RESUMO: Na antropologia o debate acerca da ética é bastante recente e marca um novo posicionamento dos antropólogos em relação às sociedades. Isso ocorre quando os cientistas começam a pensar sobre as implicações éticas do seu trabalho, nas consequências das suas relações com os informantes na pesquisa de campo e, sobretudo, na sua prática enquanto ator social. Assim, o carácter ético que envolve a pesquisa antropológica sugere uma consciência, por parte do pesquisador, das consequências do seu trabalho nas mais diversas áreas e, desse modo, lapida o seu comportamento de acordo com o que seria mais plausível e “moralmente” correto para o grupo do qual ele faz parte. No Brasil, na década de 60, por exemplo, as preocupações éticas não se alongavam para além das normas impostas pelos costumes. Nos dias de hoje, essas normas integram um código de ética. Desse modo, analisaremos os compromissos ou responsabilidades éticas que devem permear o trabalho dos antropólogos e apontaremos, de forma breve, qual foi o contexto histórico que levou a necessidade de pensar as questões éticas nas pesquisas com/em seres humanos de forma mais efetiva. Por fim, abordaremos a inadequação de algumas questões éticas referentes às pesquisas antropológicas, a partir da experiência de trabalho de campo do antropólogo Bourgois que instaura a seguinte dicotomia: neutralidade científica versus participação politica.

Palavras-chave: Antropologia; ética; neutralidade científica; participação política.

Introdução

 Comecemos pela seguinte indagação: o que é ética? De acordo com o dicionário da língua portuguesa (2012) “ética” diz respeito a “ um conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um individuo, de um grupo social ou de uma sociedade”. Assim, temos mais adiante, o exemplo da “ética profissional”, dando a entender que cada profissão possui um código de ética específica.

Na antropologia o debate acerca da ética é bastante recente e marca um novo posicionamento dos antropólogos em relação às sociedades. Isso ocorre quando os cientistas começam a pensar sobre as implicações éticas do seu trabalho, nas consequências das suas relações com os informantes na pesquisa de campo e, sobretudo, na sua prática enquanto ator social. Assim, o carácter ético que envolve a pesquisa antropológica sugere uma consciência, por parte do pesquisador, das consequências do seu trabalho nas mais diversas áreas e, desse modo, lapida o seu comportamento de acordo com o que seria mais plausível e “moralmente” correto para o grupo do qual ele faz parte.

No Brasil, na década de 60, por exemplo, as preocupações éticas não se alongavam para além das normas impostas pelos costumes. Nos dias de hoje, essas normas integram um código que baseia-se, principalmente, na probidade de não adulterar as diversas etapas da pesquisa, nem da sua publicação, não manipular resultados, tudo isso a fim de garantir a confiabilidade da pesquisa produzida. As transgressões dessas normas são analisadas pelos pares e pelos superiores institucionais.

No caso das pesquisas antropológicas podemos dizer que essas normas se estendem ainda mais, visto que o antropólogo tem um compromisso com os sujeitos da sua pesquisa que não se encerra no momento que este publica o seu trabalho, divulgando, assim, os resultados da sua pesquisa. Nas palavras de Luís Fernando Cardoso (2010):

“ No mundo contemporâneo, cada dia mais complexo, questões locais e globais se imbricam de forma intensa; aí o trabalho do antropólogo deixou de ser apenas mais uma visão sobre o mundo, mais uma interpretação da realidade, para se transformar numa visão cientificamente valida, com poder de interferir significativamente no mundo social”.[2]

Desse modo, analisaremos os compromissos ou responsabilidades éticas que devem permear o trabalho dos antropólogos e apontaremos, de forma breve, qual foi o contexto histórico que levou a necessidade de pensar nas questões éticas nas pesquisas com/em seres humanos de forma mais efetiva. Por fim, abordaremos a inadequação de algumas questões éticas referentes as pesquisas antropológicas, a partir da experiência de trabalho de campo do antropólogo Bourgois, e a dicotomia: neutralidade científica versus participação politica.

Pesquisa com seres humanos versus pesquisas em seres humanos

Antes de tudo, torna-se imprescindível compreender o contexto histórico que suscitou a necessidade de reafirmar os princípios éticos nas pesquisas com seres humanos.

