Antropologia, Direitos Humanos e os Direitos Indígenas*

 

Lívia Oliveira Amorim**

Mariana Moura Borba

Sumário: 1 Introdução; 2 Antropologia; 3 Direitos Humanos; 4 Direitos indígenas: fundamentos constitucionais 5 Igualdade x Diferença; 6 Considerações finais; Referências

 

RESUMO

Abordam-se neste trabalho questões referentes aos Direitos Humanos e sua relevância no campo da Antropologia. Destaca-se a importância de tais direitos no que tange a situação dos índios no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE

Índios. Fundamentos Constitucionais. Interesses indígenas.

Temos direito a reivindicar a igualdade quando a desigualdade nos inferioriza; temos direito a reivindicar a diferença quando a igualdade nos descaracteriza”.

(Boaventura de Sousa Santos)

 1 INTRODUÇÃO

Ao enveredar pelo caminho da antropologia aplicada ao estudo dos Direitos Humanos, em especial dos indígenas, alguns problemas serão suscitados. Dentre ele temos a compreensão da antropologia como mecanismo para elucidar a realidade das sociedades segundo as suas diferenças. Logo, ao seguirmos por esse viés centramos nossa atenção pela dicotomia que há na perspectiva relativizadora da antropologia e o caráter universal dos Direitos Humanos. Ora, sendo legitimo a compreensão do outro segundo as suas diferenças é antagônico crer em um direito universalista que abranja a totalidade das etnias.

Sendo assim, problematizaremos a questão dos indígenas como parcela distinta da sociedade ao requisitar direitos particulares e pertinentes a sua cultura, pois essa afirma sua identidade.

 

2 ANTROPOLOGIA

O projeto antropológico se refere ao reconhecimento, conhecimento e compreensão de uma sociedade diversificada, ou seja, apenas poderá ser considerada antropológica uma abordagem que considere o estudo das múltiplas dimensões do ser humano em sociedade, através do estudo a partir de observações diretas assim como outras técnicas de investigação. No entanto, a antropologia não estuda apenas tudo aquilo que compõe uma sociedade, ela estuda também todas as sociedades humanas, ou seja, as culturas da humanidade bem como sua diversidade histórica e geográfica. (LAPLANTINE, 2007)

A análise antropológica consiste em construir sistemas a partir de uma realidade que parece de início, como uma realidade fragmentada. A aparência fragmentada e destituída de significação decorre da exterioridade do observador e a construção de sistemas coerentes pela antropologia deve corresponder a uma integração real, constantemente realizada pelos membros da sociedade portadores da cultura, através de processos que são, o mais das vezes, inconscientes. Esse tipo de investigação pressupõe uma noção de totalidade integrada cuja reconstrução é o objetivo último do pesquisador. (DURHSAM, 1986)

A Antropologia sempre demonstrou especial interesse pelas minorias despossuídas e dominadas de todos os tipos (índios, negros, camponeses, favelados, desviantes e “pobres” em geral) em detrimento do estudo dos grupos ou classes politicamente dominantes e atuantes. Quanto aos temas, sempre revelou uma afinidade particular por aqueles que eram claramente periféricos à grande arena das lutas políticas: dedicou-se muito mais ao estudo da família, da religião, do folclore, da medicina popular, das festas do que à análise do Estado, dos partidos políticos, dos movimentos sindicais, das relações de classe, do desenvolvimento econômico. (DURHSAM, 1986)

Dentre as diversas áreas que compõem a antropologia é possível mencionar a antropologia social e cultural, que por sua vez corresponde

A tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suas criações artísticas (LAPLANTINE, 2007, p.19)

A antropologia social não pretende explicar apenas ‘tudo de todas as coisas’ sobre aquilo que ela investiga, ela escolhe explicá-los em sua totalidade, explicá-los o máximo possível. Marcellino (2005, p. 47) afirma que a antropologia social

defende o ponto de vista de que as culturas humanas se equivalem como valor e experiência, não se reduzindo umas às outras , não sendo mensuráveis umas pela escala de uma suposta ‘evolução’ de outras e explicando-se plenamente, cada uma delas, de acordo com os termos da lógica de seu próprio sentido.

            A antropologia social é, portanto, uma ciência voltada à compreensão da sociedade humana a partir de suas representações sociais, ou seja, o que os seus sujeitos fazem quando vivem e pensam na vida cotidiana (MARCELLINO, 2005)

3 DIREITOS HUMANOS

            Segundo o autor Alexandre de Morais, Direitos humanos fundamentais podem ser entendidos como o conjunto de direitos e garantias que tem por objetivo o respeito a sua dignidade por intermédio da proteção contra o arbítrio do Estado e o estabelecimento de condições mínimas de vida.

            Pérez Luño apud Alexandre de Morais (2002, p.40) apresenta uma definição mais completa acerca dos direitos fundamentais do homem,

Um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional.

