APONTAMENTOS SOBRE A AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA FACE O TESTAMENTO VITAL E O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA[1]

Amanda Mota Alves

Letícia Cristina Sousa Ferreira[2]

 

Sumário: Introdução; 1 A constitucionalização do Direito Privado: reflexos na autonomia da vontade privada; 2 Ponderações sobre o testamento vital e sua inclusão no ordenamento jurídico; 3 A inovação jurídica do testamento vital como garantia de autonomia da vontade privada em face dos direitos fundamentais à vida e à dignidade humana; Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

O presente paper tem como escopo a análise do testamento vital no Ordenamento Jurídico Brasileiro, bem como sua aceitação por parte da sociedade e as inúmeras polêmicas que o circundam devido a prática da ortotanásia. Analisaremos as questões envolvidas, principalmente o principal argumento que envolve os que defendem tal prática: o direito de morrer com dignidade. Nosso objetivo é analisar juridicamente essa possibilidade, em face do direito fundamental á vida, inserido no contexto do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Testamento vital; direito fundamental à saúde; dignidade humana; autonomia privada.

 

INTRODUÇÃO

No presente paper abordaremos o chamado testamento vital, tema bastante polêmico no direito civil, e que tem ensejando muitas discussões, principalmente no que diz respeito à autonomia da vontade privada versus o direito fundamental à vida. Há entre os estudiosos verdadeiros debates, pois muitos acreditam que tal prática feri princípios constitucionais como os de dignidade da pessoa humana, e o direito fundamental à vida, e o Estado pode interferir na autonomia da vontade para garantir que esse direitos restem preservados. 

Esse assunto enseja várias discussões também, pelo fato de que na nossa sociedade, falar em morte ou na possibilidade dela ainda é um tabu, algo que ninguém pensa a respeito, inclusive prefere não pensar, como se a vida fosse, do ponto de vista biológico, não ter fim. Enquanto isso nas UTIs, o que se vê são muitas pessoas se agonizam nos leitos dos hospitais, com mínimas chances de cura, e sofrendo devido a intensos e dolorosos tratamentos que só prolongam o dia de sua morte. Baseado nessa triste realidade, é que alguns autores e profissionais da área da saúde e da área jurídica afirmam que estes doentes que não tem mais chance de cura, não deveriam ser submetidos à tratamentos que lhes cause dor, pois os mesmos tem o direito de “morrer com dignidade”. Este direito é procedimentado pela prática da ortotanásia, que nada mais é que a suspensão desses tratamentos que prolongam o sofrimento dessas pessoas até a provável morte.

Diante do exposto, considerando oportuno o debate, é que iremos investigar através de uma inicial reflexão sobre o tema e as questões que o envolvem do ponto de vista jurídico, vinculando-o ao direito fundamental à vida e ao testamento vital.

1      A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: REFLEXOS NA AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA

Para que possamos dar azo ao assunto principal sobre o testamento vital e autonomia da vontade privada, primeiramente vamos conceitua-la e encontrar seu posicionamento dentro do Direito Privado, e como esta ficou a partir da constitucionalização deste. A autonomia da vontade é um dos princípios basilares do Direito Civil, ramo do direito privado que destina-se a reger relações familiares, como as testamentárias, as patrimoniais e obrigacionais entre os indivíduos membros da sociedade. Segundo Maria Helena Diniz, a autonomia da vontade é o reconhecimento de que a capacidade jurídica da pessoa humana lhe confere o poder de praticar ou abster-se de certos atos, conforme sua vontade. (DINIZ, 2011, pg. 61). Assim, sendo, entende-se que a autonomia da vontade é o poder que os indivíduos têm de, conforme sua vontade, escolher de qual relação participar, se quer ou não participar de tais relações, assim, partindo dos ensinamentos de Luigi  Ferri, constata-se que a autonomia da vontade possui uma conotação subjetiva ou psicológica, na medida em que representa o querer interno do sujeito de direitos, ou seja, a sua real vontade. (FERRI, 1969).

