Este trabalho pretende oferecer um contributo às reflexões acerca da importância da proteção ao patrimônio cultural subaquático, cotejando as legislações portuguesa e brasileira à luz da Convenção da UNESCO de 2001, de modo a permitir perceber como os Estados português e brasileiro, se o fazem, veem, defendem e protegem esse patrimônio que é tão caro à humanidade, porque não renovável, porque exposto às alterações que as atividades humanas promovem no planeta e afetam os oceanos, rios e lagos; mas, também e principalmente, porque tão espoliado, já que vulnerável à ganância que prospera graças à ignorância e/ou à omissão das autoridades a quem caberia sua proteção. 

 A relevância do tema presente está no quanto desse patrimônio cultural subaquático já se perdeu irreversivelmente e que o existente, quer o já descoberto, quer o ainda por descobrir, precisa ser protegido globalmente da ação predadora dos que se dedicam à caça e à venda de tesouros, e isto só ocorrerá pela adoção e aplicação rigorosa e não defensora de interesses particulares, no mínimo, dos acordos internacionais, notadamente as Convenções aprovadas pelas Nações Unidas, e quando for rompido o casulo mítico e esotérico dentro do qual o tema é tratado e se o tornar universal desde a escola primária, uma vez que é patrimônio de todos e que a todos, desde bem cedo, deve ser dado a conhecer.

O estabelecimento das diferenças entre o que é ciência e o que é rapinagem pura e simples poderá favorecer ao legislador tomar as decisões que se harmonizem, preservem, defendam e garantam os direitos das gerações futuras de conhecerem a ancestral história da aventura humana na Terra, sobretudo pelos vestígios da cultura material que repousam sob as águas. Foi o que ocorreu em Portugal, como se pretende mostrar.

É fato que tem havido uma tentativa de universalização dos esforços pela preservação desse patrimônio. Alguns países, poucos ainda, admite-se, ratificaram ou aceitaram já a Convenção da UNESCO para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático de 2001, outros há que caminham na direção de abraçarem os termos daquele diploma; no entanto, países há, a maioria, infelizmente, que, surdos à linguagem do século XXI de respeito, preservação e cuidados para com os direitos das gerações que ainda virão, insistem em abrigar, por ignorância ou por interesses inconfessáveis, e sob a égide de uma legalidade anacrônica, os ladrões daquilo que pertence a todos os homens de todos os tempos.

Este trabalho não apresentará, propositalmente, conclusões de nenhuma natureza. Resumir-se-á à apresentação dos elementos que lhe dão alma, com a expectativa de que possam servir como lamparina a iluminar, mesmo que timidamente, outras reflexões sobre o tema, embora a defesa desde já da proteção do patrimônio cultural subaquático seja inevitável.

Sendo o Patrimônio Cultural Subaquático, por definição da Convenção de 2001, “todos os traços de existência humana tendo um caráter cultural, histórico ou arqueológico, que tenham estado parcialmente ou totalmente debaixo de água, periódica ou continuamente, durante pelo menos 100 anos (...)”, a despeito de ter ou não valor comercial. Configura-se, portanto, num recurso material limitado, não renovável e que por estas características singulares precisa estar protegido para que possa ser estudado e conhecido.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar (UNCLOS), de 1982, em dois de seus Artigos, o 149 e o 303, faz referência aos objetos de valor histórico e arqueológico, firmando a obrigatoriedade de que os Estados Partes os protejam. E foi necessário passar quase vinte anos para que houvesse um documento que desenvolvesse substantivamente os princípios e os critérios a serem seguidos e propusesse normas para a proteção desse patrimônio.

Apenas a partir de 2001, com a Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, é que passou a existir um instrumento internacional que estabelece critérios de proteção e, assim, confirma a importância desse patrimônio que, diferentemente daquele em meio seco (o entendimento corriqueiro vinha insistindo que arqueologia é só a sua parte terrestre) que, já há décadas conta com legislações nacionais de muitos países e internacional de proteção, estava entregue à própria sorte, ou azar, tamanha a indiferença com que era tratado, muitas vezes sequer reconhecidos o seu valor histórico-cultural-científico e a sua importância para a compreensão da evolução das sociedades, já que são como imagem congelada dos usos, práticas e técnicas e recursos daquele seu período.

A UNESCO estima que existam mais de três milhões de navios naufragados a descobrir. (UNESCO, s.d.(a), p.3) Conquanto isto, à medida que as tecnologias de prospecção e acesso ao fundo submerso são desenvolvidas, mais vulnerável fica esse patrimônio. Fica exposto àqueles aparatos que o poder do dinheiro dá corpo e utiliza para localizar os naufrágios com tesouros (que é só o que interessa à caça ao tesouro) em águas até então inacessíveis, enquanto a ciência, de pires na mão, quer dizer, buscando aqui e ali parcos recursos para continuar produzindo conhecimento, para levar avante o seu trabalho de registro sistemático daquele patrimônio cujo valor é exclusivamente científico-cultural.

O patrimônio cultural subaquático também
“(...) pode ser ameaçado por obras de construção que alteram as margens e os fundos, ou que alterem o fluxo das correntes, dos sedimentos ou dos poluentes. (...) pela exploração desregrada de recursos vivos e não-vivos. (...) é também ameaçado por actividades que são globalmente indesejáveis porque supõem dar proveito a poucos à custa de muitos.” (ICOMOS, 1996, p.2)

Apesar do adjetivo que a especializa, a Arqueologia Subaquática é Arqueologia. A especialidade reside no fato de os objetos de estudo estarem submersos, e isto exige que os métodos de pesquisa sejam adaptados ao novo meio. Não se constitui em uma nova ciência, nem se confunde com a tradição dos salvados marítimos ou com a pirataria moderna em todas as suas tentaculares roupagens.

Feito já o esclarecimento de que a Arqueologia Subaquática é um ramo da Arqueologia, e que “As técnicas de intervenção arqueológica adaptadas ao ambiente aquático não correspondem a uma nova ciência empírica, mas sim a um esforço específico, e em geral maior, de produção de documentação arqueológica.” (RAMBELLI, 2002, p.58), avancemos sobre o que pode trazer luz a respeito.

Dois pequenos trechos da Carta do ICOMOS oferecem outro ângulo de observação, associando Arqueologia com Ecologia Humana, ângulo tão transdisciplinar quanto transdisciplinares são as duas ciências e que corrobora a sustentabilidade de suas práticas, tão amplamente defendida, e que consiste na proteção e preservação dos direitos das gerações futuras:
“A arqueologia está relacionada com a conservação ambiental. Do ponto de vista da gestão, o patrimônio cultural subaquático é um recurso finito e não renovável. Se o patrimônio cultural subaquático é um contributo para a nossa apreciação do ambiente no futuro, então temos de assumir no presente a inerente responsabilidade individual e colectiva, de modo a assegurar a sua contínua sobrevivência.” e
“A arqueologia é uma actividade pública: todos têm o direito de buscar no passado enriquecimento para a sua própria vida, e qualquer tentativa para limitar o conhecimento do passado é uma infracção à autonomia pessoal. O património cultural e subaquático contribui para a formação de identidade e pode ser importante para o sentimento de comunidade das pessoas. (...) pode desempenhar um papel positivo na promoção de actividades de lazer e de turismo.”
e concluindo:
“A arqueologia fundamenta-se na investigação, enriquece o conhecimento da diversidade da cultura humana através dos tempos e proporciona novas idéias e perspectivas sobre a vida do passado. (...)” (ICOMOS, 1996, p.1)

Por conta disso, é absolutamente distinta, oposta e nada tem a ver com as práticas chamadas de caça ao tesouro que, ávidas apenas pelos resultados econômicos, mesmo quando travestidas de objetivos pseudocientíficos, são insustentáveis por natureza, uma vez que desfazem cenários sem nenhum outro interesse além do lucro financeiro, como a rasgar páginas do livro dos registros da vida humana que, por conta das intervenções piratas, ainda que abrigadas por questionável legalidade, não será dado a conhecer à humanidade futura. Caça ao tesouro é, portanto, predação e garimpo; nada tem a ver, por nenhuma tentativa de aproximação ou associação que se tente fazer, com a Arqueologia Subaquática, pois que são antípodas irreconciliáveis.

