A ordenação das virtudes

A "felicidade" reporta-se ao que é inerente e fundamental no homem. Executar o que lhe é próprio, para o homem, constitui atingir a um certo ponto, uma certa actividade, cujo objectivo, cujo "fim", não consista para além dela própria. Essa actividade será, portanto, auto-suficiente, ou, em termos mais concisos, o actualizar-se, ou consumar-se actualmente de uma essência própria. Esta realização irá coincidir com a realização de uma certa "virtude" relativa à actualização de uma tarefa própria. Esta mesma tarefa já nos apareceu antes com três características, pertencentes a três fases, modos ou sistemas de realização, que são, em virtude de uma possessão do lógos, uma obediência e um exercício próprio, e esse exercício próprio contém, por sua vez duas organizações desiguais de realização das quais de certa maneira, se co-implicam. Na ordenação das "virtudes", os três modos da tarefa verificam-se, respectivamente, em "virtude ética" (aqui podemos chamar de obediência), "prudência" (direcção) e "sabedoria", sendo cada uma delas nessa ordem, passagem para a próxima, e a última tem um "fim" nela mesma. A forma primeira e mais acabada de "felicidade", é compreendida sob a seguinte definição: "…, o bem humano é uma actividade da alma conformada por uma excelência, e se houver muitas excelências, será conformada pela melhor e mais completa". [1]

Para uma melhor análise da definição acima será necessário que façamos a observação dos sentidos de duas expressões: "melhor" e "mais completa". Em primeiro lugar, passemos a entender que áristos ("melhor"), ou seja, áristen significa, aqui, referindo-se a "virtude", a melhor. Áristos é um superlativo para agathós, isto é, "bom". Desta forma, o bom aqui considerado é o melhor dos bens humanos. Que uma coisa seja melhor que outra é algo que percebemos prontamente. Mas a que se menciona aqui "o melhor"? Qual é a melhor "virtude" e porque é melhor? É conforme esta "melhor virtude" que uma certa actividade da alma resolve-se em "felicidade". O acrescimento "mais completa" dá o sentido elementar de "melhor". O maior bem humano concorda com o "mais completo" dos bens. Logo, todo bem define-se pelo "fim". O grau de excelência de um bem, por sua vez, é entendido pela relação meio-fim. Mas existem três qualidades elementares de bens, a saber: os bens externos, os bens do corpo e os bens da alma. Existe, todavia, um encadeamento nesta disposição dos bens. Para que os primeiros bens sejam bons é necessário que sejam determinados pelos últimos, que são, no sentido mais adequado, os primeiros na posição do fundamento. Estes, últimos na ordem de execução e primeiros nesta outra ordem, são os bens da alma. São assim, porque, neles, a relação "meio-fim" é mais estreita, e o é de duas formas, a saber: em si mesma, ou em relação ao "fim" último, porquanto a realização deste destrói de forma total a barreira "meio-fim": é neste momento que meio e fim encontram-se, determinam-se numa só e mesma coisa, pois se efectuamos o que nos é mais próprios, não somos, no momento desta realização, perseguidores; seremos, aqui, presentemente, o que, convenientemente somos. Assim é o que compete precisamente ao homem, como a sua maior "tarefa", ou seja, realizar propriamente o que ele é. Este próprio acarreta também todas as coisas que são ou podem vir a ser boas para ele (o homem), desde a riqueza e a saúde até a justiça, coragem e temperança. A riqueza e a saúde, contudo, enquanto bens, implicam "virtude". As "virtudes" aqui solicitadas e incluídas são, respectivamente, liberalidade e temperança, que classificam-se entre as "virtudes éticas". Como estas "virtudes" estabelecem aqueles bens, elas encontram-se mais perto do "fim" último, ou melhor, o afectam de forma mais directa, e é por assim implicá-lo que elas podem orientar o que encontra-se sob a sua protecção, sob o seu domínio. Dito isto, o que implica mais directamente ao "fim" último deverá possuí-lo já, de algum jeito, em si mesmo, e tal parece, primeiramente, ser a "virtude ética". A "virtude ética" é, na ordem de execução, a primeira das "virtudes" propriamente humanas e é responsável pela constituição daquilo que, em nós, pode não ser segundo o próprio uma "potência" denominada por Aristóteles "faculdade desejante", ou seja, a faculdade do desejo, que é por assim dizer, uma "potência" da "alma". Esta potência não possui lógos, mas pode vir a persegui-lo; e tal é a sua particularidade, o que há nela de próprio: poder vir-a-ser segundo o lógos. E caso venha a ser, ela resulta em "virtude ética".

O desejo obtido pela virtude

Regressamos aqui a ideia de desejo. Ora, aquilo para que o "desejo" passa a debruçar-se, pela obtenção da "virtude", é o ideal relativo ao casual. O "desejo" para o conhecimento é integrante. A função ou faculdade desejante da alma, logo, pode não possuir a precedência lógica, mas é o motor da acção. O desejo não é visto como privação, mas como "força", "potência" que influi de maneira poderosa a acção humana, tanto na direcção de uma vida virtuosa como na direcção de uma vida descomedida. "O ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo que, sem agir directamente sobre as coisas, ficando à distância delas, as atrai, é desejado por elas"[2].