 A autonomia da vontade passou por algumas transformações, até por fim, através do Estado Democrático de direito e a constitucionalização do Direito Privado, adquirir o conceito que traçamos nos dias atuais. Por volta do século XVII a XIX, durante o regime absolutista, o Estado deveria abster-se de participar ativamente das relações entre particulares, para assim, garantir a liberdade negocial. O homem era um sujeito livre, e responsável por si e por seus atos. A respeito desse período, Gustavo Tepedino nos ensina:

 “O direito privado, tratava de regular do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direitos, notadamente o contratante e o proprietário, os quais por sua vez, a nada aspiram senão o aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições e entraves legais.” (TEPEDINO, 1999,  p. 2)

Fica nítido, portanto que a autonomia de vontade nem sempre foi, como assim conhecemos na atualidade, antes, porém, passou por algumas transformações, uma vez que, esta era tida como ampla e absoluta, sem nenhuma intervenção Estatal. Com o passar do tempo, foi-se deixando de lado a influência do liberalismo do século XIX (presente no Código de 1916) em que a autonomia da vontade era absoluta, em conjunto com a liberdade individual, e através da Constituição Federal, passou se a considerar a manifestação de vontade como um instrumento jurídico mais social, que estava submetido às normas cogentes. Sobre isso leciona Caio Mário: “Na hermenêutica do Novo Código Civil, destacam-se hoje os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, os quais se impõem às relações interprivadas, aos interesses particulares, de modo a fazer prevalecer uma verdadeira ‘Constitucionalização’ do Direito Privado.” (PEREIRA, 2009, pg. 18).

Podemos perceber, que houve grandes mudanças na legislação civil, em consonância com a ordem constitucional vigente, e que essas mudanças refletiram na autonomia da vontade, que passa a ser considerada em conformidade com os princípios constitucionais e direitos fundamentais, como o direito à vida, à saúde, à educação. Assim o Estado assume uma posição intervencionista, ante as relações particulares, com objetivo de preservar os interesses sociais, retirando da autonomia da vontade o caráter absoluto, pois agora, o Estado pode intervir, tutelando os princípios e direitos constitucionalmente resguardados.

É daí que surge o chamado dirigismo contratual, onde o Estado pode intervém nas relações, com objetivo de manter a ordem publica e garantir o interesse coletivo, e assim o Estado Liberal de Direito dá lugar ao Estado Social de Direito. Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior:

“ Por meio das leis de ordem pública, o legislador desvia o contrato de seu leito natural dentro das normas comuns dispositivas, para conduzi-lo ao comando daquilo que a moderna doutrina chama de ‘dirigismo contratual’, onde as imposições e vedações são categóricas, não admitindo possam as partes revogá-las ou modificá-las”( THEODORO JÚNIOR, 2001, pg.17).

Destarte, podemos citar alguns dispositivos do Novo Código Civil que atendem aos princípios e direitos fundamentais, demonstrando essa constitucionalização do direito privado como a função social do contrato como limite à autonomia privada (art. 421), a função social a ser desempenhada pela propriedade, (art. 1.228, parágrafo único), e a boa fé objetiva a ser observada pelas partes na contratação (art. 422). Tais dispositivos são de conteúdo principiológico, ou seja, sua função é regular a manifestação da vontade particular, para que não fique ao bel prazer do individuo, conferindo poderes ao Estado, que através do Poder Judiciário, pode intervir nas relações privadas, com o objetivo de tão somente adequá-las aos ditames legais. Daí surge um importante questionamento a qual enseja nossa pesquisa bem como a direciona: Será que nós temos direito de dispor da própria vida? E mais precisamente, será que tenho direito, sem interferência estatal, de fazer o que eu bem quiser com meu corpo, decidir sobre o destino da minha vida, se devo ou não morrer em certo momento de grave moléstia? Ou seja, será que eu posso praticar a ortotanásia? Será que o estado pode intervir de modo a proibir tal prática? E o testamento vital, terá validade jurídica?

Traçando, pois, este paralelo entre autonomia da vontade, e o direito à vida, é que  este trabalho busca compreender a prática da ortotanásia, e suas principais polêmicas no mundo jurídico através do testamento vital. A ortotanásia, segundo a Resolução n. 1.805/2006 do Conselho Federal de Medina é uma prática em que:

“Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. (Res. n.1.805/2006, CFM).”

Roxana Borges apresenta o conceito etimológico da palavra ortonásia, segundo ele significa morte correta, orto: certo, thanatos: morte. Assim, ortonásia é o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico (BORGES, 2001, p.287).

