ART. 273 DO CÓDIGO PENAL: CRIME DE PERIGO ABSTRATO E SUA INCORPORAÇÃO AO ROL DE CRIMES HEDIONDOS[1]

Francisco Campos da Costa

Jayane Antônia Alve

Marlon Oliveira Barross[2]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[3]

Sumário: Introdução; 1 Art. 273 do Código Penal e contexto histórico; 2 Art. 273 do Código Penal como crime de perigo abstrato e Crimes Hediondos; 3 Equiparação de “cosméticos” e “saneantes” a “medicamentos”; Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

Diante do tema proposto, apresenta-se um estudo buscando defender que o crime descrito no artigo 273 do Código Penal é de perigo abstrato, e, em face disso, argumentar a excessividade de sua pena e sua incorporação ao rol dos crimes hediondos, uma vez que nem todas as condutas descritas em seu conteúdo normativo apresentam significativa periculosidade à sociedade. Além disso, pretende-se mostrar que essa excessividade se apresenta mais forte quando da equiparação de cosméticos e saneantes aos medicamentos, uma vez que tais produtos, quando modificados, apresentam níveis diferentes de ofensividade ao bem jurídico tutelado.

PALAVRAS-CHAVE

Art. 273 do Código Penal. Crimes Hediondos. Remédios. Saneantes. Cosméticos.

 

Introdução

O delito descrito no artigo 273 do Código Penal trata de criminalizar as condutas de quem falsifica, corrompe, adultera ou altera produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; e a pena destinada a essas condutas consiste na reclusão de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

Um ponto que chama atenção é o fato de que originalmente a redação do art. 273 do Código Penal não considerava cosméticos e saneantes como "produtos" com fins terapêuticos e medicinais. Contudo, a Lei nº 9.677 de 1998 promoveu essa equiparação acrescentando o §1º-A no artigo acima referido. A partir de então, qualquer tipo de modificação dos "produtos" descritos no parágrafo mencionado implica nas mesmas penas do caput.

Muito se discute sobre tal pena, uma vez que esta é considerada elevada e desproporcional. Alguns, tais como Bruno Haddad Galvão e Guilherme Rodrigues Abrão, atestam inclusive sua inconstitucionalidade, pois aparenta ferir princípios da Constituição, além daqueles que regem o Direito Penal, quais sejam, o da proporcionalidade e o da ofensividade.

Além disso, o crime descrito pelo artigo 273 do Código Penal foi incluído na Lei dos Crimes Hediondos, como forma de punir severamente quem praticasse qualquer das condutas descritas no caput e nos parágrafos. O fundamento dessa incorporação consistiu em uma tentativa de controlar a insegurança da sociedade e contornar o caos que se instalou na saúde pública com os diversos casos de falsificação medicamentosa que estavam acontecendo na década de 90.

Como forma de esclarecer tais colocações, o presente estudo busca analisar o contexto no qual a sociedade estava inserida quando ocorreram estas modificações no Direito Penal e posteriormente apresentar fundamentos que justifiquem o posicionamento de que um crime, entendido majoritariamente como de perigo abstrato, pode receber uma pena tão alta a ponto de ser enquadrado como hediondo em face da suposta lesividade que oferece aos indivíduos.

1 Art. 273 do Código Penal e contexto histórico

O artigo 273 do Código Penal trata de um crime contra a saúde pública, na qual, o sujeito passivo é a coletividade, e por conta disso, o legislador considerou punir mais severamente o(s) agente(s) que praticasse(m) qualquer das condutas mencionados no caput do referido artigo.

Vale ressaltar que essa punição mais rígida surgiu como uma resposta à mídia que passou a veicular vários casos de remédios que foram adulterados de alguma forma e acabaram resultando em conseqüências desastrosas, que variaram desde o desenvolvimento de doenças graves até casos de morte. Como exemplos desses medicamentos falsificados destacam-se as “pílulas anticoncepcionais de farinha até o antibiótico Amoxil; não pode-se esquecer do Androcur, remédio para câncer de próstata que já tinham levado a óbito diversos idosos pela sua ineficácia” (FREITAS, p. 49, 2010).

