A primeira lei orgânica do ensino superior em nosso país, o Decreto n.º 8.659 de 1911, já concedia autonomia às escolas superiores. Esse direito por um tempo foi revogado e as escolas superiores ficaram vinculadas à precedência hierárquica dos órgãos da Administração Direta. Entretanto, o Decreto n.º 19.851 de 1931, restabeleceu essa prerrogativa, mas a matéria continuava sendo regida pela espécie normativa, cuja facilidade de alteração denotava insegurança jurídica para tais instituições, pois um Decreto pode ser revogado facilmente. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a autonomia universitária adquiriu contornos gerais constitucionais nos termos do art. 207, da Carta Magna. Esse dispositivo foi devidamente regulamentado pela Lei n.º 9394/96, que trata das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais precisamente no art. 53, onde são especificados o alcance e os limites da autonomia universitária.

De outro lado, temos o contexto de reparação social (ações afirmativas) a danos causados a grupos sociais, raciais ou étnicos. Essa discussão tem amplitude internacional. O Brasil ratificou em 27.03.1968, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Tais normas integraram o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n.º 65.810/69. Esse tratado exigia do Brasil, a adoção de ações positivas de reparação social aos grupos éticos, sociais ou raciais, que sofreram ao longo do tempo, tratamento desigual, que impediu o desenvolvimento econômico, social e cultural e a respectiva integração total à sociedade circundante.

As ações afirmativas são as medidas especiais, tomadas com o objetivo de assegurar progresso adequado a certos grupos raciais, sociais ou étnicos ou indivíduos, que necessitem de proteção, e que possam ser necessárias e úteis para proporcionar a tais grupos ou indivíduos, igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais. A nossa atual Constituição no artigo 3º, listou os objetivos fundamentais do Brasil, os quais representam o arcabouço normativo que norteia todas as ações positivas do Estado para minorar as desigualdades e as garantias das raças, etnias e grupos sociais, colocados à margem do progresso e do desenvolvimento.

Diante desses dois paradigmas de grande envergadura, o Superior Tribunal de Justiça teve que resolver um litígio envolvendo uma estudante e a Universidade Federal do Paraná. Com base na autonomia universitária, fora lançado edital de processo seletivo em que foram destinadas algumas vagas para o sistema de cotas (uma ação afirmativa). A Universidade exigiu como condição para concorrer às vagas disponibilizadas, para o programa de inclusão social, ter o concorrente realizado o ensino fundamental e médio, exclusivamente em escola pública do Brasil. Ocorreu que, a primeira série do ensino fundamental cursado pela estudante, não se deu em escola classificada como pública. Tal fato motivou a universidade a indeferir a matrícula da candidata, nos termos das normas do Edital.

Não há dúvidas de que as universidades podem instituir o sistema de cotas no processo seletivos de ingresso de discentes. O que se exige é que as normas editadas para tal desiderato devam ter conteúdo objetivo, a fim de que o candidato possa se adequar da forma mais justa possível.

A norma editada pela universidade denota a autonomia razoável e proporcional, na escolha dos critérios de atribuição de vagas, para a implementação de ações afirmativas (positivas). A ausência de critérios objetivos torna ineficaz a política de inclusão, visto que, além de retirar da universidade a sua autonomia, afasta a possibilidade de estipulação de percentuais claros para a implementação da discriminação positiva pertinente.

O poder normativo do Judiciário não pode, em regra, afastar a autonomia universitária exercida nos limites da lei, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de se tornar agente normativo positivo e invadir o poder regulamentador de órgãos e entidades do Poder Executivo. Observando a autonomia específica das universidades, nos moldes do art. 53 da Lei n.º 9.394/96, não se deve desconsiderar o critério objetivo estabelecido no Edital. Caso contrário, ficaria maculada a política pública de inclusão. Certamente, não é fácil para a Administração publica escolher entre um meio que menos restringe um direito fundamental.

Portanto, decidiu o STJ que a exigência relacionada à frequência integral e exclusiva no ensino médio e fundamental públicos é um critério objetivo, razoável e proporcional escolhido pela universidade. Além disso, a possibilidade do candidato que cursou alguns meses do ensino fundamental, em escola privada, disputar vagas reservadas aos cotistas, retira a objetividade da norma e a equidade. E assim, foi mantido o indeferimento da matrícula e a exigência formulada pela universidade.

Denis Farias é advogado e professor universitário.

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