Vemos, portanto, através desse conceito, que surgem muitos questionamentos á respeito da dignidade da pessoa humana, do direito à vida, e autonomia da vontade, consideradas na prática da ortotanásia, mais precisamente a autonomia do paciente. Tais questionamentos, sem dúvidas, de grande polêmica serão considerados de uma maneira mais aprofundada nos próximos tópicos. Por ora, vale ressaltar as palavras de Maria Helena Diniz, que, ao considerar as inúmeras transformações sociais que nós passamos afirma que:

“O direito é uma realidade dinâmica, que está em perpétuo movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-as, adaptando-as às novas exigências e necessidades da vida, inserindo-se na historia, brotando do contexto cultural. A evolução da vida traz em si novos fatos e conflitos, de modo que os legisladores, diariamente, passam a elaborar novas leis; juízes e tribunais  de forma constante estabelecem novos precedentes e os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar dinamismo da vida”

 Assim, as normas de direito devem sempre estar consoantes às mudanças sociais, devem estar atentas às mudanças que a sociedade passam, para que possam regular todas as relações. O testamento vital é um dentre vários temas polêmicos que ainda não foram introduzidos com sucesso no nosso Ordenamento Jurídico, devido as grandes divergências que o cerca.

2      PONDERAÇÕES SOBRE O TESTAMENTO VITAL E SUA INCLUSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O testamento é um ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém dispõe de seu patrimônio no todo ou em parte, com efeitos causa mortis, visto que os efeitos deste ato só são produzidos depois da morte do testador (DINIZ, 2007, p. 177). No tocante a isto, Rolf Madaleno (2011) defende o testamento como expressão ultima de vontade, afirmando que da vontade do homem decorre o testamento válido.

“O testamento é um ato pessoal, unilateral, espontâneo e revogável, sendo disposição de derradeira vontade com que a pessoa determina o destino de seu patrimônio ou de parte dele para depois de sua morte, devendo o testamento atender as exigências formais para não ser posteriormente invalidado, sem chance alguma de ser repetido, porque só tem validade e pertinência depois do óbito do testador. O testamento abrange manifestações de cunho pessoal e familiar, cuidando o testador de reger o exato conteúdo de suas preocupações pessoais e econômicas, tratando de dispor no plano patrimonial o pessoal o endereçamento futuro de seus bens, para depois de seu falecimento, cercando-se com a partilha dirigida e se achar necessário, consignando aquilo que gostaria de ter dito em vida ou que mesmo tendo dito em vida, ainda assim gostaria de perpetuar na memória de seus herdeiros e legatários, cientes de que valores morais e a unidade familiar são heranças que transcendem a passagem do homem e o registro histórico de sua construção pessoal”. (MADALENO, 2011)

Por várias razões, entre eles a dificuldade de enfrentar com naturalidade a morte como fenômeno certo na vida humana, a sociedade e inclusive o Direito, evitam ou se eximem deste assunto. Tanto que a “regra é a sucessão legitima, e a testamentária é a exceção” (DINIZ, 2007, p. 17).

Paulo Hebmüller (2012) ressalta que durante o Século 20 foi criada a figura do paciente terminal, consequência dos avanços tecnológicos capazes de prolongar a vida ou em muitos casos adiar artificialmente a morte. o autor acrescenta que esta “revolução trouxe à luz novas questões sobre os limites do uso dos recursos colocados à disposição do ser humano” (HEBMÜLLER, 2012).

A respeito do prolongamento artificial da vida e vontade privada do paciente, o Conselho Federal de Medicina determinou mediante a Resolução nº 1.995, que pacientes em condições terminais podem desistir de seu tratamento de saúde. A nova regra do Conselho Federal de Medicina, afirmou que através de um testamento vital que dá ao paciente o direito de escolher se irá receber tratamentos invasivos quando estiver em estado terminal (Revista Veja). Segundo, PICCINI et. al. (2010), “o Testamento Vital, documento com diretrizes antecipadas, é considerado um novo instituto jurídico, e que se aplica a essa situação”.

O testamento vital, segundo Adriano Marteleto Godinho (2012), pode também ser chamado de testamento biológico, testamento de vida ou testamento do paciente, pois se trata de um documento, no qual “o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma”.

