Resumo:

O presente visa tecer análise acerca da aplicação do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, frente às alterações trazidas pela Lei 11.705/08 (vulgarmente denominada "Lei Seca"), tendo em vista, os meios de produção de prova possíveis de fornecer o critério objetivo fixado pelo legislador no referido tipo penal, traçando um parâmetro com o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, buscando apresentar argumentos esclarecedores quanto ao tema.

1- Introdução:

A lei 11.705/2008, que entrou em vigor na data de 19 de junho de 2008, popularmente denominada "Lei Seca", modificou o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, estabelecendo o seguinte:

"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."

Ainda, o parágrafo único do referido artigo, estabeleceu:

"O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo".

Em virtude do preconizado no parágrafo único acima, foi publicado pelo Presidente da República o Decreto de número 6.488 de 19/06/08, que fixou o seguinte:

"Art. 2o  Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei no 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:

I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou

II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões."

Inicialmente, a lei trouxe uma enorme repercussão nacional, motivo de inúmeras notícias veiculadas pelos diversos meios de comunicação, dando-se a impressão de que a violência no trânsito, decorrente da combinação "bebida e direção" estaria com os dias contados, e que cessaria a impunidade daqueles que trafegassem nesta situação, colocando em risco a segurança viária.

Possível vislumbrar que o legislador, no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, estabeleceu um critério objetivo para determinar se a pessoa encontra-se embriagada, donde podemos concluir que somente cometerá o delito em tela aquele que estiver com um mínimo de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, ou que esteja sob os efeitos de substância psicoativa que determine dependência.

Assim, próximo de completar um ano da entrada em vigor das alterações citadas, cumpre-nos indagar: O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, com as modificações trazidas pelo advento da Lei 11.705/2008 possui aplicação eficaz?

2- Do princípio constitucional "nemo tenetur se detegere" (ninguém é obrigado produzir prova contra si mesmo)

O princípio constitucional em tela, implicitamente contido na Constituição Federal, decorrência do princípio da presunção de inocência e da ampla defesa, e extraído do artigo 5º, incisos LXIII e LVII, estabelece, em suma, que o autor de um crime não tem a obrigação de produzir qualquer tipo de prova que lhe prejudique ou seja capaz de incriminá-lo, possibilitando a negativa do acusado quanto à produção de provas que o incriminem.

De acordo com Flavia Piovesan: "a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil, dentre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 8.º, II, g, estabelece que toda pessoa acusada de um delito tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada, consagrando assim o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo".[1]

O eminente Antonio Scarance Fernandes se pronuncia no mesmo sentido: "Já era sensível a evolução da doutrina brasileira no sentido de extrair da cláusula da ampla defesa e de outros preceitos constitucionais, como o da presunção de inocência, o princípio de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar, não podendo o suspeito ou o acusado ser forçado a produzir prova contra si mesmo."[2]

O referido princípio é plenamente aplicável ao Código de Trânsito Brasileiro no que tange ao exame de sangue e do etilômetro aptos a provar o estado de embriaguez exigido para consumação do crime previsto no artigo 306 do mencionado codex.

3- Da prisão em flagrante; da apuração da infração por meio do inquérito policial; do indiciamento; da condenação: diante da negação do indivíduo em produzir provas da embriaguez.

À luz do princípio supra, os abordados conduzindo veículo automotor em via pública apresentando sinais de embriaguez ou influência de qualquer outra substância psicoativa que cause dependência, não podem ser compelidos a realizar os exames capazes de determinar a ingestão de substância entorpecente ou mesmo comprobatórios da ingestão da quantidade de álcool imposta pelo tipo em testilha.

Muitos dos condutores encontrados nesta situação, que possuem um mínimo de instrução, se negam a executar o exame com utilização do etilômetro e o exame sanguíneo, impossibilitando a prova cristalina de que o motorista encontra-se embriagado, afastando consequentemente a materialidade delitiva, visto que, torna-se impossível a demonstração da presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, imposto pelo artigo 306 do CTB, ou mesmo, três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões, determinados pelo Decreto 6.488/08.

Destarte, obstou-se a possibilidade da prisão em flagrante do motorista que foi encontrado em condições que presuma ingestão de álcool ou substância psicoativa.

Convém citar outras provas que possam demonstrar atitude compatível a de quem tenha ingerido álcool ou substância psicoativa, dentre elas: testemunhal, confissão e exame clínico.

Poderá uma pessoa de bom senso, seguindo o critério do homem médio, aduzir se alguém apresenta conduta irregular e compatível ao de pessoas embriagadas, podendo servir como testemunha em inquérito policial, ou no processo.

O condutor do automóvel pode voluntariamente, admitir a ingestão de álcool ou de substância psicoativa, isto é, confessando.