Durante muito tempo a ciência moderna, iniciada no seculo XVI, manteve intacta a certeza de ser uma atividade objectiva e, sobretudo, benéfica para toda a humanidade, atuando de forma neutra e objectiva na produção do conhecimento. No entanto, essa “fé” na ciência, predominante durante anos, foi colocada em pauta no século XX, mais precisamente com a Segunda Guerra Mundial.

Toda a humanidade, sem sombra de dúvida, ficou chocada ao saber das atrocidades cometidas durante o nazismo, porém, uma publicação específica teve um forte impacto, um livro elaborado por Alexander Mitsherlich e Fred Mielke[3] que documenta e comenta os julgamentos de Nurembergue a que foram submetidos os médicos que torturaram centenas de pessoas durante o nazismo, a fim de tentar conhecer os limites de tolerância humana a condições extremas. Com certeza essas experiências com seres humanos, durante a Segunda Guerra Mundial, foram o fio condutor que suscitou a necessidade de se pensar em princípios éticos nos procedimentos das pesquisas com seres humanos. Desse modo, ao contrário do que se acreditava anteriormente acerca dos benefícios inerentes a ciência, esses fatos revelaram o outro “lado da moeda”, ou seja, os perigos que as pesquisas que desviam-se das condutas moralmente corretas podem trazer para a sociedade. A ciência não é inerentemente boa e benéfica para a humanidade se mal gerida.

 Dos horrores revelados nesse julgamento nasceu o código de Nurembergue, em 1947, como uma maneira de reagir as atrocidades cometidas durante essa época e, sobretudo, tentar evitar novas condutas desviantes. Mais adiante, em 1948, a Associação Médica Mundial reeditou princípios básicos de benevolência na sua Declaração de Genebra, assim como nas sucessivas edições.[4] Dos itens presentes na lista do Código de Nurembergue constava que nenhum ser humano deveria ser incluído numa pesquisa sem ter compreendido os objectivos dela e consentido com seus riscos. Esse item visava, principalmente, evitar o que aconteceu durante o período nazista em que centenas de pessoas participaram involuntariamente de pesquisas que, na maioria das vezes, as levaram a morte. Logo, podemos observar que a principal preocupação ética nas pesquisas científicas é de tentar evitar os exageros das ciências médicas que possam colocar em risco a vida de pessoas.

Após o incidente da Segunda Guerra Mundial a comunidade científica se depara com outros problemas na esfera médica - relativos a pesquisa com seres humanos-, levando a crer que haveria perigo da ciência “desandar” novamente. Um médico da Universidade de Harvard, em 1966, publicou um levantamento com 22 projetos desenvolvidos por cientistas norte-americanos, em qua a saúde das pessoas envolvidas na pesquisa tinha sido gravemente prejudicada.[5] E a conclusão que chegaram com esse estudo foi a de que as pessoas envolvidas na pesquisa eram, quase todas, parte do que chamamos populações vulneráveis, ou seja, essa conclusão apontava para o questionamento da impossibilidade dessas pessoas negociarem sua participação nas pesquisas, apesar do consentimento livre e esclarecido.

Com essa digressão o que queremos, independente das divergências em torno de certos pontos particulares da ética em pesquisa, é evidenciar o âmbito no qual surge o código de ética das pesquisas e, com isso, mostrar a necessidade em distinguir pesquisas com seres humanos de pesquisas em seres humanos.[6] Pois foram muitos os cientistas sociais que questionaram o uso da experiencia médica como matriz para questionamento ético nas demais ciências, visto que os perigos inerentes a tais pesquisas são de naturezas completamente diferentes.[7]

As pesquisas em seres humanos implicam uma intervenção, podem causar danos físicos e até a morte, assim, nada mais plausível que “se exija que aquele que vai sofrer a intervenção saiba o máximo possível sobre a pesquisa para poder avaliar as implicações ou consequências, em seu próprio corpo, inclusive, do trabalho que será realizado”.[8]

No entanto, o mesmo não ocorre com as pesquisas com seres humanos, visto que não há intervenção, e sim uma relação de interlocução.