Devido ao ocorrido, surgiu um sentimento de revolta na sociedade o que resultou no apelo de que alguma medida deveria ser tomada para punir mais rigorosamente os praticantes de tal delito de forma a conter o caos que havia se instalado na saúde pública. Em resposta, o Estado recorreu ao Direto Penal para impor seu poder e controlar a situação.

Por conta dos resultados da prática do referido crime, este acabou sendo incorporado no taxativo rol dos crimes hediondos, que é todo o crime “cometido com requintes de perversidade, para o qual não há fiança nem graça ou anistia, indulto ou liberdade provisória” (GUIMARÃES, 2011).

A Lei nº 9.677 criada em 02 de julho de 1998 foi a responsável por tal incorporação, atribuindo a redação que hoje designa o art. 273 do Código Penal tal qual o inciso VII-B do §1º da Lei dos Crimes Hediondos, apresentando também o §1º-A no qual cosméticos e saneantes também passam a ser considerados produtos terapêuticos assim como os remédios.

Contudo, pelo que se observa na redação do tipo penal no Código, a pena atribuída para tal delito acaba sendo, na prática, desproporcional quando comparada com outros crimes de relevante periculosidade que também são considerados crimes hediondos. Inclusive, este é o principal fundamento que se valem aqueles que defendem a inconstitucionalidade do mencionado artigo.

2 Art. 273 do Código Penal como crime de perigo abstrato e Crimes Hediondos

A Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990, conhecida como a Lei dos Crimes Hediondos, engloba os crimes que, por conterem requintes de crueldade em sua execução, acabaram suscitando um grande sentimento de repulsa e revolta pela sociedade. Esse fato, somado ao sensacionalismo midiático, levou o legislador a atribuir uma pena mais severa para os agentes que praticassem tais condutas, reunindo-as e aferindo a todas o caráter de hediondez.

Com o crime do art. 273 do CP não foi diferente. Em face dos vários casos de falsificação de medicamentos que estavam ocorrendo, surge como resposta a Lei 9.677 que agrupa o delito no taxativo rol dos crimes hediondos, apresentando a seguinte redação na LCH:

Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados: (...) VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (artigo 273, caput e § 1º, §1º-A e §1º-B, com a redação dada pela Lei nº 9.677, de 2-7-1998).

Desta forma, o legislador imaginava ter respondido o apelo social e midiático de forma a conter o caos na saúde pública e punir os que vinham praticando tal delito. Todavia, a pena correspondente ao crime, que de acordo com o Código Penal varia de dez a quinze anos e multa, depois de uma análise mais apurada, foi considerada abusiva, visto que, em comparação com outros crimes também considerados hediondos, este representa uma periculosidade menor à coletividade.

Wandel LAURENTINO, citado em artigo de Bruno H. GALVÃO compara as penas do artigo 273 do Código Penal com as penas de alguns dos delitos mais repudiados pela sociedade, tais como:

a) - homicídio simples. (...) a pena mínima para este crime é quase a metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273; b) - roubo. (...) a pena mínima para este crime é menor que a metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273. Não bastasse, a pena máxima prevista para o crime do art. 157 é igual a mínima prevista para a do art. 273; c) - estupro. (...) a pena mínima é menor que a prevista para o crime do art. 273, e a máxima, é igual a mínima prevista para a do art. 273; d) - tráfico de drogas. (...) a pena mínima prevista para este crime, é metade a pena mínima prevista para o crime do art. 273. (LAURENTINO apud GALVÃO, 2012).

É importante verificar também que o crime em questão é defendido por grande parte da doutrina como sendo de perigo abstrato/presumido, uma vez que “basta a prática do comportamento previsto pelo tipo para que a infração reste consumada, independentemente da produção efetiva de perigo ao bem juridicamente tutelado” (GRECO, pág. 35, 2011) diferenciando-se do perigo concreto, “no qual há necessidade de se provar que o comportamento praticado criou, efetivamente, a situação de perigo ao bem jurídico” (GRECO, pág. 35, 2011).