            Outra definição para os direitos humanos é dada por José Castan Tobeñas apud Alexandre de Morais (2002, p. 40), a saber,

Aqueles direitos fundamentais da pessoa – considerada tanto em seu aspecto individual como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive normas jurídicas positivas, cedendo, não obstante, sem seu exercício, ante as exigências do bem comum.

                       

            Apesar de serem encontrados diversos conceitos de direitos humanos, para o leitor, o real significado poderá ser insatisfatório, uma vez que a exatidão, especificidade e abrangência do conteúdo podem não ser alcançadas.

           

4 DIREITOS INDÍGENAS: FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS

Segundo a Fundação Nacional do Índio - FUNAI  

Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão-somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Há também 63 referências de índios ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista.

A Constituição de 1988 demonstra uma grande preocupação do Constituinte ao elaborar um sistema que visa proteger os direitos e interesses dos índios. De certa forma conseguiu, no entanto isto foi feito de forma razoável, uma vez que não alcançou um nível de proteção satisfatório. Caso fosse aceito o texto do Anteprojeto da Comissão Afonso Aurinos, provavelmente o texto constitucional seria mais justo e satisfatório (SILVA, 2002).

É bem verdade, contudo, que a Constituição avançou bastante nos aspectos referentes à questão indígena, contendo em seu texto vários artigos sobre o índio, como a disposição sobre as propriedades de terras por eles ocupadas, a autoridade da União para legislar sobre população indígena, preservação de suas línguas, usos, costumes etc.      No seu art. 231, a Constituição, reconhece a organização social, costumes línguas, crenças e tradições do índio, reconhece também a existência de minorias nacionais, instituindo normas para proteger principalmente suas línguas, costumes e usos.

            Fala-se em populações indígenas e comunidades indígenas ou dos índios, certamente fazendo referência a comunidades culturais, reveladas na identidade étnica, e não como comunidade de origem vinculada ao conceito de raça natural, uma vez que este conceito foi superado, pois existe certa impossibilidade prática de achar um critério que defina a pureza da raça. (SILVA, 2002)

            A expressão ‘nações indígenas’ foi recusada pela Constituição, pois esta alegava que tal expressão singulariza o elemento humano de Estado, ou mesmo se confunde com o próprio Estado. No entanto esta falsa premissa foi a muito superada, uma vez que existem Estados multinacionais ou multiétnicos, ou seja, existe Estado sem nação (ex. Vaticano) e nação sem Estado (ex. judeus até a fundação do Estado de Israel).

            Porém, se for utilizado o conceito de nação de Macini apud Silva (2002, p. 826), que por sua vez é semelhante aos demais, certamente poderá ser aplicado às comunidades indígenas, pois para ele, nação “é a reunião em sociedade de homens, na qual a unidade de território, de origem, de costumes, de língua e a comunhão de vida criaram a consciência social”. No entanto, observa-se que a língua comum é algo expressivo para a composição de uma nação, dessa forma cabe então falar-se em nações indígenas. Nesse sentido, o conceito de etnia é confundido com o de nação, pois etnia é uma entidade caracterizada por uma mesma língua, religião, tradição cultural e histórica, ocupando um mesmo território.

            O autor José Afonso da Silva (2002, p. 827) faz a seguinte colocação quando afirma que o que importa é o sentimento de pertinência a uma comunidade indígena:

É índio quem se sente índio. Essa auto-identificação, que se funda no sentimento de pertinência a uma comunidade indígena, e a manutenção dessa identidade étnica, fundada na continuidade histórica do passado pré-colombiano que reproduz a mesma cultura, constituem o critério fundamental para a identificação do índio brasileiro. Essa permanência em si mesma, embora interagindo um grupo com outros, é que lhe dá a continuidade étnica identificadora.

           

            A própria Constituição admite esse entendimento, quando considera no art. 231 § 1º as terras ocupadas pelos índios como “necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Da mesma forma como outras comunidades étnicas, os índios também evoluem, não param no tempo. As mudanças podem ser mais rápidas, ou mais lentas. Dessa forma, a cultura indígena constantemente se reproduz.  É possível afirmar, portanto que

Nenhuma cultura é isolada. Está sempre em contato com outras formas culturais. A reprodução cultural não destrói a identidade cultural da comunidade, identidade que se mantém em resposta a outros grupos com os quais a dita comunidade interage. Eventuais transformações decorrentes do viver e do conviver das comunidades não descaracterizam a adoção de instrumentos novos ou de novos utensílios, por que são mudanças dentro da mesma étnica. (Silva, 2002, p. 828)

            São de natureza de direito coletivo e comunitário os direitos e interesses dos índios. Da mesma forma que aconteciam nas gens, tais direitos e interesses pertencem conjuntamente a toda à comunidade e a cada índio em particular, sendo, pois indiviso e inalienável.