“O paciente pode manifestar expressamente se deseja ou não receber cuidados e tratamentos no momento em que não puder mais expressar livre e autonomamente sua vontade; o médico responsável levará em consideração as diretrizes antecipadas de vontade e o paciente poderá designar um representante para que manifeste sua vontade e o desejo manifestado por intermédio deste será considerado”. (VIEIRA, 2012)

O testamento vital é, portanto, uma diretiva antecipada da vontade do paciente, a qual “prevalecerá sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares e o médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente” (VIEIRA, 2012).

Nesse sentido, GODINHO (2010) elucida que o testamento vital é um “documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade”. O autor ainda acresce que “ao contrário dos testamentos em geral, que são atos jurídicos destinados à produção de efeitos post mortem, os testamentos vitais são dirigidos à eficácia jurídica antes da morte do interessado”.

Quanto à formalidade do testamento vital, Vieira (2012) alerta que extremamente necessário que, sempre que possível, seja dada prioridade à manifestação escrita do paciente, sempre na presença de pelo menos duas testemunhas. “Se a manifestação for verbal, seja a mesma reduzida a termo na presença de duas testemunhas, as quais hão de firmá-lo e seja sempre atestada a sanidade do paciente e sua livre e integral consciência” (VIEIRA, 2012).

O testamento vital já faz parte do ordenamento jurídico de vários países, isto em decorrência da intensa discussão sobre a autonomia dos pacientes em relação aos procedimentos médicos para prolongar a vida, mesmo em pacientes em casos terminais. 

“É o caso da Espanha, da Holanda, dos Estados Unidos e, mais recentemente, do vizinho Uruguai, que aprovou lei a esse respeito em 2009. Em linhas gerais, trata-se de um documento em que o indivíduo, de forma voluntária, consciente e livre, declara que tipo de terapias recusa que lhe sejam aplicadas caso fique impossibilitado de manifestar sua vontade – em coma, por exemplo. Na maioria dos modelos, o documento deve trazer a assinatura de testemunhas, ter registro em cartório e determinar um procurador”. (PAULO HEBMÜLLER, 2012)

Adriano Marteleto Godinho (2012) recorda que:

 “Nos Estados Unidos, a primeira lei sobre o testamento vital foi editada na Califórnia, em 1976, e rapidamente serviu como referência para o surgimento de diplomas semelhantes naquele país. Até 1986, mais de 30 estados americanos já haviam legislado sobre o assunto. Já em 1990, emergiu, como norma federal, a Lei de Autodeterminação do Paciente (“Patient Self-Determination Act”), com o propósito de estimular a elaboração, pelos pacientes, de diretivas antecipadas, segundo as leis estatais que versem sobre o tema”.

Outro país que reconheceu o instituto jurídico do testamento vital foi a Espanha, apesar de utilizar termos diferentes. Na Espanha, “a primeira norma de caráter nacional sobre o tema sobreveio com a Lei n. 14, de 14 de novembro de 2002, cujo art. 11, ao regulamentar estabelece os pressupostos essenciais para a validade do ato, entre eles a plena capacidade do agente” (GODINHO, 2012).

Adriano Marteleto Godinho (2012) assevera que em 2005 começou a vigorar no Reino Unido, “a norma denominada ‘Mental Capacity Act’, cujos arts. 9 e 24, em especial, contemplam as figuras das diretivas antecipadas, permitindo-se a uma pessoa capaz a faculdade de conferir a outrem autoridade para decidir sobre seus cuidados médicos futuros”. E recentemente, no Uruguai foi “aprovada a lei n. 18.473/2009 que instituiu o testamento vital no ordenamento local” (GODINHO, 2012).

Percebe-se que estes países já regulamentaram o testamento vital, considerando esta inovação jurídica como garantia da autonomia privada e até mesmo meio de garantir uma morte digna. Entretanto, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de regulamentação no que tange a este instituto.

 “a falta de regulamentação no país não impede que uma pessoa registre em cartório uma declaração desse tipo – mas, pela mesma razão, o Judiciário pode decidir pela sua ineficácia. Segundo os defensores da adoção do testamento vital, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa e da garantia de que ninguém será submetido “a tratamento desumano ou degradante” sustentam o direito do cidadão de escolher o que considera uma morte digna”. (PAULO HEBMÜLLER, 2012)

No entanto, é perceptível, acanhados sinais para inclusão do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. Entre eles, pode-se apontar como dois motivos para alegar isto a: I) Lei nº 10.241/99 do Estado de São Paulo estabelece que entre os direitos dos usuários dos serviços de saúde estão “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida” e “optar pelo local de morte”. (PAULO HEBMÜLLER, 2012); II) e ainda, a recente a Resolução nº 1.995 do Conselho Federal de Medicina.