Trata-se aqui de uma "potência" que, embora seja uma propensão para o que é máximo do humano, precisa de uma organização preliminar. Em última análise, esta "potência" é uma inclinação para a maior de todas as ciências. Essa "potência", todavia, necessita torna-se em uma potência activa da "alma". Dizemos assim que o "desejo", mesmo em relação ao saber mais elevado, executa sua função. Este saber é tarefa da "sabedoria". Ela é uma "ciência", contudo é entendida também como uma "virtude dianoética". Qualquer "virtude" é referente à finalização de uma "potência". A "sabedoria" é a actualidade da "potência" mais adequada do homem. O "desejo" visa para a actualidade da "sabedoria", como é dito na Metafísica. Dessa forma, a "sabedoria", sendo a superior "virtude", será a "actividade da alma" que chamar-se-á, precisamente, "felicidade", e esta desempenhará, para o homem, uma possessão total de si mesmo, uma autonomia. E esta actividade conterá um fim em si mesmo pois o homem, agora, será o que ele é. E, como a "felicidade" é o mais completo dos bens, a "sabedoria" será a mais completa das "virtudes". Qualquer das "virtudes" serão, logo, em função desta, contudo esta apenas actualizar-se-á pela execução das anteriores, pois as envolverá. O "desejo" liga-se com os fins, visto que a escolha relaciona-se com os meios. Dito isto, o "fim" para o qual o "desejo" pende é a própria perfeição humana, e esta é a "felicidade". Imediatamente, todavia, do acontecimento de que o "desejo" necessita de uma formação antecedente, ela deve ter de ser, antes de qualquer coisa, uma inclinação para um "fim" realizável, ao alcance da escolha. Por "realizável" queremos dizer, praticável por uma práxis. Nós preferimos ser justos, ou corajosos, ou temperantes, e desejamos isto, mas não podemos escolher possuir a "felicidade". A "felicidade", por ser uma realização nela mesma, afigura-se a um dom humano, expresso pela "virtude". Não podemos a escolher (a "felicidade"), mas podemos desejá-la, e, se ela é realizável, terá de ser por meio do que é analogamente realizável. Se não contivéssemos nenhuma propensão para seguir no caminho oposto ao lógos, andaríamos sempre em usufruto de nós mesmos. Como não é deste jeito, é necessário que nos aprontemos ou aperfeiçoemos para que nos venhamos a transformar no que somos. O que precisa de constituição é o "desejo", e dele efectuamos o que nos é realizável, ou seja, torná-la, pela práxis, uma orientação para um "fim" perfeito. Este "fim", como tem de ser algo exequível, é, de forma primeira, a "disposição do meio". Uma práxis considerada perfeita é uma "disposição do meio", e é isto que é desejado. Isto não quer dizer que o "desejo" relaciona-se com o meio, mas sim, que meio e fim aqui concordam. O "meio" para a temperança e a temperança, para a coragem a coragem, para a justiça a justiça e, de forma ampla, para a virtude a virtude. E é isto que qualifica uma "virtude ética", ou seja, que ela faça-se desejada e escolhida por ela mesma. Todavia ela apenas assim é por ter, para ser descrita como uma "virtude", de ser uma "disposição do meio". A "disposição do meio" é o fundamento, o princípio pelo qual a "virtude ética" obtém realmente esta designação. Contudo não desejaríamos algo por si mesmo meramente por desejá-lo deste jeito. Esse "desejar por si", "escolher por si", são coisas que solicitam uma comparência do homem no âmago da práxis. Com outras palavras, o que aqui significa "desejar" ou "escolher" por si é de uma certa forma o brotar, o tender para o fim, escolher o meio, naturalmente. Caso pratique a coragem e viva num estado justo, minha recompensa por tal acto será a honra, que é um fim, que, como nos diz Aristóteles, depende mais de quem a cede de que quem a ganha. Se, por exemplo, um mau governo não me conceda honra isto não significa que não possa ser corajoso. Mesmo que haja prejuízo de mim mesmo cumpre agir desta forma, mas isto só é provável se meu desejo e minha "disposição" para a escolha conveniente seja próximo de um "vício", onde não me seja mais permissível não ser deste modo, como um costume que criou origens tão penetrantes que nem mesmo a possibilidade do prejuízo me faria retroceder. Mas existe ainda uma razão que fundamenta esta práxis por si mesma, a saber, o facto de que haja, na "disposição do meio", um propósito de perpetuidade, de indispensabilidade, de perfeição. Portanto, se um acto de coragem exercido num determinado momento é distinto deste que pratico agora, tanto quanto as eventualidades, agora, neste instante, apenas é possível sê-lo desta forma. E a aptidão apropriada da "virtude" é, do melhor modo possível, saber transitar no âmago deste instante, tanto pelo desejo como pela escolha, e fazer o que é extremamente imprescindível. Seria assim uma práxis perfeita, global, plena, singular. E a contingência e o poder ser outro da práxis é que o instante não pode se repetir. Compete ao homem descoser-se constantemente repetidamente para acertar. Este é o mais complicado de nossas tarefas, porque envolve o desenvolvimento da plenitude do homem, e não apenas o que lhe é próprio. Este próprio não efectua-se, não actualiza-se, sem que todos os nossos ímpetos e, de forma geral, todo o combinado humano esteja composto segundo uma aplicação própria, um sentido, um caminho. E o nascer do próprio "sábio" inclui um entendimento total do conjunto humano. Apenas aqui poderá criar-se para o homem o que será assunto da "sabedoria", ou seja, o princípio eterno, que é oferecido prontamente ao intelecto. Este é a caminho e o sentido elementar da perfeição humana na sua totalidade, pois o intelecto necessita agir no homem desde o começo; e parece ser por este mesmo trilho que a própria "virtude ética" alcança a sua perfeição, que é a "disposição do meio". Dito isto, a "disposição do meio" é objecto da "sensação", e a "sensação", por sua vez, numa dada circunstância, identifica-se com o intelecto ou vem seguida dele, quer dizer, quando da percepção directa do singular ou da percepção referente ao singular da práxis.

E desta forma dá-se uma definição do "desejo" respeitante a isto, quando nos diz Aristóteles que ou esse desejo é um "desejo inteligente" ou uma "percepção intelectiva". Esta denominação do desejo emerge da investigação da natureza da "virtude ética" como "disposição do meio", e é por justamente alcançar uma tal perfeição ética que ela poderá ser, em seguida, o que ela é acertadamente, ou seja, uma inclinação para a "sabedoria", onde a realização será a própria "felicidade". Portanto, depois de um alcance pleno do desejo como inclinação para a "disposição do meio" ela iniciará a instilar-se para acolá da própria práxis. A primeira "virtude dianoética" a actualizar-se pela constituição da "faculdade do desejo" é o intelecto, que, num primeiro momento, é porção da "prudência", que é uma "virtude" deliberativa e concernente à escolha. O intelecto agirá aqui primeiramente pelo "desejo" e, em logo depois, pela "escolha". A propensão instantânea para uma perfeição será o "intelecto".