            Após anos de negociações, a Assembléia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas que deve proteger os mais de 370 milhões de pessoas que integram estas comunidades no mundo todo. A declaração, que possui 46 artigos, institui os padrões básicos de respeito aos direitos dos povos indígenas do mundo, que abrangem a propriedade de suas terras, acesso aos recursos naturais de seus territórios, preservação de seus conhecimentos tradicionais e autodeterminação.

            O Direito tem o desafio de encontrar soluções para os problemas da desigualdade, as cotas raciais foram uma das formas encontradas para amenizar os problemas das minorias raciais. Segundo levantamento do Ministério da Educação, 20 escolas estaduais e federais da rede de ensino superior dispõem de cotas para esse grupo populacional. O número de índios universitários aproxima-se de 5 mil: quase 1% no conjunto de 580 mil estudantes.

5 IGUALDADE X DIFERENÇA

O tema igualdade x diferença, gera manifestações odiosas como, por exemplo, a intolerância, que provoca dentre vários efeitos, a barbárie e o desrespeito à dignidade humana.  Nesse contexto, a dignidade parece ser um atributo apenas compartilhado entre iguais, e distante deles parece não existir mais nada (GONÇALVES, 2006)

O multiculturalismo significa originalmente a existência conjunta de diferentes culturas em uma sociedade. No entanto o termo se tornou uma maneira de descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional. (SANTOS; NUNES, 2003)

Segundo os autores Lisa Lowe e David Lloyd, o multiculturalismo não é encarado como um conjunto de práticas diferenciadas, mas como um terreno em que a política, a cultura e a economia formam uma dinâmica inseparável. O seu objetivo não é a identificação do que está fora do capitalismo, mas o que surge historicamente, em oposição a ele. (SANTOS; NUNES, 2003)

Alguns estudos identificam e analisam diferentes experiências de construção de alternativas de política cultural que procuram articular o reconhecimento da diferença e a luta pela igualdade e pela redistribuição, segundo princípios de justiça e direitos atentos à diversidade dos atores e à interseção de diferentes escalas: local, nacional e global. (SANTOS; NUNES, 2003)

O autor Carlos Marés, nos coloca no centro da discussão sobre a compatibilidade entre o multiculturalismo, como o reconhecimento das diferenças que historicamente fizeram dos povos indígenas coletivos inseparáveis de um território, de um modo de vida e as concepções de direitos e de justiça que a constituição dos Estados nacionais sancionou, destacando que o direito dos povos não pode ser concebido segundo a matriz individualista do direito e das teorias constitucionais liberais. (SANTOS; NUNES, 2003)

No que se refere à identidade étnica, a FUNAI afirma que

As mudanças ocorridas em várias sociedades indígenas, como o fato de falarem português, vestirem roupas iguais às dos outros membros da sociedade nacional com que estão em contato, utilizarem modernas tecnologias (como câmeras de vídeo, máquinas fotográficas e aparelhos de fax), não fazem com que percam sua identidade étnica e deixem de ser indígenas.

É necessário reconhecer e valorizar a identidade étnica específica de cada uma das sociedades indígenas em particular, compreender suas línguas e suas formas tradicionais de organização social, de ocupação da terra e de uso dos recursos naturais. Isto significa o respeito pelos direitos coletivos especiais de cada uma delas e a busca do convívio pacífico, por meio de um intercâmbio cultural, com as diferentes etnias.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao constatarmos a necessidade de mudanças ao que se refere o direito indígena, já que a igualdade jurídica não será exercida se não consideramos as diferenças, compreendemos que a diversidade cultural implica na impossibilidade de direitos humanos válidos para todas as sociedades. Em face disso, os Direitos Humanos devem corroborar para a conservação da identidade cultural.

A conservação da identidade cultural será preservada então pela existência de Direitos Humanos que respeitem as peculiaridades de cada etnia, pois então o que teremos será um etnocídio, ou seja, a descaracterização de uma cultura para se adequar a normas universalistas.

 

 

REFERÊNCIAS

 

DURHSAM, Eunice R. et al.; organizadora: Ruth C. L. Cardoso. A aventura antropológica: Teoria e Pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Direitos Fundamentais Sociais: Releitura de uma Constituição dirigente. Curitiba: Juruá, 2006.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007.

MARCELLINO, Nelson C. Introdução às ciências sociais. 14 ed. Campinas: Papirus, 2005.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002.

SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para libertar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

INDIOS DO BRASIL: O índio hoje. Disponível em: http://www.funai.gov.br/indios. Acesso em 25 de maio de 2009.



* Artigo científico apresentado à disciplina de Antropologia do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB) ministrada pela professora Kátia Núbia para obtenção de nota.

** Alunas do 2º período vespertino do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco.