INTRÓITO

Perlustrando a legislação vigente, encontraremos várias normas que aventam sobre o uso regular e da quantidade de ruídos e sons para a convivência profícua do ambiente, desde a Constituição Federal até leis municipais nos seus códigos de posturas.
A garantia ao sossego alheio está intimamente ligada ao direito de vizinhança, e ainda, a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Sendo assim, buscando afiançar o direito ao sossego, quis o legislador tornar como contravenção penal a causa de qualquer ação que vise turbá-lo, seja com pena de prisão simples ou multa.
Podemos conceituar as contravenções penais como sendo qualquer transgressão considerada de menor potencial ofensivo, prevista em legislação própria.
Destarte, procuraremos neste ensaio traçar uma análise minudente da contravenção de prevista no artigo 42 da Lei de Contravenções Penais - Decreto-lei 3.688 de 3 de outubro de 1941, por ser esta conduta muito debatida nos dias atuais, apesar de a considerarmos dispensável.

A CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DO TRABALHO OU DO SOSSEGO ALHEIOS ? ARTIGO 42 DA LCP

Dispõe o artigo 42 da Lei de Contravenções Penais:

Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I ? com gritaria ou algazarra;
II ? exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III ? abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV ? provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:
Pena ? prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Hodiernamente, com a evolução tecnológica ou mesmo com o agrupamento de pessoas em comemorações, quase sempre, há indivíduos que se sentem perturbados, seja no seu trabalho ou até mesmo durante seu repouso no regaço acolhedor do seu lar, com barulhos ensurdecedores advindos de gritarias, algazarras, instrumentos sonoros ou animais.
A contravenção penal do artigo 42, ainda aplicada na legislação penal, visa garantir o sossego e o trabalho alheios, não podendo alguém, mediante qualquer pretexto ou utilizando-se de artifícios vis, causar o fim da serenidade.
Leciona Paulo Lúcio Nogueira sobre o ilícito em comento que:

Todos nós temos a liberdade de viver, segundo nossa concepção e desde que não prejudiquemos o direito de outrem. Não há liberdade absoluta, ilimitada, mas condicionada para quem vive em sociedade. Ninguém pode fazer o que bem entende, havendo restrições à conduta humana. Mesmo no exercício de qualquer atividade, ainda que legítima, não pode haver um direito absoluto, pois todo abuso que venha a perturbar o trabalho ou sossego alheios deve ser reprimido na forma da lei (NOGUEIRA, 1993, p. 140).

No entanto, há doutrinadores que entendem que a contravenção indicada no artigo 42 da LCP é desnecessária, por ser um excessivo tipo penal incriminador. Interpretação da qual anuímos. Ademais, a intranquilidade causada por instrumentos sonoros, gritarias ou mesmo o exercício de profissão ruidosa estabelece infração aos deveres de vizinhança que deve ser tratada por outros ramos do direito.
Mesmo assim, vigorando o ilícito penal em nossa legislação, traçaremos abaixo suas características, bem como dados e arestos que consideramos fundamentais.
Em consulta ao sítio eletrônico da Polícia Civil do Estado do Amapá, deparamos com um notável relatório das ocorrências por diversos ilícitos entre os anos de 2007 ao 1º semestre de 2009 na capital Macapá, e, dentre estes, encontra-se a contravenção penal em apreciação; o percentual de casos é surpreende. Vejamos!
No período apontado, foi realizado o total de 23448 ocorrências policiais envolvendo distintos ilícitos penais; deste total, foram efetivados 1343 eventos sobre a contravenção penal do artigo 42 da LCP, atingindo o percentual espantoso de 5,7% (cinco vírgula sete por cento), ocupando o generoso 7º lugar de todos os ilícitos listados.
O sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa e quanto ao sujeito passivo, deverá, obrigatoriamente, ser a coletividade. O elemento subjetivo é o dolo, consistente na livre vontade e consciente de perturbar o sossego ou o trabalho alheios; não punindo a modalidade culposa. O objeto jurídico a ser tutelado é a paz pública; já o objeto material é o trabalho ou o sossego alheio.
A pena prevista é de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. Por ser uma infração de menor potencial ofensivo, aplica-se às contravenções penais a Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995; permitindo a transação penal, elegendo um procedimento sumaríssimo para cotejar a culpa.
Segundo Guilherme de Souza Nucci a contravenção penal sub examinem, assim se classifica: a) infração comum, por ser cometida por qualquer pessoa; b) material, exigindo para sua caracterização a efetiva perda de tranquilidade; c) de forma vinculada, haja vista que seu cometimento somente se dará pelos incisos do dispositivo; d) comissiva; e) instantânea; f) unissubjetiva, podendo ser cometido por uma só pessoa; e g) plurissubsistente, cometida por mais de um ato.
Muito embora a conduta ilegítima for unissubjetiva e material, para que seja aclarado à efetivação do cometimento, se tem exigido que a coletividade seja frontalmente atingida, ou seja, diversos indivíduos sejam alcançados pela perturbação.
À propósito, observemos a seguinte ponderação acerca da matéria:

Cabe considerar, inicialmente, que o simples fato de alguém, por qualquer motivo ou capricho, ou ainda ser portador de qualquer irritabilidade, se sentir perturbado em seu trabalho ou em sua tranqüilidade por fatos sem importância, pensamos, não ocorrer a figura em estudo. Necessário, pois, que a perturbação seja analisada, devidamente considerados os seus elementos em concreto, para que se caracterize a figura aqui estudada. (FIDA, 1974, p. 65)

Nesse diapasão, trazemos a precisa lição da lavra do magistrado Teófilo Rodrigues Caetano Neto do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que, consoante contextos acima abalizados entendeu por bem, conceder a ordem para o trancamento de ação penal por ausência de justa causa, in verbis:

Ante sua destinação, a contravenção de perturbação ao trabalho ou sossego alheios somente se aperfeiçoa se alcança indistintamente a coletividade, entendida esta como determinada comunidade integrante de um grupo enliçado por um liame de fato. Ainda que o ocorrido tenha sido apto a macular a tranqüilidade, a paz ou o sossego de uma única ou, mesmo, de duas pessoas, não enseja sua qualificação, pois não se implementara o fato que, impregnado na gênese da sua tipificação, ensejara seu enquadramento como ilícito contravencional. E isso porque, se apenas um ou alguns indivíduos isolados se sentiram ofendidos em seu sossego, o fato não fora apto a afetar a sensibilidade própria do homem médio e macular a paz do corpo social em cujo seio se verificara. Conseqüentemente, não se destinando a norma a tutelar suscetibilidades impregnadas na epiderme, intolerâncias não resolvidas ou irritabilidades crônicas, não pode ser enquadrado na emolduração legal, preservando-se, assim, sua destinação originária, que é resguardar a paz pública. (TJDF ? HC 2006.01.6.000703-0, publicado em 29/08/2006).

Sobre o inciso IV que trata da perturbação provocada por barulhos de animais, confira-se o seguinte aresto que negou provimento ao recurso e manteve a mantendo a sentença condenatória:

PERTURBAÇÃO DE SOSSEGO ALHEIO. ARTIGO 42, INC. IV, DO DL. 3.688/41. EXISTÊNCIA E AUTORIA DEMONSTRADAS. PRELIMINAR DE NULIDADE REJEITADA. TESE DA ATIPICIDADE DA CONDUTA AFASTADA. CONDENAÇÃO MANTIDA. Acusado que não toma providências para evitar que seus cães latissem constantemente, perturbando o sossego dos moradores de edifício vizinho, pratica a contravenção em comento, que não exige dolo específico, bastando a omissão voluntária hábil a perturbar o sossego alheios, independentemente do ânimo que moveu o agente. Relevância jurídica da conduta, que perturbou, de modo significativo, a coletividade dos moradores do prédio, que chegaram a firmar abaixo assinado visando providências da autoridade policial. Rejeitada a preliminar de nulidade da sentença, que condenou o réu pelo delito previsto no inciso III, em detrimento do inciso IV, do artigo 42 da LCP, visto que o erro material não trouxe prejuízo à defesa do réu, que se defendeu do fato descrito na denúncia. Negaram provimento ao recurso. (TJRS - Recurso Crime Nº 71002118081, Relatora: Juíza Cristina Pereira Gonzales, Julgado em 22/06/2009).

Destarte, os tribunais superiores têm entendido que não basta a simples perturbação, de forma particular, para caracterização do crime, devendo ser atingido à coletividade (STF - HC 85.032-RJ, Ministro Relator Gilmar Mendes, publicado em 10.06.2005). Nesta ocasião, o eminente Ministro Gilmar Mendes concedeu ordem de trancamento da ação penal por constatar que não há justa causa, pois ruídos praticados de forma individualmente "não têm o condão de macular a paz social".

CONCLUSÃO

Diante dos argumentos alinhados infere-se que por não haver direitos absolutos na vida em sociedade deve cada indivíduo, em sua sensatez, prevenir para que não perturbe o sossego ou o trabalho alheios. A tranquilidade tutelada no artigo 42 da LCP é a da coletividade, não existindo a contravenção quando o fato atinge uma única pessoa, conforme decidido pelo Pretório Excelso.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 14.11.2010.
BRASIL. Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del3688.htm. Acesso em 14.11.2010.
BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L9099.htm. Acesso em 14.11.2010.
FIDA, Orlando; GUIMARÃES, Carlos A. M.; BIASOLI, Ângelo. Comentários à Lei das Contravenções Penais. São Paulo: Livraria Editora Universitária de Direito, 1974.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Contravenções penais controvertidas, 5. ed. São Paulo: Leud, 1993.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
Polícia Civil do Estado do Amapá. Relatório estatístico das ocorrências de perturbação do sossego na capital do Estado. Disponível em: http://www.policiacivil.ap.gov.br/documentos/Relatorioperturbacao.pdf. Acesso em 14.11.2010.
Supremo Tribunal Federal - http://www.stf.jus.br.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios ? http://www.tjdft.jus.br.
Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul ? http://www.tjrs.jus.br.