Àqueles que argumentam que a arqueologia subaquática exige equipamentos caros e complexos, para justificar a capacidade operacional da caça ao tesouro, segue o firmado no Libro Verde:
“Sin caer en el tópico, por otra parte falso, de que la arqueologia subacuática necesita unos médios técnicos enormemente complejos y considerablemente costosos, si que es cierto que esta actividad requiere de unas infraestructuras específicas que, por no existir en la arqueologia tradicional terrestre, deben adquirirse em algún momento.” (GOVERNO DA ESPANHA, 2009, p.25)

É de notar que em todas as referências à Arqueologia em que não se especificava a sua parte subaquática, a especialidade omitida foi de pronto desconsiderada de tudo que se referia à parte central. Seria o mesmo que ao se falar de engenharia, por exemplo, a engenharia mecânica ou qualquer outra especialidade, fosse imediatamente desprezada das considerações que respeitavam ao assunto só por não haver referências à especialidade mecânica; de modo análogo, a omissão do qualificativo não torna não-arqueologia a sua especialidade subaquática. Quando se fala em método arqueológico, portanto, não pode ficar excluída, e não se exclui, a sua parte subaquática que, via de regra, é adaptado ao da Arqueologia em terra e vice-versa, conforme o local a que se faça referência. Engenharia mecânica é engenharia e arqueologia subaquática é arqueologia.

Bastante favorecida a partir de meados do século XX, sobretudo pela invenção do equipamento SCUBA (Self Contained Underwater Breathing Apparatus) por Cousteau/Gagnan,
“Se bem que milenares, as actividades subaquáticas, fundamentalmente de índole militar ou econômica (e nestas assinalando como sub-actividade o resgate de bens perdidos por ocasião de naufrágios – a apanha de recursos naturais constituindo outra) (...)” (ALVES, 2002, p. 255),
a Arqueologia Subaquática começa a ser distinguida no mundo pela relevância dos conhecimentos que produz daquele mundo submerso e quase desconhecido e pouco acessível até então.

Diferentemente da brasileira, a Arqueologia Subaquática portuguesa é madura e goza de reconhecimento internacional, seja por conta da relevância do conjunto dos achados que efetuou, seja, hoje, pelo arcabouço legal que lhe ampara e fomenta como ciência, tal como se tentará apresentar.

O que há, talvez, de mais singular e especial no patrimônio cultural subaquático é o fato de cada sítio ser único e não renovável. Uma vez escavado o sítio arqueológico marinho sem o critério e o rigor científicos exigidos, estará perdida para sempre a informação nele contida.
E quando a única preocupação é com a obtenção de lucros financeiros, quanto mais rápido ele for obtido, maior a rentabilidade dos investidores, pois que o garimpo (caça ao tesouro é garimpo), qualquer garimpo, limita-se à recolha do que lhe interessa, pouco lhe importando a destruição ambiental do entorno, pouco lhe importando a destruição daquele cenário submerso que seria para a ciência, talvez, a prova única de um dado episódio histórico, com datas, nomes, propósitos, eventos e tudo mais que pudesse ser apurado. Para a indústria da caça ao tesouro, entretanto, time is money; só o resultado financeiro interessa. O que vai a seguir, conforme declaração do presidente de uma empresa de caça ao tesouro, fala por si:
“Estamos a falar num orçamento para três anos envolvendo milhões de contos e um elevado capital de risco. Neste processo tem de haver justo equilíbrio entre o interesse científico e as demoras na recolha.
Nós não podemos perder dinheiro e o Estado tem de garantir a conservação do patrimônio. (...) Quando encontrarmos artefactos em mau estado, não se deve perder tempo. Nessa altura temos de recolher só o que tem valor comercial. O que nos interessa são os galeões, que dos séculos XVI a XVIII transportavam pedras do Oriente e prata e ouro das Américas. Os navios que tenham valores a bordo é que nos interessam.” (SOARES, 2008)
E para que o ato teatral assuma foros de legalidade, os piratas contemporâneos (caça ao tesouro também é pirataria, mesmo que amparada pelo equívoco de alguma lei) atuam organizadamente junto ao poder estabelecido e junto à imprensa, seduzem, impressionam e pressionam, de forma a parecerem ter propósitos científicos, estarem associados e comprometidos com a verdadeira ciência, enquanto só praticam pilhagens, mutilando as evidências que poderiam trazer luz a um evento do passado.
Há uma capacidade curiosa nesses perseguidores do lucro pela caça e venda do patrimônio cultural universal subaquático: criam instituições e argumentos que não se sustentam para além do nada, mas que ecoa profundamente nos que legislam e nas autoridades conforme seus pessoais interesses.
Consta no Livro Branco,
“Na sua versão moderna e ‘civilizada’, a caça ao tesouro ‘traveste-se’ de dois atributos. O da respeitabilidade social, através de um persistente lobbying junto dos mais destacados meios da Cultura e da Comunicação, da Política, da Economia e da Finança, e mesmo das Forças Armadas. E o da respeitabilidade científica, quer através da invocação de prioritários pressupostos histórico-arqueológicos (de que um dos aspectos crônicos é a mistificação sobre a qualidade das suas obras, em que se confunde sempre Ciência e Divulgação científica com entertainment); quer ainda recorrendo à contratação de arqueólogos de serviço.” (ARQUEONÁUTICA, 1995, p.7) 

