APARTAMENTOS

de Romano Dazzi

 

Luis acordou lentamente. Eram quase dez da manhã do seu primeiro dia de férias

Levantou-se, foi à janela, espreguiçou-se e encolheu as cortinas. 

Desde que as construtoras deixaram de colocar persianas nas janelas, para economizar, os inquilinos são obrigados a usar cortinas escuras e pesadas; pouca gente consegue dormir com claridade no rosto.

Do outro lado da rua, outro prédio novo, de trinta andares como o dele, vinha sendo ocupado rapidamente por novos inquilinos.

Olhou distraidamente, bocejando enquanto preparava o café, e sentou-se à mesa, pensando em como poderia organizar tanto tempo livre: trinta e cinco dias, sem nenhuma obrigação -  absolutamente nenhuma....

Olhou novamente para o prédio da frente. Descobriu que havia movimento em quase todos os apartamentos; em cada um havia alguém  empenhado em uma atividade diferente. No apartamento 41-A (devia ser o 41-A,  pois estava bem de frente ao dele) uma empregadinha lavava os vidros (“preciso fazer isso também, amanhã ou depois” – pensou); algumas senhoras conversavam no hall,  dois garotos  corriam atrás de um cãozinho; duas mocinhas esperavam o elevador e um eletricista fuçava na fiação, procurando algum curto circuito.

Enfim, o prédio, visto assim de fora, fervilhava de vida e de atividade.  E foi aí que, de repente, ela a viu.  Uma loirinha simpática, alta, bonita (assim lhe pareceu,  mas estava longe, pelo menos uns trinta metros). Estava com uma roupa esportiva azul e ensaiava uns exercícios.  Atleta? Bailarina?  

Naquele momento, não viu e nem imaginou muito mais; mas enquanto esquadrinhava os outros apartamentos,  sem querer voltou a olhar, duas ou três vezes para a loirinha  (devia estar no 41 E, calculou)  com interesse sempre  maior.

A curiosidade, sabe-se, é fêmea.

Mas o interesse súbito, a atenção imediata, a vontade de saber, de ver, de conhecer, e até de tomar posse, são muito mais instintos masculinos. O homem vive mais em função de seus olhos que de qualquer outro sentido.

Pode ficar interessado por uma voz melodiosa, pode ser atraído por um perfume suave, pode ficar envolvido ao sentir sob os dedos um palmo de pele morna e agradável – melhor ainda se coberto de seda – e pode até ser conquistado por um prato bem caprichado de espaguete.  

Mas a sensação visual é a mais duradoura.

Se casar hoje com a mulher da sua vida, daqui a cinco ou dez anos você ainda terá na lembrança a cor dos seus olhos, a leveza de seus cabelos, a expressão do seu rosto, a graça das suas mãos. Não ficará em seu nariz o aroma de violeta que ela usava naquele dia, ou em seus ouvidos o som do “sim” pronunciado mais com a alma que com a boca, naquele momento especial. Bem, algumas pessoas poderão não concordar; mas é uma discussão meramente acadêmica.

O fato é que o Luis, tomado seu banho, trocou de roupa – mesmo tendo jurado que não poria um terno pelo mês inteiro – e desceu à rua. Atravessou-a rapidamente e entrou na ótica.

Passou a mão em um binóculo potente (só a Marinha pode usar este tipo – mentiu o vendedor) e voltou ao apartamento. Em dez minutos, estava de volta.

Mas a menina do 41-E ,  não estava mais lá.

Apesar da decepção, Luis aproveitou o tempo para montar um cômodo posto.de observação.  O binóculo podia oscilar para os lados e ficava preso entre dois travesseiros; além de deixar mais firme a  imagem e tornar mais cômoda a observação, este arranjo o protegeria dos olhares, de moradores  indiscretos....

O diabo, quando quer, sabe ensinar todos os truques direitinho....,

Luis teve todo o tempo para examinar detidamente o apartamento 41-E . Poucos móveis bem simples deixavam a sala despojada e quase vazia. No quarto, apenas uma cama e um armário de duas portas. A menina devia ser uma estudante, ou uma candidata a algum concurso. De todas as formas, não dispunha de um grande orçamento. Devia viver com muito pouco.

Enquanto olhava, Luis tentava adivinhar qual seria o nome da moça; um roupão jogado sobre a cama trazia as letras “C P” bordadas a ouro.   Deu-se por feliz: estavam eliminadas as possibilidades de outras 24 letras. Mas o “C” oferecia tantas alternativas que seria difícil acertar.  Carla, Catarina, Camila, Cacilda, Clotilde, Cecília, Cassandra, Clorinda, Cássia, Clélia,....... Fez um quadro com todos os nomes de que lembrava e  escolheu um , de olhos fechados, confiando plenamente na sorte.  Corina, foi o nome. E Corina ficou.

Quanto ao “P”, era com certeza o sobrenome, e adivinhá-lo seria uma luta perdida. Melhor não arriscar nenhum palpite. 

A partir desse dia, Corina ficou no centro de tudo o que o Luis fazia.