3      A INOVAÇÃO JURÍDICA DO TESTAMENTO VITAL COMO GARANTIA DE AUTONOMIA DA VONTADE PRIVADA EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À VIDA E À DIGNIDADE HUMANA

Como vimos no tópico anterior o testamento vital ainda não possui legislação específica que o autorize, apesar de existir a recente Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina que trata sobre este assunto. O fato de não existir nenhuma normatividade sobre o testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, torna necessário ponderar a possibilidade de sua inserção, e tecer um debate sobre as questões que esta inclusão acarreta, principalmente quanto ao direito à vida, ao principio da dignidade humana, e a autonomia da vontade privada.

 “O fato de inexistir previsão legal sobre o testamento vital no país não significa que se possa proclamar uma suposta incompatibilidade: em consonância com os princípios e normas que imperam ordenamento brasileiro, nada impede que se reconheça a validade daquele instrumento, que nada mais representa que uma relevante expressão da autonomia dos pacientes, com a particularidade, neste caso, de se tratar de um instrumento previamente elaborado, com o intuito de estabelecer diretrizes sobre intervenções médicas supervenientes. Sendo descabida a alegação de que o testamento vital não pode subsistir, pelo simples fato de não haver regulamentação específica em lei – embora a elaboração de uma norma especialmente cunhada para reger o instituto seja conveniente, para pôr termo às dúvidas que persistem sobre o tema –, torna-se imprescindível estabelecer determinadas condições para o reconhecimento da sua validade”. (GODINHO, 2012)

A Resolução do Conselho Federal de Medicina, não tem força de lei. Seria possível, portanto, esta se sobressair ou compatibilizar com a norma fundamental do direito a vida e dignidade humana?

O testamento vital “provoca vigorosa reflexão sobre o direito à própria vida, à dignidade da vida e à prevalência de manifestações de última vontade” (VIEIRA, 2012). Nesse sentido, inúmeros juristas, médicos e a sociedade buscam compreender a aplicabilidade e possibilidade desse instituto ser inserido no ordenamento legal brasileiro.

Tal debate não é pacífico, tendo tanto defensores quanto aqueles que condenam a prática do testamento vital. De ambos os lados, os direitos fundamentais são postos como argumentos decisivos.

A favor do testamento vital, Penalva (2012, p. 532) aduz que:

Sob perspectiva interpretativa pode-se, pelo exposto, defender a validade da ortotanásia no Brasil por ser prática que se coaduna com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada – princípios que propiciam a coexistência de diferentes projetos de vida na sociedade democrática, além de prática aceita pelo CFM, órgão responsável por definir os deveres dos médicos.

Assim, o testamento vital surge como garantia da autonomia privada, de suma importância, já que trata de uma etapa da vida que também deve ser vivida de forma digna: a morte. Deste modo, é imprescindível que esta diretiva antecipada de vontade seja tomada com cautela e consciência das suas consequências, pois “a autonomia da vontade privada, nessa peculiar circunstância da vida, não há de estar desligada do entender as consequências da decisão que seja tomada já que tal decisão leva, ou por levar a situação irreversível, que é a morte” (SZTAJN, 2002, p. 27).

É indubitável que o Brasil vive um importante momen­to na materialização do Princípio da Autonomia. A busca da ortotanásia constitui um motivo relevante nessa reflexão. Os primeiros passos já foram dados por estudiosos e pelo próprio Conselho Federal de Medicina no rumo da abordagem, dis­cussão e aplicação do Testamento Vital à luz de nosso ordena­mento jurídico. Por um lado, não se deve abreviar a vida. Por outro, muito menos, o prolongamento do processo de mor­rer. Uma nova sabedoria precisa emergir na aceitação do adeus final16. Nessa nova sabedoria insere-se inquestionavelmente a vontade do paciente por meio de seu Testamento Vital. (PICCINI et al., 2011, p. 390)

Todavia é extremamente relevante ponderar a autonomia, juntamente com o direito fundamental a vida e considerando a dignidade humana em todas as etapas da vida, inclusive no momento morte.  De tal modo, “consoante ao reconhecimento da autonomia, o Testamento Vital também vai ao encontro de outro princípio bioético: a beneficência, que é o dever de agir no interesse do paciente, já que respeita as opções de vida do paciente em questão” (PICCINI, et al., 2011, p. 385).