Merece destaque a seguinte nota:
“É exclusivamente num reduzido período de três séculos, concretamente entre os sécs. XVI e XVIII que se concentra a maioria das perdas de navios com cargas valiosas (leia-se tesouros).” (ALVES, 1995(b), p.2).
Firma, com toda a clareza, o quanto se arrisca a perder da multimilenar história humana submersa por causa de intervalo tão ínfimo de tempo, e tudo só por causa da ganância por riqueza material e/ou poder e reconhecimento público de uns poucos.
E exemplos de predação não faltam no Brasil, em Portugal, no mundo afora: O Nossa Senhora de Atocha, o São José e aquele caso emblemático de naufrágio ainda não identificado na Praia dos Ingleses, na Ilha de Santa Catarina, Florianópolis, em que para a maquiagem parecer perfeita, até uma ONG foi criada, a PAS - Projeto de Arqueologia Subaquática, que, é fácil verificar em http://www.ongpas.com/index.html, contratou arqueólogo não-especialista, recebe dinheiro do governo para suas “pesquisas” e celebra convênios com universidades que, inadvertidas, acabam servindo de pasto para criar e alimentar um elo entre os predadores com a ciência.

A Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático de 2001, é o primeiro instrumento internacional exclusivo dedicado ao patrimônio cultural subaquático, é, também, o resultado daquele esforço materializado já em 1982 pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, mas que pouco precisa quanto ao objeto da Convenção de 2001. Pelo padrão das medidas de proteção internacional do patrimônio cultural subaquático que prescreve, esta Convenção é uma referência mínima para as medidas pelas quais os Estados Membros nortearão as suas ações nos âmbitos administrativo, operacional e legal, não impedindo e até estimulando, que apliquem padrões mais rigorosos para a defesa desse patrimônio, não sendo, entretanto, coercitiva.
Ela é constituída de duas partes, a saber: 1- o texto principal, que apresenta os seus princípios e diretrizes; e 2- o anexo, composto por 36 artigos que contém as regras aplicáveis às intervenções subaquáticas. “Ao longo dos anos, ele se tornou um documento de referência no domínio da arqueologia subaquática e de escavações, definindo regras para uma gestão responsável do patrimônio cultural.” (UNESCO, s.d. (b)).
No seu Artigo 2º, a seguir transcrito na íntegra por sua relevância, são expressos os onze objetivos e princípios gerais, a saber:
“1. A presente Convenção tem por objetivo garantir e reforçar a proteção do patrimônio cultural subaquático.
2. Os Estados Partes cooperarão na proteção do patrimônio cultural subaquático.
3. Os Estados Partes preservarão o patrimônio cultural subaquático em benefício da humanidade em conformidade com as disposições da presente Convenção.
4. Os Estados Partes tomarão, individualmente ou, se for o caso, conjuntamente, tomar todas as medidas apropriadas, em conformidade com a presente Convenção e com o direito internacional, para proteger o patrimônio cultural subaquático, usando para esse fim os meios mais adequados à sua disposição e de acordo com as suas capacidades.
5. A preservação in situ do patrimônio cultural subaquático será considerada como a primeira opção antes de se autorizar ou iniciar qualquer atividade dirigida a este patrimônio.
6. O patrimônio cultural subaquático recuperado será depositado, conservado e gerido de uma maneira que assegure a sua preservação a longo prazo.
7. O patrimônio cultural subaquático não será objeto de exploração comercial.
