma periodização em três fases dessa colaboração jornalística de Sérgio Buarque .
A primeira fase, Arnoni chama de desvairista, mais ligada aos rumos do modernismo brasileiro, iria de 1920, data da publicação do primeiro texto do escritor no Correio Paulistano, até 1926, quando ele escreve O lado oposto e outros lados, revisão radical do momento modernista. Fase cujo estudo pode ajudar a compreensão de um livro como Raízes do Brasil, o que foi assinalado pelo próprio Sérgio Buarque em entrevista a Richard Graham:
Modernismo significou, acima de tudo, a quebra do formalismo das velhas tradições. Em estudo de folclore, os modernistas dirigiram sua atenção para o interior do Brasil, longe das cidades europeizadas tornando os negros o objeto de sua arte, eles declamaram que não somente os brancos eram brasileiros. Eu trouxe essa preocupação para dentro do meu trabalho histórico bem como para todos o demais. Raízes do Brasil foi uma tentativa de fazer alguma coisa nova, para quebrar com a glorificação patriótica de heróis do passado, para ser crítico .

O que podemos observar é que talvez o primeiro momento jornalístico do historiador possa fornecer informações úteis não apenas sobre o ensaio de 1936, pois, como já apontou Maria Odila Silva Dias, "há uma ponte na formação intelectual de Sérgio Buarque de Holanda entre sua militância modernista a vocação de historiador que valeria a pena ser esmiuçada" .
A segunda fase seria a de crítico, por dez anos, do Diário de Notícias, a partir de 1940. Período marcado, registra Arnoni Prado, por uma renovação do repertório e das fontes dos estudos literários e pela substituição do antigo entusiasmo pela maior disciplina do ato crítico. Sérgio estava empenhado em aproximar-se de "um ideal de correntia clareza" na sua escrita crítica e em atualizar-se em tudo o quanto houvesse de mais atual e mais fecundo no tocante às técnicas de criação e crítica literária. Para muitos dos autores da época foi uma surpresa a velocidade com o nosso autor se atualizou, sobre a surpresa com sua renovação de repertório há o registro de Manuel Bandeira à época: "Tomou pé da noite para o dia" .
No seu esforço de periodização e compreensão da atividade crítica de Sérgio Buarque, Antonio Arnoni Prado, se não crê ser possível falar propriamente na conquista de um método, não deixa de enfatizar de um lado os laços com o Modernismo, de outro com o trabalho do historiador como aproximações necessárias para quem se dedicar ao estudo de seu jornalismo literário. E como sugestões de um dos motivos mais recorrentes nos artigos curtos e resenhas: a tensão entre arcaico e moderno, entre persistência das tradições e mudança histórica. "Como historiador, o que mais o interessava era estudar os obstáculos à mudança, que emperravam as forças de renovação da sociedade brasileira" . Daí sua obra girar em torno de realidades movediças, costumes em transformação, processos de mudança, enfocando a transição da escravidão para o trabalho livre, as formas de convívio originadas pela situação de fronteira, o processo de adaptação do europeu do meio colonial .
A trajetória intelectual de Sérgio Buarque de Holanda demonstrava ambigüidades, ou seja, nas palavras de Süssekind "tratava-se de duas faces de uma só figura" . De um mesmo estilo, segundo Alexandre Eulálio e de uma só trajetória intelectual como, sugere Arnoni. No entanto, "nem pelo simples gosto de imitar por um momento Sérgio Buarque, talvez se pudessem restaurar ambigüidades e fronteiras entre escrita crítica e exposição histórica" . Talvez como observa Süssekind se pudéssemos introduzir um terceiro elemento nesses combates fronteiriços: as experiências de Sérgio Buarque no campo da ficção, mantidos até então, mínimos limites, trata-se de observar interações ou travas entre tais modos de ver, tais exercícios de escrita.
No que diz respeito aos poucos exercícios ficcionais de Sérgio Buarque, "Antinous", em breve diálogo publicado a 15 de agosto de 1922 em Klaxon; "A Viagem a Nápoles", conto divulgado em 1931 na Revista Nova; "Novas Cartas Chilenas", enviadas sem assinatura a Manuel Bandeira em 1963, pode parecer diminuição inaceitável de tom o recurso a produção tão parca, descaracterizada (diálogo, conto, poesia) e esparsa. E, no entanto, bastante curiosa. E capaz, ainda, se observada com certa atenção, de retraçar, um pouco ao avesso, o movimento do historiador em direção simultaneamente à conquista indeterminação e de um método estilístico particular .