Em relação à conduta e ao bem jurídico tutelado, a doutrina majoritária entende que o crime não apresenta efetivamente uma ofensa direta à saúde pública, uma vez que há apenas uma presunção de dano, configurando-se assim, um perigo abstrato.

Para corroborar tal entendimento, o professor Paulo QUEIROZ afirma que:

Crimes de perigo, especialmente crimes de perigo abstrato, não podem ser punidos com penas iguais ou superiores aos correlatos crimes de dano, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade. Sim, porque os crimes de perigo visam a evitar os crimes de dano; e, pois constituem uma forma de antecipação da tutela penal (QUEIROZ, 2012).

Desta forma, o que se percebe é que o legislador, preocupado em dar uma resposta à sociedade e à mídia, acabou elevando a pena do crime e submeteu o mesmo à categoria de crime hediondo, mas não tratou de analisar com mais afinco a conduta e o bem jurídico tutelado. Sem contar que no §1º-A, o legislador equipara os produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais a cosméticos e saneantes, ponto esse que merece especial atenção.

3 Equiparação de “saneantes” e “cosméticos” a “medicamentos”

Conforme consta no §1º-A do art. 273 do Código Penal, o legislador tratou de incluir entre os “produtos” que podem ser alvo de qualquer das condutas mencionadas no caput os cosméticos e os saneantes, e isso causou certo desconforto na interpretação deste dispositivo.

Para César Roberto BITENCOURT, citado em livro de Rogério GRECO, cosméticos são “produtos destinados a limpeza, conservação e maquiagem da pele” enquanto que saneantes são “produtos de limpeza em geral” (BITENCOURT apud GRECO, pág.786, 2011). Contudo, pela exegese da lei eles passam a se equivaler a remédios.

Fazer tamanha comparação passa a ser equivocada uma vez que a concepção que se tem de um remédio é de uma substância cuja finalidade precípua é de tratar ou curar enfermidades, já quando se fala em cosméticos e saneantes não se costuma associá-los a esta mesma finalidade.

Desta forma, cabe a conclusão de que modificar um cosmético ou um saneante não gera tanta ofensa à saúde pública quanto modificar um medicamento, posto que um medicamento está intimamente ligado à conservação da vida e saúde enquanto que um cosmético está relacionado ao embelezamento e o saneante à limpeza.

Diante dessas considerações se faz importante ressaltar que quem comete o referido delito se utilizando de cosméticos e/ou saneantes receberá a mesma pena disposta no caput, qual seja, reclusão de dez a quinze anos e multa.

Neste viés, pode se perceber que a pena atribuída a tal crime é exorbitante, visto que põe no mesmo patamar meros falsificadores de medicamentos, e principalmente de cosméticos e saneantes, com traficantes e homicidas. Wandel LAURENTINO também se manifesta sobre isso afirmando que:

(...) fazendo-se uma análise dos crimes acima descritos e o do art. 273 do Código Penal, percebe-se que um homicida, um assaltante (com emprego de arma de fogo) e um estuprador podem ser condenados a uma pena média de seis anos de reclusão; um traficante, a uma pena de cinco anos de reclusão; já um comerciante que traga do exterior, uma cartela de algum remédio para gripe (sem qualquer tipo de adulteração), sem o devido registro, a pena mínima imposta será de 10 anos de reclusão. Na verdade, de acordo com o art. 273 do Código Penal, o comerciante que no intuito de auferir mais lucro, altera quimicamente um frasco de xampu, será condenado a mesma pena de 10 anos de reclusão, o que se constitui num verdadeiro absurdo. (LAURENTINO apud GALVÃO, 2012).

Em observância às colocações expostas, é importante frisar que não se deseja a impunidade dos que falsificam cosméticos e saneantes, uma vez que tal conduta pode vir a representar danos a saúde, mas o que se propõe é permitir a flexibilização da pena adequando-a de acordo com o caso concreto.