8. De acordo com a prática de Estado e o direito internacional, incluindo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, nada na presente Convenção será interpretado como modificando as regras do direito internacional e a prática de Estado relativa às imunidades soberanas, nem quaisquer direitos de Estado referentes aos seus navios e aeronaves de Estado.
9. Os Estados Partes garantirão que todos os restos humanos situados em águas marítimas sejam tratados com o devido respeito.
10. O acesso responsável e não intrusivo para observar ou documentar in situ o patrimônio cultural subaquático deverá ser encorajado de modo a estimular a sensibilização do público, o gosto pelo patrimônio e a sua salvaguarda, exceto quando este acesso é incompatível com a sua proteção e gestão.
11. Nenhum ato ou atividade realizada com base na presente Convenção constituirá fundamento para reclamação, alegação ou disputa de soberania ou jurisdição nacional. (UNESCO, 2001, pp. 2 e 3)

 Pode-se dizer que até 1993 Portugal possuía um conjunto de leis até avançado em alguns aspectos no que respeitava à Arqueologia Subaquática.

O Decreto-Lei no. 416/70, por exemplo, destacou o patrimônio cultural subaquático do balaio comum dos salvados marítimos. Já no seu Preâmbulo consta:
“O aumento de frequência de achados com interesse científico (designadamente arqueológico) ou artístico no fundo do mar, ou seja sob toda a extensão das águas que, caminhando do limite interior da área de jurisdição das capitanias para o mar, se encontram fora da soberania de qualquer país estrangeiro, levou a considerar qual dos dois regimes legais aplicáveis em tais circunstâncias seria o mais adequado para os achados que, possuindo aquele interesse, fossem de proprietário desconhecido.(...) Entendeu-se que nos achados de interesse científico (designadamente arqueológico) ou artístico o Estado está interessado nos objectos, e não no seu valor mercantil. (...) há que evitar a venda em hasta pública, sem prejudicar tão-pouco os direitos do achador.
(...) Em alguns casos, interessará, porém, ao Estado não permitir que uma recuperação precipitada prejudique o valor do que foi encontrado. Previu-se assim que o Estado possa fàcilmente chamar a si o contrôle directo dessa recuperação.(...).” (GOVERNO DE PORTUGAL, 1970, p.1150)

Enquanto tantos outros diplomas omitem-se quanto à parte subaquática da arqueologia, este Decreto-Lei 416/70 caminhou em direção oposta, firmando com todas as letras sua inequívoca pretensão.
Outros dois instrumentos legais, o Decreto-Lei 577/76 e a Lei 13/85 vieram complementar aquele diploma de 1970, colocando Portugal a caminhar na direção que seguia a Arqueologia internacional, contemplando já na época da Lei o princípio amplamente consagrado da arqueologia preventiva, que se baseia “na evidência de que é mais eficaz e barato tratar antes e acompanhar durante, do que tentar salvar depois.” (ARQUEONÁUTICA, 1995, p.13).
Mas o pior estava por vir.
“O Decreto-Lei 289/93 de 21 de Agosto que veio privilegiar, na exploração do patrimônio arqueológico subaquático, as iniciativas de carácter lucrativo, teve simultaneamente como corolário a desactivação de todas as iniciativas com exclusivos pressupostos científicos-culturais e patrimoniais. A começar por aquelas que, assentes na colaboração entre o Museu Nacional de Arqueologia e o IPPC/IPPAR, garantiram ao longo de mais de uma década uma efectiva e credível actuação oficial nesta área do patrimônio, como as outras entidades, públicas ou privadas, com idênticas exclusivas finalidades científico patrimoniais e não lucrativas, assentes justamente numa importante componente de trabalho amador voluntário, como é o caso da ARQUEONÁUTICA ou do Museu de Peniche, que assim viram inviabilizadas todas as suas iniciativas (...)” (ALVES, 1995(b), p.2)