Ele a via todas as manhãs desde que levantava até quando saia de casa. Aprendeu tudo sobre a rotina da moça, seus gostos nas roupas, o modo especial de se pentear; descobriu, com certo esforço, até o nome dos livros que ela lia. Eram todos textos de escola. Todos se referiam a Exercícios, Educação Física, Fisiologia, Ortopedia; ela era, sem dúvida, uma Universitária.

Estava vencida a primeira etapa.  Luis queria saber tudo sobre a “sua” Corina;  Através de minuciosas observações aprendeu muito mais sobre o corpinho da moça;  abusando de sua vantagem, observava-a com curiosidade, enquanto ela cumpria a sua rotina diária de exercícios; tanto que, aos poucos, seu interesse  foi-se transformando em paixão. 

Aprendeu muito sobre os saudáveis hábitos alimentares de Corina  e se transformou, sem que ela soubesse, em uma espécie de companheiro, um  conselheiro invisível e silencioso.  Já torcia por ela, preocupava-se com ela, namorava com ela. Um perfeito amor platônico. Não sentia mais a vergonha dos primeiros dias, quando espiava com olhar faminto o balanço e a harmonia de sua figura.

Uma vez teve a impressão que Corina tivesse cruzado o seu olhar, ou pior, descoberto o binóculo. Seria a pior coisa que poderia acontecer, pensou.

Mas não era, não. A pior aconteceu numa sexta feira,  alguns dias depois.          

O apartamento do Luis foi invadido por um brutamontes, que esbravejava espumando de raiva. 

“- Atrevido, sem vergonha, porcalhão! -” gritava o gordo .

“- Quem lhe dá o direito de espiar as vizinhas, seu cínico, tarado, doente !" –

e por ai vinha, ameaçando acabar com o Luis.

O Luis, atarantado, não conseguia palavras ou argumentos para se defender e teve que agüentar até que a raiva do energúmeno baixasse um pouco.

Ai, tentou se desculpar, dizendo apenas o que lhe chegou à cabeça:

- “Você tem razão, tem toda a razão, mas eu me apaixonei por essa moça e não sei mais o que faço!....Ela é linda, a menina mais bonita que já vi, mas nunca falei com ela. Acredite, nunca a importunei!....”

“E Você acha que olhar desse jeito com o binóculo, entrando no apartamento com o olhar curioso e doentio não é importunar?”

“Não! - , voltava timidamente o Luis – não lhe fiz mal algum, não a fotografei, só ficava olhando para ela embevecido, por horas, enquanto estudava, ou comia, ou dormia. O que posso fazer, se me apaixonei pela Corina?”

“Corina? Que Corina? O que está querendo dizer? Está tentando me embromar, eh? A minha garota se chama Mariana e ela percebeu muitas vezes que você a espiava com o binóculo!. Ela ainda lhe fez entender que estava com raiva e fora obrigada a deixar as cortinas puxadas todos os dias, para não ser incomodada por você !”

“Perdão, senhor – atalhou sem jeito o Luis – qual é o número do apartamento da Mariana ?”

“Oh, seu safado, sem vergonha”! Toma  o número, toma! “ E acertou-o com dois socos no rosto.

Luiz, nariz sangrando, ainda insistiu: “- Qual é o número? Qual é o número?”

“É o 41 H, seu cretino! mas você sabe disso melhor do que eu!!”  retrucou o gordo. E saiu batendo a porta.

.............

 

O Luiz só melhorou uns dez dias depois.   Bateu timidamente à porta do 41-E,

conferindo  bem a placa, para não trocar com o 41-H .

A sua conhecida  Corina atendeu, com um sorriso encantador.

“Sim?” – perguntou – “em que posso lhe ajudar?” 

“Em muitas coisas, Corina!” -  respondeu o Luis. “Posso entrar?”

“Entre” fez a moça preocupada. “Mas porque me chamou de Corina?  Meu nome é Mariana – como o da minha vizinha, a menina do  41-H”.

“Não é Corina? Jura? Mas seu roupão traz as letras “C P” ,pensei que....

“Ah! Aquele roupão azul, eu o trouxe do Copacabana Palace ! Tenho outro, 

 verde, que veio do Caesar Park! “ Adoro colecionar roupões! Mas como ficou sabendo do meu roupão?

 

Luis não teve como recuar. Sentado na ponta da cadeira, todo sem jeito, teve que explicar, tim-tim por tim-tim  a sua imperdoável invasão de privacidade.

Mariana foi ficando aos poucos mais e mais vermelha, de vergonha e de raiva      

No fim, quando o Luis quis se despedir, estava tão nervosa que não resistiu. Aplicou-lhe um par de socos, que o deixaram desacordado. Era sem dúvida uma boa estudante de educação física....

Logo sentiu-se melhor, mais aliviada,  tranqüila.

Por fim, ficou até com pena do coitado; esperou que ele voltasse  a si e pedindo-lhe desculpas, pegou uma vasilha com água morna e começou a limpar com cuidado o sangue que escorria do nariz ainda debilitado do Luiz. 

Depois de alguns minutos, quase carinhosamente,  perguntou:

“Você aceitaria uma xícara de chá?”  

“Sim, obrigado; com uma colherinha só de açúcar, Corina!.”

Corina-Mariana foi até a janela e puxou lentamente as cortinas, com um gesto suave e elegante.

E nós nunca conseguimos saber o que aconteceu no apartamento 41-E....