Quanto ao exame clínico, um médico, será capaz de aferir a compatibilidade dos sinais clínicos, do suspeito, com o estado de embriaguez, analisando alguns aspectos, tais como, dilatação da pupila, falta de equilíbrio corporal, confusão mental, halitose etílica.

Porém, com base nos meios de prova acima, torna-se impossível estabelecer o critério objetivo fixado pelo artigo 306 do C.T.B., haja vista, que cada pessoa apresenta tolerância diferente ao álcool, variável somando-se diversos aspectos biológicos inerentes a cada qual.

No mesmo diapasão, me posiciono contrário à instauração do inquérito policial, indiciamento e até mesmo condenação do suspeito que se recusou a produzir provas de embriaguez, visto que, com base no aludido acima, as únicas provas contundentes e capazes de demonstrar a concentração de álcool exigida pelo artigo 306 do Código em comento, são as mencionadas no Decreto 6.488/08, isto é, o etilômetro e o exame sanguíneo. As demais provas, que independem da aquiescência do acusado, e citadas alhures, demonstram-se inconclusivas com relação à quantidade de álcool presente no organismo.

Neste sentido, Acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: "Com o advento da Lei 11.705/2008, alterando a redação do art. 306 do CTB, o crime de embriaguez ao volante somente se caracteriza quando restar comprovado através do teste de alcoolemia que o condutor do veículo estava com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 06 (seis) decigramas. Sem prova nesse sentido, não há como incriminá-lo por embriaguez ao volante".[3]

Os juristas Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, explicitam o seguinte: "A concentração de álcool igual ou superior a 6 decigramas só pode ser constatada mediante exame de sangue ou bafômetro, expedientes que necessitam de autorização do motorista. Sabendo que o suspeito pode (atuando no seu direito constitucional) recusar produzir prova contra si mesmo, forçoso é concluir que as diligências suplementares (exame clínico ou mesmo prova testemunhal) são insuficientes para apurar o grau de álcool no sangue."[4]

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assim se posicionou: "Ausente prova técnica atestando o número de decigramas de álcool por litro de sangue, é de se absolver o réu do delito tipificado no art. 306 da Lei 9.503/97, com fundamento no art. 386, II, do Código de Processo Penal" [5]

Assim, para ser autor do delito de embriaguez ao volante, necessário se faz a prova de que tenha ingerido álcool em quantidade fixada no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, ou então que esteja sob a influência de substância psicoativa, consoante prevê o tipo.

Conclusão

Portanto, a atualização legislativa quanto a seu aspecto criminal, em especial ao preconizado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, tornou o tipo que define o crime em comento de aplicação e eficácia restringida, visto que só surtirá efeito contra aqueles que concordarem em efetuar os exames aptos a produzir o meio probatório suficiente à demonstração do parâmetro objetivo definido no tipo legal, ou seja, só será aplicável para o indivíduo que se sujeitar a coleta de sangue para constatação da alcoolemia ou presença de substância psicoativa ou efetuar o teste com utilização do etilômetro, restando constatado a ingestão de quantidade igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue outrês décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.Caso contrário, temos uma norma ineficaz, impossível de produzir seus efeitos.

Assim, transferiu-se ao suspeito ou acusado o poder de tornar a aplicação do tipo em análise efetiva ou não, dando azo à perpetração da impunidade, contrastando com a ideia de punir rigorosa e efetivamente aqueles que expõem a perigo demais usuários do sistema viário nacional, consequência da ingestão de álcool em quantidade excessiva, ou substância psicoativa capaz de gerar dependência.

Referências:

PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3.ª ed., São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 254.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 303-304.

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. "Comentários às reformas do código de processo penal e da lei de trânsito". São Paulo, Editora RT, 2008 p. 378-379.

LAZARINI, Pedro.Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 1ª edição. Editora Primeira Impressão. São Paulo. 2007.

MOTA, Sylvio e DOUGLAS, William. Direito Constitucional. 10ª edição. Editora Impetus. Rio de Janeiro. 2002.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo penal e Execução Penal. Revista dosTribunais. São Paulo. 2005.


1- PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3.ª ed., São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 254.

2- FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 303-304.

3-TJMG - Apelação Criminal n° 1.0095.07.000827-1/001 - Comarca de Cabo Verde - Apelante(s): Ministério Público do Estado de Minas Gerais – Apelado: ... - relator: Exmo. Sr. Des. Antônio Armando dos Anjos

4-GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. "Comentários às reformas do código de processo penal e da lei de trânsito". São Paulo, Editora RT, 2008 p. 378-379.

5-TJRS - Apelação Criminal 70013521158, 5.ª CCrim, Relatora Exª. Dr. Desembargadora Genacéia da Silva Alberton.