A partir disso, observamos que os compromissos éticos do antropólogo distinguem-se dos compromissos éticos pelos quais os pesquisadores da área biomédica estão embasados. Nós, enquanto antropólogos, também devemos respeito aos sujeitos das nossas pesquisas, porém não podemos comparar o modo como respeitamos os nossos interlocutores à maneira como se respeita os sujeitos da pesquisa na área da biomédica, habituado a intervir nos seus sujeitos de pesquisa, pois trata-se de tradições científicas distintas.

Os compromissos ou responsabilidades éticas do antropólogo

 No código de ética da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e no da Associação Americana de Antropologia (AAA), é possível verificar os mais diversos apontamentos para uma ética do antropólogo, o procedimento que devemos ter com nossos informantes, a interlocução com as comunidade vizinhas, o compromisso com a verdade, com a sociedade e etc. No entanto, para a grande maioria, é na prática, in locus, que surgem as primeiras questões éticas relativas à pesquisa.

Como bem diagnosticou Roberto Cardoso de Oliveira[9], a ética é um tema muito pouco discutido ao longo dos cursos de antropologia, quer na graduação quer na pós-graduação, embora seja muito debatido quando associado à atividade de pesquisa de alunos e professores.[10] Consideramos bastante pertinente esse comentário visto que, na maioria das vezes, o pesquisador se defronta com questões éticas quando já está atuando, sem ter dito antes qualquer “preparo” sobre os aspectos éticos que, iminentemente, abarcam todo e qualquer trabalho de pesquisa, sobretudo, em pesquisas com/em seres humanos.

Roberto Oliveira (2010) nos fala sobre um debate que tem sido suscitado na comunidade antropológica, recentemente, tanto na Associação Brasileira de Antropologia (ABA), quanto na Associação Americana de Antropologia (AAA), e que merece ser destacado. Esse debate tem como referência uma publicação da AAA intitulada Anthropology News, divulgado em Setembro de 2009[11]. Essa publicação trata de uma discussão da ética na antropologia, e um dos temas debatidos diz respeito a pertinência de mecanismos de sanção ou reprimenda da actividade de antropólogos cujo trabalho não estivesse de acordo com os princípios éticos estabelecidos no que concerne as pesquisas antropológicas[12]. Assim, de acordo com Roberto Cardoso, durante mais de um século, a AAA contou com mecanismos de reprimenda para os antropólogos que “saiam” dos princípios éticos orientadores da pesquisa antropológica. No entanto, é curioso observar que durante todo esse tempo, apenas um antropólogo foi punido: Franz Boas, conhecido como a maior referência da Escola Histórico- Cultural. Franz Boas foi punido pela AAA “por críticas que ele fez a suposta actividade de antropólogos estadunidenses como espiões na primeira Guerra Mundial”[13] . Essa punição, no entanto, foi revista em 2005, já após o falecimento do antropólogo.

Então, o que nos diz esse caso particular de Franz Boas? Aponta para a complexidade e dificuldade que permeia o âmbito das Associações, tanto a brasileira quanto a estadunidense, quando trata-se de punir ou estabelecer tipos de punição para os associados que desviam-se das orientações éticas, pois elas não possuem instrumentos adequados para tal. Ainda, “ nem a ABA nem a AAA são associações que regulamentam ou que viabilizam o acesso ao trabalho dos profissionais da área”[14].

Assim, Roberto Oliveira (2010)[15] destaca três compromissos ou responsabilidades éticas que devem permear as atividades de pesquisa dos antropólogos, independente da especificidade do trabalho no qual estão debruçados. São eles: compromisso com a verdade e a produção de conhecimento em consonância com os critérios de validade compartilhados na comunidade de pesquisadores; o compromisso com os sujeitos da pesquisa e, por fim, o compromisso com a sociedade. Logo, a divulgação dos resultados da pesquisa tornam-se uma obrigação moral do pesquisador, tendo como objectivo contribuir para o esclarecimento do cidadão e da sociedade sobre o tema abordado.

Deste modo, o compromisso com a verdade diz respeito a questão de que não é permitido ao pesquisador falsear os dados da pesquisa.

No que concerne ao compromisso com os sujeitos da pesquisa, tem a ver com a ideia de respeito aos sujeitos da pesquisa e, também, associa-se a ideia de consentimento desses sujeitos com o trabalho que o antropólogo fará. Tradicionalmente, entende-se como consentimento a aceitação em participar da pesquisa, expressa no engajamento ou no consentimento implícito, sem a necessidade de um documento assinado que comprove tal consentimento, tal como exigem certos órgãos de regulação ética. É certo que, no caso das pesquisas antropológicas, falar de um consentimento formal, requerido através de uma assinatura, é bastante problemático. Visto que, em alguns casos, o consentimento livre e esclarecido, exigido por alguns órgãos de regulação ética, pode por em risco a situação ou condição de vida dos participantes da pesquisa, como nas pesquisas sobre atividades ilegais, tais como tráfico de drogas, de órgãos, de mulheres. Oliveira[16] vai mais além e afirma que tal procedimento também pode ser problemático em outros casos, tas como aqueles que inibem ou dirigem excessivamente o discurso dos sujeitos da pesquisa. E outro ponto crucial, que merece ser destacado, é que qualquer que seja a actividade de pesquisa do antropólogo, o foco mais elaborado da pesquisa só é definido ao longo  do trabalho, ou seja, a obtenção de qualquer consentimento previsto na Resolução de CNS 196/1996[17] antes do início do estudo, torna-se inviável. Mesmo que o antropólogo já tenha, a priori, um problema central, sempre haverá reajustes a serem feitos ao longo do percurso. “E, se o consentimento livre e esclarecido significa que os sujeitos têm que saber tudo o que será abordado e todos os temas que o pesquisador desenvolverá para a publicação depois de conclui a coleta de dados, a pesquisa será inviabilizada” [18].

Recentemente, o código de ética da AAA, fez uma nova interpretação sobre o consentimento livre e esclarecido, a responsabilidade do pesquisador para com os sujeitos da pesquisa torna-se mais ampla, não necessita mais de uma assinatura, no entanto, a responsabilidade não termina no primeiro contato, ou seja, estende-se para a publicação do trabalho, é um compromisso permanente, que não se traduz numa assinatura, mas permeia todo o processo de trabalho, desde a coleta de dados ao momento da publicação da pesquisa final.

No que diz respeito ao compromisso com o cidadão e com a sociedade, o pesquisador deve esclarecer a sociedade sobre a problemática abordada no trabalho e, caso seja necessário, deve vir a público sempre que perceber que manipulações indevidas estão sendo feitas sobre a sua publicação, motivadas por interesses que ameacem, por exemplo, os sujeitos da pesquisa. Grosso modo, o pesquisador tem a obrigação de caracteres ético-moral para com a verdade, para com os sujeitos da pesquisa e para com a sociedade.

Confrontando as éticas da etnografia

Nessa parte refletiremos acerca da experiência do trabalho de campo do antropólogo Phillipe Bourgouis, abordada no seu texto Confronting the ethics of ethnography[19], no qual o autor se depara com dilemas éticos, ao longo do seu trabalho, e o que ele chama de inadequação da ética aos problemas relativos a pesquisa antropológico e que, na minha opinião, relacionam-se ao contexto no qual se impõe a necessidade de reafirmar os princípios éticos, como vimos anteriormente, voltados mais para a pesquisa biomédica. Desse modo, existiria uma inadequação da ética devido a sua “essência” biomédica, ou seja, por ter sido uma ética desenvolvida a partir das experiencias médicas desviantes com o propósito de evitar tais exacerbações que podem por em risco a vida de seres humanos.

Phillipe Bourgouis nos apresenta a sua experiência de trabalho de campo e, simultaneamente, os dilemas éticos com os quais ele se deparou ao longo da sua pesquisa. A tragédia humana e política foi o dilema principal com o qual ele se defrontou na sua pesquisa etnográfica na América Central e, como ele mesmo afirma, o obrigou a enfrentar a inadequação e contradições atuais nas definições de ética em pesquisa na antropologia, especificamente a norte-americana, mas que não nos impede de pensar de forma mais abrangente.

De acordo com o autor, tais dilemas éticos surgem dentro da tensão epistemológica imposta pela tradição intelectual nos Estados Unidos, supostamente apolítico, no qual se apresenta a dicotomia: ciência versus política.

Para Bourgouis, tradicionalmente a disciplina cita uma dimensão limitada de dilemas éticos, dentro os quais, os mais significativos, veremos logo abaixo:

  • Nos preocupamos se realmente os sujeitos de nossa pesquisa tem consentido de uma maneira informada ao nosso estudo;
  • Nós refletimos sobre a honestidade da nossa apresentação;
  • Não roubar segredos cerimoniais;
  • Defender o relativismo cultural:
  • Preservar o anonimato dos sujeitos;
  • Nos sentimos culpados por violar a privacidade dos envolvidos na pesquisa:
  • Nos preocupar com a responsabilidade para com a comunidade de acolhimento;
  • Não tirar fotografias de forma indiscriminada;
  • Nos preocupamos com o mau uso do nosso material de pesquisa;
  • Não por em risco o acesso de futuros colegas a comunidade.

Assim, esses seriam as questões éticas de vital importância que precisamos enfrentar durante nosso trabalho de campo. Mas, para Bourgouis, não devemos nos limitar apenas essas questões pois existe, também, as dimensões morais e humanas das estruturas políticas e económicas que assola a maioria dos povos com os quais os antropólogos tem mantido contato e feitas suas pesquisas. No entanto, a tendência geral tem sido para evitar esses questionamentos em contrapartida a um enfoque teórico sobre os signos e símbolos fora do contexto social.

As questões que o autor nos coloca, e são centrais para compreendermos o que ele quer nos dizer: podemos analisar os problemas urgentes enfrentados pelos sujeitos de nossas pesquisas e ainda obedecer a disciplina ética? Como investigar relações de poder e cumprir obrigações de pesquisador para obter o consentimento informador? Assim, seria muito mais difícil satisfazer esse código de ética se a pesquisa estiver voltada para temas como marginalização e opressão. E, na maioria das vezes, a solução encontrada pelos antropólogos é de evitar analisar as relações desiguais de poder e, assim, orientar seus estudos no caminho mais seguro, concentrando-se no exótico.

No entanto, de acordo com o autor, um imperativo logístico poderia ser avançado para que os antropólogos culturais pudessem querer atribuir prioridade a análise de desigualdades de poder em suas pesquisas; ao contrário dos filósofos, historiadores, os antropólogos estudam seres humanos vivos. Além do mais, diferenciam-se dos métodos das ciências humanos e outras ciências que também estudam os seres humanos, pela técnica da observação participante. Desse modo, o trabalho de campo, o contato intenso com os sujeitos da pesquisa, levaria o antropólogo a “aventurar-se no real” e permitiria um espaço privilegiado para o contato com a tragédia humana politicamente imposta.

Logo, surge as seguintes indagações: será que a responsabilidade social tem que contradizer o compromisso com o relativismo cultural? Colocaria em risco a objectividade, a neutralidade científica?

A partir do que o autor presenciou na sua pesquisa antropológica, as violações aos direitos humanos, a tragédia desses povos, miséria nos quais eles vivem, Bourgouis optou por denunciar tais violações aos direitos humanos e seguir o que ele chama de responsabilidade social. No entanto, ele nos fala que a reacção académica, acerca das denúncias de violação aos direitos humanos, não foi positiva. Para além de outras questões, tais como ter violado alguns princípios éticas relacionadas a pesquisa, como o direito de privacidade, ter prejudicado o acesso aos colegas a comunidade de estudo, como outros itens, o autor indica que o seu testemunho na mídia, sobre a violação de direitos humanos por ele presenciados, foi o fator crucial que o levou a ter violado a ética tão seriamente. Se não fosse isso teria permanecido uma história pessoal.

Um antropólogo não deve denunciar violações de direitos humanos se isso implica violar uma série de leis dos governos do país ou contrarias ao consentimento informado. O autor vai mais além e afirma que o problema está enraizado na epistemologia norte-americana de relativismo e “ciência livre de valores”, essa manifestação apolítica se manifesta de forma latente dentro da académia em uma relação de fobia a mídia, e a qualquer espécie de “ativismo politico”. E o questionamento de Bourgouis que se impõe, de maneira inexorável, é se devemos manter a denúncia de violação dos direitos humanos fora do domínio público em nome da ética e do rigor científico?