De acordo com Süssekind o repertório temático é menos reduzido por imposição, mesma da prática do rodapé literário, mas há algumas questões que se apresentam com maior freqüência e passam de um texto a outro, do campo da crítica ao da pesquisa histórica. Escrita móvel que Sérgio Buarque de Holanda adotava, sobretudo depois do processo de depuração a que se submeteu nos anos de crítico. Algo semelhante se detectava na trajetória poética de Manuel Bandeira: "a variedade e multiformidade não constituem uma aquisição gratuita, um dom do céu, mas resultam de um combate assíduo, o combate de um poeta menor, no bom e verdadeiro sentido da expressão contra as limitações impostas por tal circunstância" .
Como acontecia no breve itinerário ficcional de Sérgio Buarque, é só depois de obtida certa fluência que se permite maiores exercícios de engenho. E, quanto ao estilo da escrita na crítica e na historiografia, permanece curiosa a divisão entre o jeito seco, linear, sem grandes deslocamentos, com que fala de literatura de ficção ou de poesia e a narrativa em ritmos e timbres diversos com que escreve a história da civilização brasileira . "Troca de registro, explicitamente literário quando o objeto é a história social; estudadamente objetivo quando o assunto é literatura, por si só de garantir indeterminações, zonas fronteiriças, como as que tanto cultiva o escritor. Forma indireta de figurar sua consciência da não identidade" .
Desta maneira, este trabalho chega ao fim, acreditamos que o objetivo proposto foi alcançado que era de analisar as leituras e por conseqüência o pensamento de um modernista e historiador acerca de um período comum a nós que é o movimento modernista de 22. Não obstante, este não é um trabalho acabado, pois acreditamos que abre um leque de reflexões que poderão ser utilizadas em trabalhos posteriores.







3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No meio social onde a crítica literária nascia, conjuntamente com ela aparecia uma reflexão distinta daquelas já propostas até então, a partir da efígie de um historiador excepcional que se dedicou aos rodapés da imprensa diária. Sérgio Buarque de Holanda inicia sua carreira como crítico literário no período modernista, aproximadamente nos primeiros anos de 1920, quando seus artigos começavam a circular pelas páginas do Correio Paulistano.
Falar de Sérgio Buarque de Holanda remete-nos ao historiador de notoriedade, considerado um dos clássicos da historiografia brasileira, apontado, por muitos, como um dos redescobridores do Brasil. Que bem consolidado em sua carreira de grande historiador, talvez o maior que já houve no país, foi quase com surpresa que se redescobriu, já nos anos de 1990, Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário. A primeira contribuição que deu a historiografia, Raízes do Brasil publicado em 1936, é até hoje seu livro mais conhecido, reeditado e traduzido. Procedendo ao confronto entre duas colonizações latino-americanas, encarnou-as simultaneamente em dois tipos ao estilo weberiano, que lhe forneceram bases para avançar hipóteses sobre a sociedade brasileira.
Umas das contribuições mais originais de Sérgio Buarque de Holanda à crítica literária vem justamente de sua sensibilidade de historiador. De acordo com Antonio Arnoni Prado, Sérgio tinha consciência de que o primeiro passo da crítica estaria na própria elaboração do poético, pois em cada tempo, as tarefas que assumem em face desse processo aprofundam os reflexos que o produto de semelhante elaboração vai encontrar em seu público e em sua época.
Da perspectiva de Sérgio, não há como entender o esforço de criação poética fora das conjunturas históricas, sociais ou culturais que obedecem ao instante de criação da obra em si mesma. O que sua crítica tem o objetivo de mostrar é o de que, apesar das aparentes dissonâncias entre a lógica da ficção e a leitura de seu significado no momento em que se instaura, perdura sempre entre eles um traço de união que as torna inconfundíveis.
Muito mais que um crítico meticuloso parece ser paradoxalmente o faro de historiador que, na crítica de Sérgio Buarque, contribui para enriquecer a dimensão estética da literatura. Na verdade, era a maneira que interrogava essas tendências que dava singularidade a tudo que leu e escreveu enquanto crítico. Sérgio Buarque de Holanda tem uma diferença de outros críticos, ele não procurava dentro da literatura a relação com a história, e muito menos que é da perspectiva da história que se situava para conceber suas reflexões literárias.
Como já foi citado seu foco era uma espécie de olho móvel a flutuar sobre o que chamou de paisagem transcendente da obra, ou seja, aquele plano virtual que não pertence efetivamente ao mundo historiográfico nem ao mundo da ficção, "a dimensão em que nasce e se expande o núcleo da composição, a inteligência central e a moldura da verdade ficcional legitimada como símbolo à parte, mas interferindo vivamente nas instâncias da realidade do mundo em que se insere".
Um outro ponto fundamental deve ser sopesado é que nas fontes utilizadas neste trabalho, podemos observar que Sérgio não se utiliza autores considerados cânones do movimento literário. Provavelmente porque a geração aqui analisada foi muito criticada pelos seus predecessores e também seus sucessores. Todavia, Sérgio Buarque utiliza-se de seu conhecimento historiográfico para obter uma crítica minuciosa, criteriosa e muito bem fundamentada.
O que podemos observar é que quando se debruçava no mundo literário buscava mostrar não uma visão generalizante, mas sim um olhar mais pontual sobre as mudanças ocorridas no ambiente literário. Com este aspecto importante pordemos analisar suas leituras e talvez num trabalho posterior de que forma ele as fazai. Com uma antena atenta e criteriosa que acompanhava o desenvolvimento das letras no país entre as décadas de 1920 e 1950, o grande historiador vai da crítica pontual às reflexões estéticas mais amplas, distinguindo a cada momento o surgimento de novos valores, criticando com finura os formalismos da chamada geração de 45 ou detectando a influência crescente das faculdades de filosofia na construção de uma crítica menos personalista e mais bem fundamentada, da qual é ele mesmo um representante exemplar.