Foi, de fato, um grande e duro golpe que se deu “através de uma teia primorosamente tecida de desinformação pública, de arrogância e autismo oficial, de novo-riquismo neoliberal e de manipulação palaciana (...)” (ALVES, 1995(b)), golpe nos esforços e no “(...) protagonismo das raras entidades em Portugal que nos últimos quinze anos, contra ventos e marés, lançaram pioneiramente as bases de uma atuacção credível neste domínio.” (ALVES, loc.Cit); nas conquistas alcançadas e que ensejavam outro futuro àquele patrimônio cultural que repousava sob as águas portuguesas. Mas não há moeda com uma só face.

A materialização do poder de influência dos piratas modernos no referido Decreto- Lei 289/93, mobilizou a comunidade arqueológica portuguesa e da força de aglutinação posta em jogo resultou, pela Arqueonáutica – Centro de Estudos, a publicação do Livro Branco – Arqueologia ou Caça ao Tesouro?, documento amplo, profundo e impactante, que fez desmoronar o feudo que tentaram construir em torno do patrimônio cultural subaquático português. E fez mais o Livro Branco: inspirou fortemente a causa da arqueologia subaquática brasileira, sendo, além de fonte, a base estrutural do Livro Amarelo, conforme reconhecem seus autores.

Por fim, em 27 de junho de 1997, o Decreto-Lei 164/97, de forma clara e objetiva, colocando novamente Portugal em harmonia com o pensamento preservacionista internacional, eliminou todas as formas de exploração comercial do patrimônio subaquático português, que, no seu Artigo 1º., define como: “(...) todos os bens móveis ou imóveis e zonas envolventes, testemunhos de uma presença humana, possuidores de valor histórico, artístico e científico, situados, inteiramente ou em parte, em meio subaquático encharcado ou húmido (...)”. Já no Preâmbulo é enfático:
“Toda a actividade arqueológica realizada em meio subaquático é reconduzida à condição de empreendimento estritamente científico e são impedidas as práticas destrutivas ou intrusivas que possam danificar bens culturais subaquáticos e respectivas zonas envolventes. (...)” (GOVERNO DE PORTUGAL, 1997, p. 3140)
Portugal foi dos primeiros países que abraçou a Convenção da UNESCO, ratificando-a em 21 de setembro de 2006.

Embora a Constituição promulgada em 1988, no seu artigo 216 declare:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (...)”
nenhuma referência explícita há, como se depreende, ao patrimônio subaquático, o que, talvez, dá causa e alimenta a imerecida indiferença com que o tema é contemplado pelo pequeno conjunto de leis que o refere. Mas insistimos que Arqueologia Subaquática é Arqueologia e, por isso, os termos legais quando omitem a especialidade subaquática não excluem do alcance legal essa parte especializada, o que torna desnecessária a qualificação, exceto se se referir a algo bem específico que faça referência inequívoca a uma das partes.

Importa ressaltar que quando mencionado no diploma referido, o patrimônio cultural subaquático é rebaixado à condição de mera coisa, algo menor e sem significado, o que vai coincidindo com a visão oficial a respeito, não obstante o empenho e o esforço de alguns poucos idealistas abnegados que trabalham para mudar esse quadro.

Dois fatos saltaram aos olhos ao ser iniciado este estudo: 1- o hiato que há entre o Estado brasileiro e a arqueologia subaquática, seja por ignorância, seja por desinteresse puro e simples pela preservação do patrimônio cultural subaquático, ou por interesses outros, e 2- o quanto a Arqueologia Subaquática brasileira, incipiente ainda, reconhece-se, busca aprender, e aprende, com as práticas portuguesas, um outro elo da reconhecida e histórica irmandade das duas nações.

Quando se trata do Brasil, entretanto, não podem ser desprezadas as dimensões continentais que o caracterizam e dão causa às diferenças e peculiaridades geográficas e culturais, tudo se somando e contribuindo para o desfavorecimento com que é visto e tratado o patrimônio subaquático, posto que desconhecido.
“Com um litoral que se estende por mais de 8.500 Km, palco de milhares de naufrágios em quase 500 anos de história trágico-marítima, com águas interiores que representam uma das maiores redes fluviais do mundo, temos uma certeza: o Brasil desconhece os bens culturais submersos em suas águas.” (RAMBELLI, s.d.)

Outro elemento que merece ser destacado em se tratando da legislação sobre o patrimônio cultural subaquático é o fato de a Marinha do Brasil, isoladamente, (e não um órgão ligado à Arqueologia ou à preservação do patrimônio, ou mesmo um consórcio da Força Armada e o órgão científico), ser a responsável pela autorização para pesquisa/exploração do patrimônio subaquático.

Se a exclusividade da Marinha justifica-se quando se trata da legítima recuperação dos salvados do mar por seus proprietários ou representantes, salvados sem nenhum valor cultural, frise-se, já que excluídas aquelas características elencadas pela Convenção de 2001, não se admite que prevaleça o monopólio quando o objeto da exploração em jogo é o patrimônio cultural, uma vez que só a ciência arqueológica possui os elementos para analisar se uma tal metodologia é adequada ou não àquela intervenção pretendida, de modo que possam ser resguardados todos os princípios norteadores da Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Subaquático, notadamente os que garantem os direitos das próximas gerações de conhecer aquele dado conjunto que se pretende explorar. Os deveres constitucionais da Marinha são bem outros.

Só esta pequena alteração administrativa já funcionaria como elemento inibidor das práticas de caça ao tesouro, uma vez que os interesses pseudocientíficos que utilizam não surtiriam o efeito desejado, posto que já conhecidos e sabidos como falsos pelos arqueólogos subaquáticos de fora da “irmandade”.

Assim como a legislação portuguesa foi influenciada e modificada pelo Livro Branco que, qual um gladiador armado com a grandeza e a justiça da sua causa, em 1995 se apresentava à luta contra a sorrateira mas legal permissão à caça ao tesouro, ele, o Livro Branco, também teve seus efeitos no outro hemisfério, como já referido; foi a fonte e a inspiração para o Livro Amarelo brasileiro, e foi a sua base fulcral.

Segundo seus autores, “(...) trata-se de um documento explicativo sobre a temática que envolve o patrimônio cultural subaquático (...) tendo sua maior inspiração no ‘Livro Branco’ (...)” À semelhança do primeiro, o Livro Amarelo teve o papel de arauto a denunciar os termos de uma lei promulgada durante o silêncio parlamentar, entre as festas de Natal e de Ano Novo, e que, na contramão das aspirações do século que se iniciava. Esta Lei, a 10.166 de 27 de dezembro de 2000, além de não considerar o pensamento da Sociedade de Arqueologia Brasileira, ainda atropelou a legislação vigente sobre o tema, de certo para atender inconfessáveis interesses dos grupos da caça ao tesouro, os vendilhões do patrimônio cultural subaquático.

“A idéia de que a caça ao tesouro é a única maneira de obter a compensação dos investimentos necessários para a pesquisa arqueológica e para a proteção do patrimônio subaquático, além de ser falsa, representa, sobretudo, uma vontade deliberada do Estado em abster-se das suas obrigações nesta área; de atenuar, aqui, justamente, as reais possibilidades de obter financiamentos alternativos (na linha da atenção e do incentivo) que, em alguma parte, poderiam ser concedidos oficialmente a patrocinadores. Não vale perguntar o porquê. As razões são óbvias, mas inconfessáveis.
Contudo, cabe esclarecer que, a Arqueologia Subaquática não merece do Estado mais do que qualquer outra área do Patrimônio, da Cultura ou do Saber. Nem mais, nem menos.” (CEANS, 2004, pp. 8 e 9)

E há mais:

“Ainda, do ponto de vista do Direito Internacional, a nova Lei nos colocou literalmente na contramão do mundo, pois contraria princípios, há muito consagrados e recomendados internacionalmente, como a Carta Internacional do ICOMOS (International Council of Monuments and Sites) sobre proteção e gestão do patrimônio cultural subaquático (Sofia, 1996) e, mais recentemente, a Convenção da UNESCO para a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (adotada em novembro de 2001). Curiosamente, também não se inspirou em qualquer legislação específica de países em que a atuação no âmbito da Arqueologia e do patrimônio subaquáticos seja tradição corrente. Da mesma forma como não foram atendidas às recomendações de arqueólogos brasileiros e da Sociedade de Arqueologia Brasileira, também foram ignoradas, pura e simplesmente, todas as personalidades e entidades credenciadas à escala internacional para falar de Arqueologia Subaquática em termos científicos, acadêmicos e institucionais.” (CEANS, s.d.)

O Brasil, por razões que não se justificam, mas que se apóiam, talvez, na insipiência estatal acerca da importância da sua Arqueologia Subaquática, não é signatário da Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático. Infelizmente.

Os tempos atuais impõem uma nova maneira de lidar com os recursos, pois que já se tem a consciência de que são finitos e esgotáveis, sejam os naturais, os culturais, os de toda ordem.
Se fosse apenas a compreensão de que precisam ser cuidados por serem finitos, nisto nem haveria mérito, porque só outra roupagem do milenar e antropocêntrico egoísmo. O que há de novo e muito positivo na forma de lidar e compreender as facetas da vida humana é a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável, apresentado pelo Relatório Bruntdland, O Nosso Futuro Comum, que, em 1987, celebrou os direitos das gerações futuras como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”, sejam as materiais, as intelectuais e as espirituais; e que vai prevalecendo como tônica deste século XXI, em que pesem o modismo exacerbado e a nossa crítica à necessidade de algum tipo de desenvolvimento.

No âmbito do nosso tema, os países que ainda não fizeram a sua opção política pela gestão sustentável de seus recursos, que surdos aos clamores do novo século insistem nas velhas práticas do compadrio e dos conchavos confidenciais que só cuidam dos interesses pessoais e imediatos dos atores que representam o poder, arriscam-se à conivência por ação ou omissão, pouco importa, com as práticas predadoras do patrimônio cultural subaquático, negam o direito antecipadamente reconhecido das gerações seguintes à presente de acederem aos bens e às informações.

Portugal e Brasil são exemplos opostos, como se tentou mostrar ao longo deste trabalho, na proteção ao patrimônio cultural que jaz sob as suas águas. Aquele privilegia a ciência, o conhecimento e os direitos das gerações vindouras, repudiando a caça ao tesouro; o segundo ainda engatinha na direção do zelo para com o patrimônio cultural submerso em suas águas, mas com suas portas escancaradas aos piratas atuais, não obstante o empenho da classe dos arqueólogos para mudar a posição oficial.

O bom mestre acaba inspirando o aluno devotado. Que não seja aqui uma exceção à regra, e que o Brasil, seguindo os passos de Portugal, caminhe na direção dos anseios internacionais acerca da proteção do patrimônio cultural subaquático.

Como última consideração, apontam-se os trâmites burocráticos como os responsáveis pela, ainda, baixa adesão à Convenção pelos países. Tornar-se aderente implica em ajustes no corpo da lei nacional, o que se traduz por infindáveis negociações internas, trabalhos de convencimento e conscientização da importância daquele passo; e envolve custos também. Mesmo Portugal sendo dos países que mais trabalhou para que a Convenção se materializasse, e foi dos primeiros a aderir, demorou cinco anos para cumprir todos os ritos e efetivar-se como Estado Membro.
E por conta do peso das minúcias burocráticas, o campo de luta da caça ao tesouro contra a arqueologia subaquática será, agora e para o futuro, cada vez mais, o da influência política.


Bibliografia
ALVES, Francisco J. S. A nova legislação sobre o património cultural subaquático português. Arquivo .pdf. Lisboa, 1995(a).
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