De fato, esse problema nos faz refletir sobre o nosso papel social para com esses povos e na responsabilidade que temos diante desses problemas. Pois o antropólogo não é apenas um cientista afastado da sociedade no momento que está praticando suas pesquisas, na busca de conhecer melhor o “outro”, ele é, antes de tudo, um cidadão envolvido nas questões da sua sociedade. Consequentemente, a participação do antropólogo como sujeito político leva a uma discussão mais ampla, que envolve, sobretudo, a Ética. E questiona-se a validade científica que visa a neutralidade, que vê o cientista como observador longínquo dos processos por ele analisados.´ No entanto, somos da opinião de Bourdieu:

“A compreensão de um conhecimento antropológico orgânico, militante, cidadão, ou de um intelectual colectivo fazem brotar questões novas no debate académico, de forma alguma, porém, o caráter de uma política (…) de intervenções no mundo político anula regras em vigor no campo científico. (BOURDIEU,2001)”.[20]

Conclusões:

A ética na pesquisa antropológica não é, como nos apontou Cardoso, um tema constante durante a graduação, e na maioria das vezes nos defrontamos com os dilemas éticos durante a pesquisa, sem ter ao menos uma preparação teórica sobre tais questões. A antropologia se depara com essas questões constantemente, o que suscita a necessidade de pensarmos nos procedimentos adequados durante a pesquisa, na conduta “correta” durante a coleta de dados e, sobretudo, nos limites da disciplina. Como observamos anteriormente, o trabalho do antropólogo não termina com a publicação dos dados coletados durante a pesquisa, vai muito além disso, constitui um comportamento ético.

Os dilemas que são colocados quanto a participação dos antropólogos no debate político são incontáveis. Assim, compartilhamos a ideia de Bourdieu de que tal participação na arena política não desqualifica o trabalho, pelo contrário, a participação nesses debates corresponde ao momento do antropólogo inserir-se na prática, e usar o seu trabalho como meio de interferir na configuração política, de forma efetiva.

Bibliografia:

Philippe Bourgois, “Confronting the Ethics of Ethnography: Lessons from Fieldwork in Central America,” in Ethnographic Fieldwork: An Anthropological Reader, ed. Antonius C.G.M. Robben and Jeffrey A. Sluka (Malden, MA: Blackwell Publishing, 2007): 288-297.

BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2; por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CARDOSO,Luis Fernando. Revista anthropological, ano 14, vol.21 (2): 191-215 (2010).

FONSECA, Cláudia. Que ética? Que ciência? Que sociedade? In: Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Editora: UNB. Brasília, 2010.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso. A antropologia e seus compromissos ou responsabilidades éticas. In: Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Editora: UNB. Brasília, 2010.



[1] Mestranda em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Coimbra (UC-Portugal).

[2] CARDOSO,Luis Fernando Cardoso . Revista anthropological, ano 14, vol,21(2):191-215 (2010).

[3] Mitsherlich. A, MIELKE F. Midizen ohne menschilich keit. Frankfurt. am:1978.

[4] FONSECA, Claudia. Que ética? Que ciência? Que sociedade? In: Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Editora: UNB. Brasília, 2010.

[5] Ibid.,p.45

[6] OLIVERIA, Cardoso. Revista anthropological, Op. Cit.

[7] FONSECA,Claudia. Que ética? Que ciência? Que sociedade? In: Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Op. Cit.

[8] OLIVEIRA, Cardoso. Revista anthropoligical, Op. Cit.

[9] OLIVEIRA, Roberto Cardoso. A antropologia e seus compromissos ou responsabilidades éticas. In: Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Editora: UNB. Brasília, 2010. P.25-38

[10] Ibid., p.25

[11] Ibid., p.25

[12] Ibid., p.26

[13] Ibid.,27

[14] Ibid.,27

[15] Ibid.,28

[16] Ibid.,29

[17] Ibid.,29

[18] Ibid.,29

[19] Philippe Bourgois, “Confronting the Ethics of Ethnography: Lessons from Fieldwork in Central America,” in Ethnographic Fieldwork: An Anthropological Reader, ed. Antonius C.G.M. Robben and Jeffrey A. Sluka (Malden, MA: Blackwell Publishing, 2007): 288-297.

[20] BOURDIEU, Pierre, 2001. Contrafogos 2; por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.