As Ações Possessórias Frente a Ocupação de Terras: reforma agrária como garantia de direito fundamental* 

Débora Crstina Bouças Bahia Silva**

Sumário: Introdução;1. Aposse e o direito à ela; 2. Garantia Constitucional X Realidade Conflitiva; 3. Reforma Agrária e MST; 4. Quando da perda da posse; Considerações finais; Referências.

Resumo

O artigo em questão se propõe a analisar as ações possessórias e a garantia de direito à terra, resguardado constitucionalmente. Como os meios de comunicação abordam as ocupações do MST, sua divulgação na mídia e o correlato interesse de seus financiadores. A reforma agrária como solução, mas divergindo da realidade. As ações possessórias e o caminho que perfazem para garantir o direito de propriedade.

Palavras-Chave

Ações possessórias; Direito à terra; Mídia; MST; Direito de propriedade.

 

Introdução

         A reforma agrária como um meio de garantir o direito de todos a uma vida digna, com igual direito de oportunidades, se debate com as grandes questões latifundiárias e ao interesse dos financiadores dos meios de comunicação, que insistem em retratar apenas uma face da realidade.

O conceito de posse e de propriedade não basta para aplicarmos as normas aos casos em questão, visto que limitar a justiça aos que detém direitos fere o direito de outros, que são relegados às beiras de estrada e tornam sua vida uma luta pelo cumprimento da carta constitucional.

Para melhor entender essa questão, aborda-se neste artigo um aspecto crítico das questões possessórias, o judiciário e o poder público não apenas visando o cumprimento da lei em vigor, mas o que deveria ser destinado a fazer: o bem comum.

*Artigo apresentado ao Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

**Aluna da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

1. A posse e o direito à ela

Estabelecido nos artigos 1.196 e 1.200 do Código Civil de 2002, o direito de posse é juridicamente garantido. Assim, sendo o possuidor ameaçado da perda da posse deverá requerer, pela ação de reintegração de posse, o direito que deverá ser protegido.

As ações possessórias compreendem quatro características básicas: duplicidade (Art. 922, CPC), fungibilidade (Art. 920, CPC), cumulatividade (Art. 921, CPC) e rito próprio. Sendo garantido constitucionalmente, o direito de propriedade é direito fundamental do homem, uma garantia primordial que dá a ele o direito de usar, fruir e gozar.

Outrossim, ultrapassando o que a lei mostra ser o direito de posse, deve-se argüir, contudo, os motivos que levam a ficar do lado oposto da questão, daqueles que ocupam ou invadem propriedades. Ressaltemos assim, primeiramente, que há diferença entre ocupação e invasão, como destaca Figueiredo:

“Na realidade, a ocupação tem se diferenciado da invasão por vários aspectos, do ponto de vista político, ético e jurídico. A ocupação tem se constituído num ato político, cujo objetivo é chamar a atenção das autoridades omissas, responsáveis pela implementação das políticas de reforma agrária definidas pelo Estado. (...) deve-se considerar que os atos de ocupação têm, inicialmente, como móvel uma situação de fato. O que determina a ocupação para a maioria das famílias é o estado de penúria e necessidade em que se encontram.” (p 459, 2000).

Torna-se necessário, desse modo, refazer o caminho e questionar quanto há de legítimo ou não em exigir o que também está constitucionalmente garantido às pessoas, a dignidade humana. Enfoquemos, por exemplo, a origem dos que integram movimentos, dos que de algum modo tomam a iniciativa que o Estado se obsta a fazer. Figueiredo completa:

“Postos às margens do processo produtivo, e minados em seus esforços para conseguirem alcançar um grau de vida próximo aos mínimos padrões de dignidade, um número significativo de pessoas tem encontrado nas ocupações coletivas de terra a forma de dar voz às suas mais elementares reivindicações. (...) quando reclamam observância aos princípios do respeito à dignidade humana, da função social da propriedade e do direito à vida” (p 451, ob cit)

Sendo o direito à propriedade um direito inerente ao homem, deve seu uso ser limitado pelo bem comum. Um dever positivo de seu proprietário, dando-lhe destino, uma função determinada. Social pressupõe desde já, coletivo, devendo haver, contudo, uma sintonia entre proprietário e interesse social. Não pode haver entre a atividade desenvolvida pelo que tem a posse e a sociedade um contraste em se tratando de utilidade. Nesse quesito, Pereira pontua, enfatizando a propriedade rural:

“A propriedade, assim, se justifica desde que cumpra sua função social: ela não é uma função social, mas tem uma (...) os deveres positivos que devem ser exercidos pelo proprietário no exercício do direito de propriedade, ou seja, a observância de determinadas condições – o interesse coletivo – no exercício do direito de propriedade.” (p 100-101, 2000)

            E conclui:

“As mesmas razões que determinam a propriedade privada como direito natural são as que determinam sua função social, porque a propriedade privada, esse direito que tem o homem considerado isoladamente como indivíduo, se justifica porque Deus deu a todos os homens a terra em benefício comum, de forma que a propriedade não deve servir somente ao indivíduo, mas à sociedade (...) quando ele se abstrai a essa idéia de bem comum, então ele não cumpre sua função social. (...) não se pode mais admitir que a propriedade imobiliária rural ainda se tenha regida pela noção civilista da propriedade” (118, ob cit)

2. Garantia Constitucional X Realidade Conflitiva          

Não se está aqui tentando discordar da idéia que a propriedade seja um direito real por excelência, vê-se apenas o fato de ser necessária e urgente a redistribuição de terras. Latifúndios improdutivos são uma constante, especialmente no território brasileiro. A reforma agrária não tem se dado, contudo, com a celeridade que necessita. Justifica-se assim a ação dos movimentos, como direito de ser livre e buscar soluções, frente a iniqüidade da lei. Hannah Arendt brilhantemente ressalta que:

“É preciso ter em conta o caráter histórico inscrito na norma limitadora da liberdade, sob o entendimento de que essa não pode significar apenas possibilidade de agir livremente, mas agir de modo isento das circunstâncias de motivos impeditivas da realização desse livre agir, inclusive aquelas ocasionadas pela falta de superação de necessidades vitais”. (Apud, Figueiredo, p 452, 453, ob cit)

                Justifica-se desse modo que o Estado não agindo de acordo com o que a Carta Magna de nosso país afirma, legitimados tornam-se os que ocupam as áreas, visto que apenas lutam por um cumprimento constitucional. Busca-se a conquista da cidadania aonde há a constante exclusão social e a não efetivação dos direitos básicos aos quais todos deveriam ter acesso.

3. Reforma Agrária e MST

A reforma agrária é urgente e legitima muitas invasões ou ocupações que acontecem diuturnamente em todo o país. Na realidade muito se fala, mas pouco há de real no que se refere à redistribuição de terras. Fernandes, abordando ensaio sobre o Movimento dos Sem-Terra no contexto da formação camponesa no Brasil, destaca que foram os movimentos sociais que por meio de sua luta retomaram essa “bandeira histórica”.

 “A reforma agrária virou metáfora para justificar uma política de atrelamento do governo com os proprietários de terra. Utilizando a idéia de reforma agrária, o governo virou comprador de terra, criando inclusive um projeto, denominado Banco da Terra, e viabilizando a compra de terras para a implantação de assentamentos rurais. Quem paga a conta é a sociedade e os grandes latifundiários e grileiros levam vantagens, transferindo seus capitais para outros setores da economia. (...) o recurso que o governo federal tem utilizado é resolver esse problema sociopolítico e econômico por meio da compra de terras ou desapropriações (...) uma política pública de assentamentos rurais desenvolvida em todo o país.” (p 70 - 71, 2000)

            É sabido ainda a proporção que a questão da desapropriação tomou, beneficiando os grandes proprietários que vêem nela a possibilidade de vender suas terras por um bom preço. “Muitas vezes não interessa ao latifundiário desfazer-se das terras ocupadas (...) Na maior parte das vezes, a desapropriação tem interesse do latifundiário. O que tem determinado essa situação é quando os sem-terra ocupam e quando a ocupação é feita por consenso com o proprietário”, arremata Fernandes. 

            É uma constante a mídia caracterizar o MST como o vilão responsável pelas ocupações conflituosas. Faz uma imagem criminalizada da ocupação, distorce fatos, planta na sociedade uma imagem negativa a respeito dessa luta pela terra. Assim, discemina um perfil previamente traçado para atingir determinados pontos e descaracteriza a luta.

4. Quando da perda da posse

            Deslocando o raciocínio para se restringir mais ao tema proposto inicialmente, há que se retratar acerca das noções de propriedade para que após possamos abordar as ações possessórias de fato.

A propriedade é um direito, como já afirmado, mas vinculado às condições econômicas de cada época. É preciso que haja, assim, uma visão mais ampla, não apenas ressaltando o direito de propriedade, mas esta como um instrumento de equilíbrio social, de garantia de uma vida plena, com requisitos essenciais básicos.

Rosalinda Pereira, ao abordar a teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de propriedade, pontua o conceito de propriedade e enfatiza a sua função social de um modo crítico.

“No Estado Moderno, que não se limita em defender a ordem, mas também se transformou em um fiscal da produção nacional, a propriedade não pode mais ser entendida no sentido de disponibilidade egoística dos bens, mas tem de acompanhar as injunções políticas e sociais. Assim, a nossa Carta atual elencou a teoria da função social da propriedade entre os direitos fundamentais, a fim de submeter o interesse individual às exigências do bem-estar comum (...) A propriedade é um direito, mas não pode mais ser considerada como o direito de usar, gozar e dispor egoisticamente, mas deve ser exercida de modo a satisfazer a sua destinação socioeconômica, sendo, sim, um direito que deve atender a função social. Logo, não merece proteção aquela propriedade que não cumpre a sua função social, ou seja, de acordo com a Carta Magna em vigor não há garantia constitucional à propriedade que descumpre sua função social.” (p. 113 – 114, 2000)