As três faculdades da alma

Vamos agora reflectir, mais uma vez, sobre as três faculdades da "alma". A primeira delas é a "faculdade do desejo". Esta, devidamente composta e ligada à "faculdade deliberativa", originará no melhor desta última, a saber, uma "virtude dianoética" que chamar-se-á, a partir deste momento, "prudência". Pelo aspecto prático do intelecto, que relaciona-se prontamente com o fim prático, essa faculdade deliberativa com o qual a tarefa é actualizada pela "virtude ética" e tendida agora em "prudência", abrangerá a identidade com seu objecto próprio. E este objecto é a práxis da "virtude", e esta é a "disposição do meio". Desta forma, a sua identidade é com a perfeição realizável ao domínio da práxis, uma perfeição praticável pelo homem, que sujeita-se a ele. Então, a "prudência" abrange a universalidade das "virtudes éticas" e actualiza-se pelo exercício das mesmas. Já que a "disposição do meio" é a perfeição do contingente, e sendo o homem finito e contingente, ele mesmo encontrar-se-á aqui em consonância consigo próprio e viverá, ele mesmo, segundo a "disposição do meio". Alcançará, portanto, um grau de auto-suficiência já aqui, no domínio ético. Porquanto a "prudência", apesar de ser "dianoética", é uma forma plena e uma perfeição ética do homem. Esta, atingido este momento, desempenhará um sentido ético da "felicidade", já adiantando e viabilizando a sua realização mais própria.

No livro X da Ética a Nicómaco, Aristóteles busca colocar a "felicidade" entre as actividades desejáveis por si mesmas. Para exemplificar analisemos esta passagem:

Mas, se estas consequências não satisfazem, e supusermos que a felicidade é mais uma certa actividade, tal como foi dito nas análises precedentes, [e que por sua vez] há actividades que são necessárias e escolhas como meios para fins, outras que são possibilidades de escolha em si próprias (como fins), é evidente que temos de supor que a felicidade é uma certa actividade das que são escolhidas segundo si próprias enquanto fins e nãos das que são meios para quaisquer outros fins, porquanto a felicidade não carece de nada; basta-se a si própria."[3]

Qualquer das actividades conforme a "virtude" contêm um nível de autonomia, a saber, aquelas que são por si mesmas desejáveis. Dito isto, a "felicidade" localiza-se aqui, ou seja, é desejável por si mesma. Tal interpretação também vale para a "virtude ética". Na "virtude ética", contudo, ainda que as acções necessitem ser desejáveis e praticáveis por si mesmas, elas não são as mais completas das actividades humanas. A sua realização, todavia, pela organização que desfruta, tornará viável a actualização do âmago do homem, ou seja, daquilo que ele sempre foi por formação. De acordo com a liberdade que o homem alcança na "prudência", ele tornar-se-á desimpedido para si mesmo, sem que a perturbação das paixões venha a atrapalha-lo. A sua vigilância e alerta para a concretização da perfeição da práxis, e atá seu "desejo" para a perfeição da mesma, permitirão um estado de espírito ajustado para a theoría, e a vida atinente a isto não será mais a vida na pólis, mas a "vida teorética". Este é o mais activo dos modelos de vida pois nesse instante o homem efectua aquilo que ele é especificamente, por composição, por natureza. Percebemos que a "prudência" é um bem por si somente porque prevê, de modo potencial, uma outra "virtude" referente à "vida teorética", ou seja, a "sabedoria".

A condição de desperto necessário à "vida teorética" foi já conseguida na "vida política". O objecto considerado neste modelo de vida, ou seja, "vida teorética", tem uma identidade ou consonância com a "potência" responsável pela theoría, assim como a "disposição do meio" em correspondência à "prudência". Esta, podemos dizer,"potência epistémica" é a porção da "alma" encarregada pelo conhecimento do que é indispensavelmente, que concorda com o que, no entanto, o homem é necessariamente. O que torna uma coisa necessaria vai além dela mesma, em direcção a uma totalidade. Dentro da perspectiva humana, o que ele é coincide com uma tarefa própria, que é a tarefa de cada homem. Esta tarefa será actualizada pela práxis, porém a actividade em causa já não será mais uma práxis, conquanto, de alguma maneira, deva contê-la em alguma dimensão. Contudo a palavra mais própria aqui é "actividade", quer dizer, actividade, que é o exercício presente, o "acto" ou "actualidade" de uma "potência", da mais própria de todas. Esta mesma "actividade" circulará sobre si mesma, não dirigirá nenhuma práxis. Assentará o homem em conformidade com o eterno, e tem de ser por alguma coisa que, nele, seja eterno. O homem inteiro e formado não vive de si, mas esta actividade vive. Essa "actividade" tem o significado de "ser", neste momento. Com isso, o que é em nós, nos conserva activos e sendo actualmente nós mesmos, referimo-nos ao intelecto.

