O relógio na parede marca três da manhã. Farto do desconforto daquela cama, levanto-me: corpo suado; enquanto o coração palpita em alguma região do peito. Trêmulo, tendo acender a lâmpada, que se queima. O silêncio na casa lembrou-me a falta; para a saudade que me chega via memória de quem se vai. Sento-me à mesa da cozinha: Soledade, sirva-se desta ausência; e quando já disposta à mesa, sem cerimônia, tome comigo o vazio perpétuo desta última xícara de chá. Não há muito o que, servindo, possa satisfazer do corpo a carência; do espírito a urgência por meio da qual obter o alívio da vida por cujo fim se tem buscado. E me faço fogo feito; o que, em sonhos, por sobre a carne, prometem-me a cura do mal de ser: que a mim suponho o sopro do qual se fez vida; para o fôlego que sossega por morrer em si.

O relógio na parede ainda marca três. E farto do desconforto de mais um dia, proponho-me banho quente: lavando a seco o horror da beleza morta nas ferrugens da mecânica da vida mal expressa em meu rosto. E como quem se delicia com um pedaço de marca e moda, visto, no quarto, a pele que por ódio fiz perder-me no chuveiro. Maravilhoso desperdício: poder vestir de corpo esta alma vazia de sonhos. Tornar-se amor a quem do desafeto sobrevive é ainda a magna utopia dos homens. E me arrasto logo cedo por um pedaço do Outro a que chamei: Dessemelhante. Ali sentado, relembro-me daquele dia: os olhos fechados; um corpo frio sobre a cama; o lívido tom da pele pareceu-me confirmar a hipótese. Minha respiração me sufoca, falta-me o ar que a vida prometeu-me quando, na agonia dos que se afogam, postulei misericórdia.

Na caixa de remédios, pego calmante. Ao fogo, chá de cidreira: modo de superar o frio suor das mãos. Os vidros da janela refletem a imagem de uma criança: cores, por lágrimas, distorcidas fazem a evolução do menino que fui ao homem que me torno. E na ausência do beijo terno que me possa ao menos da noite perjurar a calma e tecer meu sono, com aço frio, me acaricio por espanto. Percebo a vida, por hora, desvelada na pálida agonia de minha apática pele: lúgubre, apaixono-me pelo prazer de minha dor. No pulso, um resquício de movimento fez saber um coração que bate: um tempo constante e sem causa. Um espírito sem propósitos. No peito, um desejo enorme de coisa alguma a esta vida: e haverá, no cosmos, espaço pronto a este tédio? Será o mundo berço ao inane que hoje rasga as frias fibras do meu peito?

Que o relógio na parede marca três... e na indolência de minha voz vez ou outra percebida; quando na obscuridade estática da vida, gritarei em cada canto tudo aquilo que me falta: uma mãe a quem amar; um pai por quem chorar; meus irmãos de abraços feitos quando claro em meus defeitos fiz-me aceito no perdão. Tua falta hoje faz tudo isto. Falta cor à foto cinza; um motivo à criação; a razão deste tormento quando o teu falecimento pareceu-me sem razão. Soledade, sirva-se desta ausência; e quando já disposta à mesa, sem cerimônia, tome comigo o vazio perpétuo desta última xícara de chá. Assim, mais calmo, enfim... levanto-me. Caminho rumo ao quarto: conhece o medo de quem dorme? Sabe o horror do sono REM? Porque logo deito-me no túmulo. E o sonho da vida... recomeça...

 

Autor: David Guarniery

Idade: 26 anos

Início: 02:00

Término: 02:32

Temo Gasto: 32 minutos

Dia: Segunda-Feira

Data 11 de junho de 2012

Classificação: Crônica Lírica Psico-Filosófica

Obra: Metáforas da Liberdade

In Memoriam:

*Éllen Cipriano Borges

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Brasil/ Paraná/ Cambé