A Constituição Federal está fundamentada no principio da dignidade humana como assevera em seu artigo 1º, assim como no artigo 5º garante no rol de direitos fundamentais a inviolabilidade do direito à vida.  No tocante a isto, Tiago Vieira Bomtempo (2011, p. 7) afirma que “é direito do paciente terminal escolher qual a melhor forma de encerrar a sua vida, pois este é um direito inviolável, de acordo com a nossa Constituição”.

Ronald Dworkin (2003, p. 307) defende o direito a morte digna como decorrência da garantia do direito a vida com dignidade, pois obrigar alguém a morrer de um modo que os outros aprovam – prolongando artificialmente a vida –, mas que para a pessoa representa não é a maneira como ela deseja morrer, é uma desprezível contradição e até mesmo forma de tirania.

Sabemos que a morte será inevitável, algo inerente a todo ser humano, todos nós temos direito a uma vida digna e será  que também não temos direito a uma morte de forma natural?  E os pacientes que se encontram em fase terminal ou vegetativo devem se submeter a procedimentos para prolongar a vida, mesmo que isso venha trazer mais sofrimento? (CARVALHO, 2013, p. 1012)

Nesse sentido, também aduz Carvalho (2013, p. 1024) que,

Na verdade ocorre um conflito de interesses, onde o direito à vida deve ser sobrepor a qualquer outro, visto não poder sofrer limitação ou restrição, mas se poderia permitir que o paciente escolhesse dar continuidade à vida sem se utilizar de qualquer procedimento que viesse a lhe causar mais dor, mais sofrimento, para ter assim, uma morte natural.

Nesse contexto há o entendimento de que “uma vez violada a dignidade do paciente, a sua autonomia, quando submetido a tratamentos considerados inúteis, que se tornam desumanos e degradantes a ele já não se pode dizer que existe o respeito à vida, pois a vida deve ter qualidade, e qualidade de vida infere em bem estar físico, psicológico, social e econômico” (BOMTEMPO, 2011, p.7)

Entretanto, segundo Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2011, p. 292-293) o direito a vida “sendo um direito, e não se confundindo com liberdade, não se inclui no direito a vida a opção por não viver. Não sendo dado extrair do direito à vida um direito a não mais viver, os poderes públicos não pode consentir em práticas de eutanásia”.

Mas a prática da ortonásia que ocorre no testamento vital não corresponde a eutanásia. Segundo Nunes (2010) “o Testamento Vital – que surgiu quatro décadas atrás com o objetivo de permitir a uma pessoa, devidamente esclarecida, recusar determinado tipo de tratamentos que no seu quadro de valores são claramente inaceitáveis–, é conceptualmente considerado como distinto da eutanásia”.

A dignidade humana, princípio basilar da Constituição Federal, também deve ser garantido no momento da morte, isto porque, este é um fato certo da vida. SARLET apud CARVALHO (2012, p. 1015) entende como dignidade da pessoa humana:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da  própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Adriano Marteleto Godinho, um dos maiores defensores do Testamento Vital no Brasil, afirma que o deve ser questionado é se a vida humana deve de ser preservada a qualquer custo, ou se, não se pode alegar que morrer dignamente não seria uma simples consequência do preceito da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente assegurado (GODINHO, 2012, P. 965).

Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da autonomia (princípio implícito no art. 5º), bem como a proibição de tratamento desumano (art. 5º, III), são arcabouços suficientes para a defesa da declaração prévia de vontade do paciente terminal, haja vista que o objetivo deste instrumento é possibilitar ao indivíduo dispor sobre a aceitação ou recusa de tratamentos em caso de terminalidade da vida. Penalva, 2009, p. 534