Esta perspectiva está de acordo com o que foi apurado nas nossas primeiras análises, bem como com a verdade das coisas. É que esta actividade é ela própria a mais poderosa que existe (porque o poder da compreensão intuitiva é o que demais poderoso existe em nós, e os objectos mais excelentes que podem ser conhecidos são aqueles a que o poder de compreensão intuitiva acede) e é também a mais contínua de todas, porquanto nós somos capazes de nos demorarmos mais no olhar contemplativo do que na execução de qualquer outra acção"[4]

O sentido de "ser" diz, aqui, uma forma instantânea, uma naturalidade, uma fluidez de aspecto do homem, ou seja, o vir à superfície, à tona, daquilo que ele é intimamente, essencialmente. Esta actividade repete de modo pleno e de forma mais completa o movimento adiantado antes pela "disposição do meio" e esta é tão parecido ao objecto eterno quanto a actividade do prudente afigura-se à do sábio. Tais actividades, são semelhantes, estruturalmente, intimamente, ainda que saibamos que os seus domínios são diferentes. E nesse caso se co-implicam, logo tanto a "prudência" contém uma absolvição à "sabedoria" quanto esta provoca "prudência", e aquela actualiza-se por esta. Não é por acaso que, em Platão, as duas manifestações, tanto a "prudência" como a "sabedoria", possuam quase que o mesmo significado. Até parece que, em Aristóteles, o "prudente" é o "sábio" agindo no mundo prático.

A existência vivida de acordo com as outras formas de excelência é feliz mas numa segunda ordem, porquanto as actividades que se produzem desse modo fazem parte do horizonte Humano enquanto tal.[5]

A compreensão dianoética da "felicidade", relacionada com a "vida teorética", não pode ser meramente humana, pois o homem, enquanto constituído, não basta-se a si próprio. Dentro desta concepção acessória da "felicidade", que contém um certo sentido de auto-suficiência, é realizável quando o homem consegue controlar a sua natureza formada da melhor maneira possível. Qualquer "virtude da alma" possui um certo carácter de auto-suficiência. Contudo, podemos perceber em uma outra passagem da Ética a Nicómaco o seguinte:

É que as acções justas ou corajosas ou conformes às restantes possibilidades de cumprimento da excelência que realizamos através do nosso relacionamento com os outros implicam uma atenção cuidadosa com as pretensões de cada um, seja em contractos comerciais, nos momentos de necessidade, seja em toda a espécie de situações em que se encontrem, seja em toda a espécie de paixões que os aflijam, tudo isto parece ser próprio do acontecimento do Humano"[6]

Ainda que a "virtude ética", tenha estruturalmente o carácter de um bem da "alma", não pode ser o mais completo. O entendimento necessita afinal dispor inteiramente de si mesmo. Tal ele compreende no percurso da ética, já que a desordem irracional não estaria como que "tranquilizada" sem este percurso. Neste caso, theoría é a contemplação do que é, da mais divina de todas as coisas. Deve ser também a mais elementar de todas e a mais prontamente dada a nós, a primeira, a origem. Este princípio, contemplamos pelo que, em nós, lhe é análogo. Seriam poucas as coisas de que precisaria um homem determinado para si mesmo e para o que é. E esta é a mais básica e instantânea das coisas, tal como o básico, em nós, é o que somos constantemente já primeira e prontamente. Cada uma das coisas, tanto em nós quanto em si mesmas, seriam em funcionalidade de um princípio deste modelo, mas ele mesmo seria por si. No livro A da Metafísica, ao averiguar qual é o objecto da "sabedoria", Aristóteles nos diz o seguinte:

A mais elevada das ciências, e superior a qualquer subordinada, é (…) aquela que conhece aquilo em vista de que cada coisa se deve fazer. E isto é o bem de cada coisa e, de modo geral, o melhor no todo da natureza.[7]

Percebe-se que Aristóteles está a procurar aqui a "ciência" mais sublime, ou seja, a "sabedoria". E é pelo seu objecto, o mais acabado de todos, que é determinada a natureza desta "ciência". Sobre o objecto da "sabedoria", refere-se ao bem de cada coisa, que aqui é a finalidade de cada uma, por um lado e, por outro, o mais completo de modo pleno, término de todas as coisas naturais. Desta forma, em correspondência a si mesma, qualquer coisa é em vista de si mesma, e esse é o que cada uma contém de ser. É isto o que as agregam, todas, numa actualidade, a saber, de si mesmas, e em conexão com o princípio de toda actualidade, a mais completa de todas as coisas, e a primeira, ou seja, a essência de todas, o ser de todas. Dentro deste mesmo sentido, qualquer bem humano baseia-se no maior de todos, e isto é o bem e o superior, não no todo da natureza, mas no todo do humano. Ai é que está contido o "fim" último do homem, que é aquilo pelo qual todas as coisas humanas realizam-se. Tanto na Ética a Nicómaco quanto na Metafísica esta finalidade humana é reconhecida como o divino, a ponto de ser colocada em causa a capacidade de o homem atingi-la e realizá-la. Não será praticável aqui, pela amplidão do assunto, uma abordagem completa deste divino, mas realizaremos, pelo menos, um curto delineamento desta concepção. Seleccionamos relatar um passo de Ética a Nicómaco fazer um comentário breve. Esse passo está dentro do contexto da abordagem da "felicidade". O que o homem tem de encargos e de obstáculo à "felicidade" é o que o diferencia dos deuses. Estes seriam extremamente felizes por ser disparatado atribuir-lhes tais encargos.

Que a felicidade completa é uma actividade [constituída] pela acção da contemplação, será também evidente a partir das seguintes considerações. Nós supomos que os deuses são bem-aventurados e felizes de uma forma extrema, mas que espécie de acções podemos atribuir-lhes? Serão eventualmente acções justas? Mas não será antes que parecerão ridículos ao vermo-los entrar em negociações de contratos e restituir os depósitos recebidos e todas as acções deste género? (…) Se passarmos em vista tudo o que foi dito, parece que todas as acções de natureza excelente [que imaginemos serem] realizadas por deuses são insignificantes ou indignas deles. Mas certamente todos supomos que os deuses existem e, por conseguinte, actuam.[8]