Somente a análise do caso concreto tem a capacidade de proporcionar uma dosimetria da pena equivalente ao dano causado. A atitude do legislador em atribuir caráter de crime hediondo a esse delito consiste em um ato gravemente atentatório ao princípio da proporcionalidade.

Cabe a todos os Poderes aplicar a proporcionalidade, visto que este princípio é norteador de qualquer ramo do Direito. Entretanto, se o Legislativo se omite e não o cumpre, compete ao Judiciário fazer as devidas adaptações.

Conclusão

Diante dos fatos apresentados neste artigo, percebe-se que o enquadramento do artigo 273 do Código Penal como crime hediondo se deu em um momento de grande aflição na sociedade, tendo em vista o número de falsificações de produtos destinados a fins terapêuticos que passaram a ocorrer e que trouxeram conseqüências desastrosas à população. Sendo assim, o legislador, ao considerar o Direito Penal como “salvador” das mazelas que atingem a sociedade, acabou por aferir tamanha gravidade a tal ato, sem ponderar com precisão a conduta e a pena a ele atribuída.

Isso se apresenta com mais clareza quando da equiparação de cosméticos e saneantes a medicamentos, visto que a modificação dos dois primeiros não ofende tão gravemente o bem jurídico tutelado quanto a modificação deste último, mas ainda assim, os agentes que praticarem tal conduta nos diferentes objetos, sofrerão na mesma intensidade o rigor da pena. Nesse sentido observa-se um não seguimento aos princípios constitucionais e penais que regem as normas do país, uma vez que a proporcionalidade e a ofensividade não foram levadas em consideração.

Com base nestas observações, resta claro a também afronta ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal, já que este tratou de punir tão severamente um crime que apresenta uma periculosidade abstrata.

Em suma, conclui-se a falta de destreza do legislador em aplicar uma pena exorbitante à condutas que podem ser consideradas meros ilícitos administrativos, e que na verdade, cabe ao julgador aferir caráter de hediondez a cada situação quando analisadas no caso concreto.

A questão sustentada não significa impunidade, significa permitir ao órgão certo, diga-se ao Poder Judiciário, verificar cada conduta no caso concreto ponderando a lesividade que esta apresenta ao bem juridicamente tutelado no intuito de conferir uma pena correspondente ao agravo. Generalizar as atitudes dos “criminosos” em relação aos produtos descritos no §1º-A do artigo 273 do CP, não é forma mais adequada para proporcionar a justiça, pois esse gesto foge àquilo que é proposto pela Constituição, além de extrapolar os limites da intervenção penal.

 

 

REFERÊNCIAS

ABRAO, Guilherme Rodrigues. A (In) Constitucionalidade da Lei dos Remédios: Artigos 272 e 273 do Código Penal – Breve análise crítica. Disponível em: <http://www.lfg.com.br>. Acesso em 8 mai. 2012.

FREITAS, Giullia Gandra. Lei dos Remédios: a normatividade principiológica em cotejo com a regra concernente à equiparação de cosméticos e saneantes a remédios para fins de penalização de caráter hediondo. 2010. 94f. Monografia (Bacharelado em Direito) - Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, São Luís, 2010.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 5. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

GALVÃO, Bruno Haddad. Da declaração de inconstitucionalidade do art. 273, do CP ou reconhecimento da atipicidade material do fato, ante a inexistência de resultado jurídico. Disponível em: <http://www.sosconcurseiros.com.br>. Acesso em 8 mai. 2012.

QUEIROZ, Paulo de Souza. A propósito do art. 273, §1-B do Código Penal. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/a-proposito-do-art-273-%C2%A71%C2%B0-b-do-codigo-penal/>. Acesso em 8 mai. 2012.



[1] Paper destinado à disciplina de Direito Penal Especial II.

[2] Alunos do 5º Período do Curso de Direito, turno Vespertino, da UNDB.

[3] Professora, orientadora.