Destarte a Resolução nº 1995 do Conselho Federal de Medicina, “veio permitir o exercício da dignidade com autonomia, valorizando liberdade e os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente aos indivíduos” (CARVALHO, 2013, p. 1024). Porém, há de se salientar que esse tema é polêmico e não pacífico, pois, existem de um lado aqueles que são favoráveis a pratica do testamento vital, justificando-o, com a aplicação do princípio do direito à liberdade de autodeterminação, e do outro, os que argumentam contra, sustentando sua posição pelo princípio do direito à vida como bem indisponível (PICCINI, et al., 2011,  p. 385).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos considerar que a personalidade humana, bem como, seu livre desenvolvimento está diretamente relacionada a autonomia da vontade e do sujeito, visto que a liberdade está ligada ao direito à personalidade e imprescindível para materialização da dignidade da pessoa. Assim, cumpre ressaltar que importante papel assume o da autonomia da vontade ante às polêmicas que envolvem as diretivas antecipadas de vontade, instrumento que assegura ao paciente a vontade de morrer “dignamente”, que pode ser materializada mediante a prática da ortotanásia, e o instrumento jurídico garantidor dessa prática é o testamento vital.

Assim, o médico suspende o tratamento do paciente terminal, o qual reputa causar-lhe dor, desnecessária, ou somente realiza terapêuticas paliativas, haja vista que apenas estender-se-ão seus dias de sobrevida na terra, mas que não irá ocasionar uma melhora significativa para sua vida, sendo conivente à vontade do paciente, ou de seu representante legal. Busca-se assim, escudar direitos fundamentais como a dignidade, a liberdade, presentes na Lei Maior de nosso país.  Assim, tal prática, reivindica o direito à morte digna, além de ser permeada pelos princípios constitucionais, da igualdade, da liberdade, e do direito à saúde, como fora dantes mencionado nos capítulos anteriores. Tal tema, trás à tona reflexões éticas e bioéticas sobre o final da vida, e devido a isto, não existe um entendimento pacífico, pois há quem entenda que uma pessoa não pode dispor da própria vida como bem entenda, tanto é que no Código Penal Brasileiro, artigo 121, parágrafo 1º imputa como crime, ainda que com pena menor, o homicídio impelido por relevante valor moral – identificado, segundo o próprio Código, com a eutanásia, quando esse valor é apena/compaixão/tristeza pelo sofrimento do enfermo. Porém, não deixa claro os limites desse entendimento do que seria “matar alguém” cabendo somente a doutrina e jurisprudência responder.

A complexidade desse assunto vai além de tão somente compreender só conceitos e analisar os pareceres jurídicos e médicos sobre o assunto, mas envolve também, uma reflexão jurídica-social necessária sobre a consequência dessa prática. Tais práticas exigem, por si só, difíceis decisões a serem tomadas, que dão margem a diferentes tipos de interpretação. Por fim, concluímos que tal prática, que ainda não se encontra claramente autorizada (ou não autorizada) no Ordenamento Jurídico precisa de espaço para que possa ser devidamente julgada, e legalizada (se assim for) levando-se em conta sempre o bem comum, social e ético, preservando a autonomia privada e acima de tudo a dignidade humana desde a concepção da vida humana até o seu término.

 

REFERÊNCIAS

 


BOMTEMPO, Tiago Vieira. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. 2011. Disponível em: http://www.ipebj.com.br/docdown/_7ce.pdf. Acesso em: 04 maio 2013.

 

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro Borges. Direito de morrer de morrer dignamente:

eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado. In:SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p.283-305.

 

BRASIL. Conselho Federal de medicina. Resolução nº 1.246 - Código de  Ética Médica. Brasília, Imprensa nacional, Diário oficial da união, 08 de  janeiro de 1988. Disponível em: < http://www.crmpi.com.br/pdf/codigo_etica_medica.pdf>. Acesso em: 09 de  março de 2013

BRASIL. Assembleia nacional Constituinte. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Imprensa nacional, Diário oficial da união, 12 de outubro de 1988.

CARVALHO, Adriana Pereira Dantas. Direito de morrer de forma digna:

Autonomia da vontade. RIDB, Ano 2 (2013), nº 2. Disponível em: http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2013_02_01009_01028.pdf. Acesso em: 10 maio 2013.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das sucessões. V.6. São

PAULO, 2010.

__________. Curso de Direito Civil Brasileiro: teoria geral do Direito Civil. v.1. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

DWORKIN, R. M. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo:

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[1] Paper apresentado como requisito parcial de aprovação na disciplina de Direito de Família e Sucessões, lecionada pelo Prof.ª  Me. Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.

[2] Alunas do Curso de Direito do 8° Período/Vespertino, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.