A compreensão da divindade exposta nesta passagem, e a falta de práxis a ela respeitante, manifesta que os deuses são, e não tornam-se o que são. Jamais dormem, pois vivem no ser, na actualidade, na actividade, conceitos que aqui querem dizer a mesma coisa. Contudo, tirando a ideia de pluralidade presente nesse passo (os deuses), ele se destina, na realidade, ao termo théos no sentido mais geral. Por outro lado a "justiça" existe quando há "injustiça"; aqui ela é fundamental e, deste jeito, é necessário que nós, homens, nos tornemos justos, o mesmo acontecendo com a temperança, com a coragem. E o elogio ao justo é porque refere-se a algo dificilmente conseguido por quem conforme não é por natureza, e aqui está a presença da ideia de não-ser. Desta forma, não existe "disposição do meio" para os deuses, já que não há aqui a possibilidade do não ser, e a "disposição do meio" é o ser naquilo que, em nós, pode não ser. Batalhamos pela paz, nos nutrimos pela consonância do corpo e somos justos pela harmonia de nós mesmos e de uma sociedade, pois nisto continuamente pode existir desarmonia. Nada do que falamos aqui existe em théos pois aqui não encontra-se presente a ideia de não-ser, pois théos é ser, é actualidade. E neste caso, o que é em nós é essencial, é, ainda que não estejamos desde sempre desimpedidos para tanto. Acata, pois, que, antes de qualquer coisa, nos tornemos justos, temperantes, corajosos, e, em seguida, o que somos, e exercitemos isto convenientemente, sendo que não nos sustentamos sempre aqui, pois que temos constantemente de ser justos, temperantes etc. Todavia, ao nos transformarmos o que somos e fazemos isto, nos reconhecemos com théos, através da theoría, como mostra este passo.

Mas se nós retirarmos a um ser vivo a possibilidade de agir e mais ainda de produzir, o que é que lhe resta senão a actividade da contemplação? Assim, a actividade de Deus, distinguindo-se pela sua ventura terá de ser a da contemplação. É por isso que a actividade humana com uma mais estreita afinidade com aquela é tida como a que mais exponencia a felicidade.[9]

De diversos modos e por variados caminhos a theoría está associada ao divino e seria inútil percorrermos tudo isto, que parece por demais claro. O que não é tão claro é o que a totalidade destas coisas verdadeiramente manifesta essencialmente. Contudo, no prolongamento do livro A da Metafísica, Aristóteles segue descrevendo e congregando mais ou menos todos estes sentidos e aponta de forma gradativa ao que seria solicitado para o saber dos saberes e para uma vida bem venturosa. É em tão poucas linhas que este texto centraliza toda o assunto. A finalidade deste texto é a natureza da "sabedoria". O seu pico é a efectuação da identidade entre a natureza divina e a "sabedoria":

Com efeito, a mais divina [das ciências] é também a mais apreciável, e só em duas maneiras o pode ser: ou por ser possuída principalmente por théos, ou por ter como objecto as coisas divinas. Ora, só a nossa ciência tem estas duas prerrogativas. Théos, com efeito, parece ser, para todos, a causa e o princípio, e uma tal ciência só théos, ou théos principalmente, poderia possuí-la.[10]

A ideia de "admiração" e "ócio"

Vale a pena agora fazer um estudo sintético do capítulo a partir das ideias de "admiração" e "ócio". A admiração emerge de um verdadeiro interesse, sem que haja um pressuposto prático ou produtivo de saber o que é isto que apresenta-se à "sensação", ou por quê é. Este interesse é característico, ou seja, é o desejo activo de saber, e quem desta forma deseja, quer o saber que é mais saber, e um certo saber não é "em vista de", é "por si". E, neste caso, não se pode precisamente dizer que o objecto é divergente do próprio saber, pois a conexão saber-objecto é aqui uma conexão de identidade no ser entre aquele que conhece e o que é desejado como saber, mas isto é um desejo de o homem atingir no íntimo de si mesmo e, a partir daí, das coisas.

A partir daqui, o princípio acontece instantaneamente ao homem, fundindo-se com o que, em medida suprema, é actualmente nele. Satisfeitas, pois, as suas indispensabilidades, confidencia, no homem, a faculdade de avistar, espantar-se. Encontra-se implícito no ócio como que um emudecimento, uma silenciosa atenção de caçador na procura de uma caça potencial, que pode vir a suceder a qualquer instante. O homem, neste caso, pode disponibilizar-se para si mesmo e executar a superior de suas actividades realizáveis. Mas não somente isso torna-se provável por estar ele dotado do fundamental. Uma passagem de excelência ético-política tem de logo haver sido cursado e é isto que diz "estar dotado", e um homem apto de dotar-se é também, em certa dimensão, auto-suficiente, logo este é aquele para quem a vida não é, possível de forma máxima, uma tortura e uma apatia, mas uma actividade insistida e inalterável, de onde procede o que lhe é útil e imprescindível. Conforme porção de uma Pólis ele tem de haver guiado pelo caminho político antes de poder estar como que concluído para ter sob a vista o princípio. Tal torna viável a admiração, o primeiro trilho para theoría e vida teorética, que é a vida de théos e, cabe recordar, a "boa" vida de daímon (deus, génio, divindade), ou seja, eu-daimonía ("felicidade"). Não é complicado por outro lado, enxergar que a admiração compartilha com o "intelecto perceptivo". O ócio mostra defronte de nós o princípio e é isto que assim nos aprecia, e todo o princípio é oferecido aí, diante do olhar já acabado para ver o que é. A "ciência", sem desenvolvimento, conduzirá, a partir do instantâneo da admiração e da sensibilidade o imediato do intelecto, quer dizer, do que, visado de forma confusa pela sensação, alcança o ponto de ser conhecido pela sabedoria, todavia, desde o começo, o que se avistou foi o mesmo, de modo confuso a princípio, nitidamente em seguida. E é esteo pensamento que considera o sentido, que enxerga e avista mais que o que está sob os nossos olhos, que segue a procura da causa, do universal, quer dizer, da unidade sob a pluralidade sensível. E este saber decreta por ser independente, por ter como proveito único realizar o homem no que ele é precisamente, e, assim, não está a serviço de coisa alguma. Voltando a Ética a Nicómaco, diz Aristóteles:

Demais, esta actividade parece ser a única que é querida por si própria porque dela não se produz mais nenhuma consequência para além do próprio olhar contemplativo, enquanto a partir das actividades práticas ainda conseguimos obter um resultado melhor ou pior para além da própria acção. A felicidade parece ainda acontecer quando há tempo livre, porque nós ocupamos o tempo a trabalhar para podermos gozar de tempo livre, do mesmo modo que fazemos a guerra para poder viver em paz.[11]

Dito isto, sobre a relação entre a "actividade da alma" encarregada pela efectivação propriamente humana ("felicidade") e a outra intitulada práxis, necessitamos entender ainda em que sentido apreenderemos convenientemente a declaração segundo a qual a práxis não realiza-se unicamente "por si", mas também por outras coisas além dela mesma. Portanto, de um certo modo, ela, sendo concernente à "virtude", é um bem por si e efectua-se ou precisa efectuar-se "por si". E é por assim poder consumar-se, "por si", que ela é um trilho para o próprio. Mas o que aqui está em causa é uma divergência em correspondência à actividade própria e, como já falámos, divina. Em dois instantes do corpus, Aristóteles, ao buscar uma caracterização da "sabedoria", não dirige-se à "prudência", mas à "arte". Logo sabemos que a máxima realização da fracção da "alma" denominada "calculativa" é a "prudência". Existe afinal uma outra questão: haverá na "felicidade" alguma medida de práxis? Veremos isto no decorrer do trabalho. Quanto ao caso da "arte", tanto no livro A da Metafísica quanto na Ética a Nicómaco, Aristóteles, no intento de esclarecer a "sabedoria", dirige-se à "arte". Assim:

Atribuímos sabedoria, nas diversas perícias, aos peritos que as exercem de forma mais exímia, como é o caso de Fídias, exímio na perícia de esculpir pedra, e Policleto, exímio na perícia estatuária. Nestes casos, não pretendemos visar com o termo «sabedoria» outra coisa senão a excelência no domínio de uma perícia.[12]

O motivo pelo qual Aristóteles faz isto, deve ser porque as artes estão mais afastadas da utilidade. E nisto, provavelmente de propósito, ele dirige-se a artes ainda mais longínquas do útil. É duvidoso se o exemplo acima chega a ser válido para a estratégia, que é também uma "arte". Contudo jamais se poderá dizer que a "prudência" seja inútil, pois seu fim constantemente será a melhor vida humana provável e uma excelência suprema em viver na dominação das coisas úteis, ou seja, a vida prática ou política. Pelo menos algumas das artes podem ser inúteis, podem ser por si mesmas, e é pouco imaginável que nos possamos auxiliar da escultura para um fim prático, a não ser que apreciemos o simples prazer útil em alguma dimensão. Mesmo na "sabedoria" existe "deleite" e "prazer", o maior de todos, pois trata-se da execução do mais violento de qualquer dos desejos humanos, e cada desejo executado dirige-se a um prazer. É mais acessível comprovar a estrutura da sabedoria pela estrutura da arte. Entretanto, parece que a mais útil de todas as coisas está a ligar-se a mais inútil e, das "virtudes" a "prudência" é a mais útil; dela, outrossim, resulta todo o sentido de utilidade. Damos como exemplo a utilidade da água e do alimento. Como a água é útil ao corpo, assim como o alimento, e os dois são meios para a protecção da saúde e harmonia do corpo, o alimento que melhor pode fazer isto é o mais útil. Todavia, o que se compreende aqui por útil é aquilo pelo qual o corpo pode desfrutar da melhor maneira de seu potencial e viver em harmonia consigo mesmo. É o que compete a nós, homens, visto que não seríamos nada sem isto. Este "útil" é desta forma a necessidade mais básica à vida, aquilo sem o que ela não se resguarda e não se conserva em estabilidade consigo mesma. O "útil" é o que restitui harmonia ao que pode ser em desarmonia. E a melhor vida prática seria aquela que pudesse servir-se somente do imprescindível, sem evocar ao útil sob compulsão. A vida conforme a necessidade sentida na dimensão do contentamento mais fundamental e ponderado desta necessidade é a mais centralizada e perfeita das formas de vida permissíveis ao homem. Contudo, a própria "virtude ética" é o objecto da "prudência" e esta não existe sem aquela.

O essencial é compreendermos aqui que, aquilo para que a "prudência" pende, sendo a "virtude ética", é a própria "disposição do meio". Logo, trata-se de uma vida conforme a máxima perfeição humana e que se encaminha conforme a necessidade. Necessidade no sentido do mais extremo do útil e no sentido do que é inevitavelmente, que não é útil por não ter necessidade disto ou por não abranger em sua natureza uma alusão a algo distinto de si mesmo, ou seja, basta-se e não pode vir a bastar-se por acções perfeitas ou provimentos. E é defronte de toda esta oportunidade de não ser que a vida política concluída passa a ser uma aptidão de munir-se e de, assim, ser conforme a necessidade e o imprescindível, e a "disposição do meio" contém em si estas duas condições, ou seja, é um centro, uma perfeição e apenas o é por ser conforme o absolutamente útil e necessário, mas tem em si uma organização análoga à actividade inútil. Diversamente das artes, seria melhor aqui que não fosse indispensável a imposição de que fossemos virtuosos e o homem nobre deseja a melhor vida e a mais auto-suficiente, e exerce sua empreitada política para, poder saborear de si mesmo da melhor forma. É deste facto que a "virtude ética" unicamente é desejada por si mesma pois contém uma menção imediata ao que, de modo absoluto, é desejado por si mesmo. Auxilie para isto o exemplo da guerra, feita meramente como um portador para a paz e "paz", neste caso, é uma vida completamente atingível a si mesma e, para o homem, uma máxima realização de si mesmo. Aquele que é corajoso não deseja matar ou morrer na guerra, mas coloca em risco e sacrifica sua vida pela protecção do que possui de mais excelente, como por exemplo: o carácter pleno de seus amigos, de seu lugar, de si mesmo e do prazer de uma vida farta e plena, se ele desfruta de um carácter apropriado para possuí-la e já a possui de algum jeito, por ser nobre. Sem estas coisas a vida de nada lhe valeria; melhor seria morrer e por isto ele batalha e briga, se for necessário, mas, melhor seria que não precisasse da guerra.