           

            Quando se tratar, por outro lado, da propriedade produtiva e que preferencialmente desempenhe sua função social, surgindo ameaça ou a perda encontra-se nas ações possessórias o meio para decidir tais conflitos.  Essas ações objetivam a manutenção da posse, quando o proprietário sofrer embaraço no exercício, mas sem perdê-la, a reintegração de posse, para reaver quando da perda, o interdicto proibitório, a defesa preventiva da posse, ante a ameaça de turbação e esbulho, a ação de dano infecto, quando da ameaça vizinha em seu território, a nunciação de obra nova, ao se tratar de embargo à obra nova, a imissão de posse, quando o que tem direito à posse adquire-a contra o detentor, buscando as definições de Caio Mário Pereira (2002).

A ação possessória visa a defesa da posse, cuja possibilidade está contida no Código de Processo Civil. Embora semelhantes, as ações de manutenção e reintegração visam momentos diferentes, visto que em uma há a ameaça, turbação, e na outra, o esbulho, devendo assim o possuidor reaver seu bem.

Assim, segundo Pereira, “o possuidor, sofrendo embaraço no exercício de sua condição, mas sem percebê-la, postula ao juiz que lhe expeça mandado de manutenção, provando a existência da posse, e a moléstia” (p. 48, 2002), acerca da manutenção da posse. E aborda por outro lado: “Aquele que é desapossado da coisa que tem, para reavê-la e restaurar a posse perdida, ação de reintegração de posse, que corresponde aos interditos recuperandae possessionis.” (p.50, ob cit).

            Nessas ações, o juiz poderá expedir liminar, as liminares possessórias, antecipando o direito antes que o processo chegue ao fim.

“A previsão de liminar nos pleitos possessórios encontra supedâneo nos artigos 924, 926 e 928, todos do CPC. Cuida-se de uma espécie de antecipação de tutela, de natureza objetiva, visto bastar a comprovação de ser a turbação ou o esbulho de “força nova”, ou seja, intentado a menos de um ano e dia. (...) a liminar possessória era a única hipótese de antecipação de tutela codificada quanto a processo de natureza cognitiva, caráter que ostentam as ações possessórias, inobstante a topologia legal e a forte carga executiva das sentenças a que dão margem.” (Mezzono, p.4, 2008)

Segundo Wambier (2003) “... a posse sempre foi, tradicionalmente, tutelada pelo direito. Por tais razões que tocam à garantia da estabilidade social, protege-se a posse pela necessidade de assegurar a tranqüilidade das relações humanas.” Até o ponto exposto podemos analisar a posse sob duas vertentes: o direito à manutenção da posse, dentre as garantias que foi dada ao homem, e o direito de se tornar possuidor, buscando que todos possam usufruir das mesmas oportunidades e direitos, o que deveria ser inerente a todo ser humano.

Considerações finais

Diante do exposto, devemos nos atentar para um olhar crítico no que tange a questão possessória. A simples abordagem jurídica a partir da posse como um direito de manutenção, na maioria dos casos, não atinge um outro tão essencial quanto o de manter algo, o de dar às pessoas igual direito de oportunidades, seja o de manter seus domínios, seja o de conquistar seu espaço.

Não há que se falar que haja Reforma Agrária em um país tradicionalmente formado por latifundiários, que quando têm suas terras destinadas à reforma, ainda assim são beneficiados injustamente. Populações vivem à beira das estradas, milhares de famílias estão hoje em assentamentos por todo o país, crianças sem escola, sem atendimento básico escolar.

Os meios de comunicação ainda massificam a imagem de “baderneiros” aos integrantes de movimentos. Veiculam notícias na mídia rotineiramente, de um modo que retrata apenas um lado da questão. Programas que abordem as duas realidades, a dos ocupantes de terras e a dos donos de fazendas, é raro, pois não condiz com os interesses dos reais patrocinadores dos espaços relativos ao quarto poder.

Um novo olhar para a questão latifundiária torna essencial, principalmente pelos que fazem e executam as leis em nosso país, pois como afirma Hannah Arendt: para o homem ser livre é preciso ter se libertado das necessidades da vida humana, visto que algumas delas impedem a realização da liberdade.”

Referências

FERNANDES, Bernardo Mançano. O MST no contexto da formação camponesa no Brasil. In: STROZAKE, Juvelino José. A questão agrária e a justiça. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000.

FIGUEIREDO, Suzana Angélica Paim. In: STROZAKE, Juvelino José. A questão agrária e a justiça. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2006.   

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Da (im) possibilidade de antecipação de tutela nos pleitos possessórios. Disponível em: http://www.ufsm.br/direito/artigos/processo-civil/ant/tut/poss/htm.  Acesso em 05/11/2008

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de propriedade. In: STROZAKE, Juvelino José. A questão agrária e a justiça. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000.

STROZAKE, Juvelino José. A questão agrária e a justiça. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000.