Ora, a actividade das excelências práticas desenvolvem-se nos domínios da acção política ou do tratamento de assuntos de guerra. As acções levadas a cabo nestes domínios não parecem gozar de tempo livre, ou pelo menos parece ser assim em absoluto com os assuntos de guerra (porque ninguém escolhe fazer a guerra pela guerra; e alguém que pretendesse fazer dos amigos inimigos só para provocar lutas e derramar sangue teria de ser considerado um assassino absolutamente sanguinário).[13]

As actividades políticas são árduas porque, possivelmente, entre amigos, não chegassem a ser indispensáveis. Caso a vida fluísse na paz, a coragem torna-se dispensável. Aqui o homem pode desprezar a extensão da coragem ou mesmo da justiça e, logo pode desprezar a nobreza, visto que necessita estar constantemente pronto para o "mau tempo", e uma vez que sempre aconteça tempo de guerra e tempo de paz, necessitará ser nobre na guerra ou na paz. Porquanto a "justiça" é a aplicação do que é "justo" e, em certo sentido, uma consonância à lei e esta existe também, ou para estabelecer uma igualdade política, ou para restabelecê-la, seria sem intenção fazê-lo em correspondência ao que já está em igualdade e dificilmente poderia vir a transformar-se de outro modo, a forma suprema de relação entre os homens. É por todas essas coisas, enfim, que qualquer das virtudes éticas não se aplica aos deuses; eles não precisam delas, como já foi dito, e as razões são as que falamos, e a vida humana mais plena assemelha-se do princípio théos e este é a "actividade" e "actualidade". Tal, portanto, a significação da "felicidade" como actividade da alma conforme a virtude reporta-se essencialmente à mais alta "virtude". Todavia a própria "virtude ética" e, seguidamente, a "prudência" adiantam a estrutura da mais alta "virtude" e a abrangem em medida máxima possível a elas. Realizá-las, contudo, é a mais escabrosa das lutas e o caminho para a "felicidade", desta forma, terá de ser também o mais escabroso dos caminhos.

O divino e o humano

Uma outra questão surge a partir deste momento: somos, pela nossa organização humana, sempre caminhantes e buscadores. Não somos deuses. Uma vida parecida à divina originará, pois, para nós, uma certa práxis. Portanto, o que em nós pode ser de outro jeito não nos está sempre à mão. Pois se estivesse, para pouco serviriam as honras, ou mesmo para nada, tanto quanto os elogios. Isto é comprovado pelo facto de que a "felicidade" é um "fim" e envolve uma tarefa referente à "essência do homem". É o "fim" de um movimento que não o possui desde sempre de modo absoluto, e este movimento, relaciona-se com a possibilidade de não-ser, tem de ser a práxis, se considerarmos a actividade mais grandiosa relativa ao conjunto humano, do qual fazem parte a práxis e a poiésis. Por outro lado, se existe alguma coisa considerada última buscada pelo movimento da práxis, deverá ser o que nos pertence especialmente. Desde o princípio da Ética a Nicómaco o melhor do homem é encarado como algo alcançável. A actividade pertencente ao melhor não é propriamente uma procura, mas uma realização cujo objectivo é ele mesmo. Este objectivo é a essência humana, verificada em cada fazer humano, actual ou potencialmente. Todavia, a actualidade desta essência dá-se como que num descuido de momento, esquivo e fora do nosso controle. Compete ao homem reiniciar incessantemente e colocar-se à espera de algo que não apodera-se, que não está em seu domínio. O divino é o que não está em nosso domínio, e é no divino que realiza-se o que nos é próprio.

Percebe-se que tanto em Metafísica A, quanto em Ética a Nicómaco X, naquele livro tratando-se da "ciência", neste tratando-se da "virtude", é dito que a "sabedoria" liga-se directamente com o divino (théos). Ora, a "sabedoria" é uma "ciência" e uma "virtude", a saber, aquela respeitante à parte da "alma" denominada "calculativa". Contudo, a "virtude" referida com a actualidade do saber é aquela pela qual sabemos actualmente. Aquilo pelo que sabemos actualmente é o intelecto. A "sabedoria" é o intelecto transmitido pela demonstração. O saber é actual e activo pelo intelecto. O intelecto, dessa forma, é considerado um princípio activo ou causa eficiente, de acordo com o que é dito em Metafísica. Ao falar sobre a origem do movimento, Aristóteles faculta tal uso a uma espécie de "inteligência universal", que é de onde resulta o movimento de todas as coisas.

(…) Quando surgiu um homem que disse que havia na natureza, assim como nos animais, uma inteligência, causa da ordem e da harmonia do kósmos, pareceu que tal homem era incomum frente às primeiras indagações de seus predecessores. Sem dúvida, sabemos que esta solução a adotou Anaxágoras, mas se lhe antecipou, segundo se diz, Hermotimo de Clazomenes.[14]

É atribuído indirectamente ao intelecto como princípio activo, causa eficiente ou origem do movimento, nestes livros, o papel de causa do bem e do entendimento de todas as coisas. Visto que os primeiros filósofos aceitaram superficialmente a causa eficiente, alguns a conturbam, entre outras coisas, com o amor, ou com o fogo, como Hesíodo e Heráclito. Mas é acentuadamente admitido por Aristóteles, que tal princípio do bem e do entendimento da natureza e do mundo é o noûs. A causa eficiente ele confunde, como causa da ordem ou harmonia do cosmos. Isto manifesta "o bem" de todas as coisas, que é, enfim, aquilo que elas são convenientemente, e aquilo pelo que elas advêm a ser isto que são é a causa eficiente, que não pode ser diferente, que o princípio de sua actualidade: o noûs. É duvidoso, de outra maneira, se o noûs, em si mesmo, é algum movimento. Mediante ele, as coisas são actualmente, neste instante, como se, de forma misteriosa, sendo o que são, se amarrassem ao eterno. De acordo com o noûs as coisas são aquilo que são, e o que elas são em si mesmas não é um converter-se. O que o homem é precisamente ele sempre foi e será, e isto revela-se, coloca-se a mostra, surge, pelo seu princípio activo, que traz à superfície o que ele é. E théos não se torna, mas é o que é. Não se pode dizer, todavia, que não existe aqui actividade. Desse modo, parece que onde existe movimento existe também causa eficiente. Sendo esta causa eficiente o noûs, o movimento aparenta ser próximo ao noûs, mas este está desunido e não é propriamente o tornar-se das coisas, mas aquilo pelo que elas são agora numa actualidade. Ser ela mesma é o bem de cada coisa.

E não devemos seguir as exortações segundo as quais devemos enquanto Humanos ter pensamentos Humanos e enquanto mortais ter pensamentos mortais, mas tanto quanto possível devemos tentar libertar-nos da lei da morte e tudo fazer por viver de acordo com a possibilidade mais poderosa que nos acontece.[15]

Aí está a maior de todas as tarefas, ou seja, nos tornarmos o que somos, nos disponibilizarmos para tal. O que confecciona com que sejamos o que somos e para que necessitamos estar disponíveis é o noûs. Pelo noûs nos reconhecemos com o princípio máximo, a saber, o théos.

Como a "felicidade" é uma actualidade de nós mesmos, e o bem de todas as coisas dá-se quando elas são o que são, e, sendo isto o actualizar-se das mesmas, aquilo que nunca deixa de ser o que é, por ser constantemente actual, possui a maior de todas as bem-aventuranças. Permanecer sempre neste estado de vigência, ao homem, é irrealizável, mas é isto que qualifica a sua natureza própria.

Dá a impressão que todas as coisas abarcam virtualmente um mesmo noûs, ou, pelo menos, têm uma alusão analógica a ele. Entretanto, que exista no caso do homem uma identidade com o noûs divino parece ser algo aceito por Aristóteles, assim como a melhor vida possui uma identidade com a de théos. Que o homem seja o único dos seres que possa usufruir deste privilégio lança-nos noutra dificuldade, a de saber se existe um noûs que não seja divino, se todas as coisas actualizam-se pelo noûs. Talvez um simples animal efectue o que nele há de adequado sem deixar de ser apenas um animal, mas não é apenas enquanto animal que o homem pode ser um "sábio". Por poder vir a pesquisar o homem excede a si mesmo.

Aquilo que o homem pode fazer de mais próprio, transpondo as sensibilidades comuns em direcção aos princípios que comandam as coisas, terá de ser um saber que se identifica com o princípio universal. Este princípio é identificado com théos e a sua actividade dá-se pelo noûs. Para tal aspiram, em última análise, todas as coisas, também pelo princípio motor, que é também o noûs. Enquanto o homem busca-se a si mesmo ele é distinto deste princípio; enquanto acerta e efectua num instante uma autonomia de sua actividade mais própria, ele parece ser semelhante a théos. Isto pela autonomia, pela liberdade, pela inexistência de meta, e por uma espécie de superação da vida conforme o útil e a necessidade, ou em síntese, por um noûs idêntico à actividade de théos. Neste instante, o homem não viveria mais para a polis ou para os bens humanos, como é falado dos primeiros filósofos:

Por essa razão as pessoas dizem que Anaxágoras e Tales e outros deste género são sábios, mas não sensatos, quando se aperceberam de que estes desconheciam o que era bom para eles próprios; e, embora dissessem que aqueles sabiam coisas extraordinárias, espantosas, difíceis de aprender e divinas, por outro lado, de nada lhes servia perceberem de tudo isso. Na verdade, não procuraram saber qual era o bem para o Humano.[16]

É na realização de uma tal actividade que encontra-se a bem-aventurança humana, que é o encontro do homem com o seu "fim". E isto é a "felicidade" em sua forma absoluta, dificílima de ser conquistada e conservada. Foi obtida pela práxis, onde o homem pode vir a aprimorar-se e disponibilizar-se para "felicidade", que é, por sua vez, a realização do divino, e identifica-se com o que é sempre em acto e que, pois, não se torna, mas é. E é aqui, nesta identidade com o princípio divino, que atinge seu sentido mais próprio a definição: a "felicidade" é a actividade da alma conforme a virtude melhor e mais completa que é, em resumo, o termo de uma procura espinhosa do exercício actual e pleno daquilo que em nós existe de melhor, de mais próprio e divino, que, devemos dizer, não nos vem de forma fácil.



[1] EN, I, 7, 1098 a, 16-18

[2] Convite à Filosofia, p 278

[3] EN, X, 6, 1176 b1, 2-6

[4] EN, X, 7, 1177 a, 20-25

[5] EN, X, 8, 1178 a, 9-11

[6] EN, X, 8, 1178 a, 11-14

[7] Metafísica, 982 b, 2-7

[8] EN, X, 8, 1178 b, 7-20

[9] EN, X, 8, 1178 b, 20-23

[10] Metafísica, A, 2, 983 a, 4-8

[11] EN, X, 7, 1177 b, 1-6

[12] EN, VI, 7, 1041 a, 9-12

[13] EN, X, 7, 1177 b, 6-12

[14] Metafísica, I, 3, 984 b, 15-20

[15] EN, X, 7, 1177 b, 31

[16] EN, VI, 7, 1141 b, 5-8