Perdida na imensa vastidão do Universo, a Terra vagava, cinzenta e disforme, numa eterna deriva.
De súbito, uma voz ressoou na noite escura:
- Faça-se luz!
Repentinamente, uma centelha acendeu-se e um rasgo de luz rasgou a escuridão.
Decisiva, a voz prosseguiu:
- Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas!
Logo as águas se apartaram, dando lugar ao firmamento.
Então, a voz ditou.
- Juntem-se as águas num lugar e apareça a porção seca!
Assim emergiu a Pangeia!

Ao segundo dia a voz tornou a falar:
- Produza a terra erva que dê semente, árvore que dê fruto, e tudo segundo as suas espécies!
Em segundos, da Terra, outrora em chamas e ontem cinzenta e triste, brotou uma infinidade de vida.
No terceiro dia a voz proclamou:
- Haja estrelas no céu, para haver separação entre o dia e a noite, e que estas alumiem a terra!
O dia fechou-se repentinamente mas no céu surgiu uma multidão de estrelas e uma enorme Lua cheia.

Ao quarto dia, animada pelo poder da palavra, a voz arriscou um novo passo:
- Produzam as águas abundantemente répteis de alma vivente, e voem as aves sobre os céus!
Ultrapassados milénios de evolução assim num ápice, nos mares surgiram os Celacantos, os Peixes-Cobra, as Raias e os Tubarões; na terra surgiam os Dodos e as Avestruzes; no ar, mais leves que aqueles, voavam as Águias e os Falcões. Nas árvores, especialistas na arte da tecelagem, Aranhas montavam fatais armadilhas aos insectos.

Ao quinto dia a voz tornou a dizer:
- Frutificai e enchei as águas dos mares; e que as aves se multipliquem sobre a terra!

No sexto dia da criação, quando já todas as espécies de plantas e animais pulavam em alegre convivência a voz baixou à terra e, ajoelhando, murmurou:
- Façamos o Homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança?
Com um punhado de argila moldou dois pedaços de gente.
Deixou-os a secar ao sol e a seguir voltou. Nem uma fissura; estavam perfeitos. Agachou-se e soprou-lhes nas narinas.
Como dois gémeos, os bonecos abriram os olhos.
O homem sorria, mas a mulher não.
Teria algum defeito ou já previa o que a esperava num mundo criado por um Deus?

Alheia divina à criação, a Terra continuava a girar em torno do Sol.

Adão e Lilith fitaram-se demoradamente.

Ele estranhava-lhe os seios redondos, com os mamilos rosados, os seus longos cabelos, raiados de fogo, e a vulva, um triângulo de caracolinhos da mesma cor que a melena. Ela, o seu peito liso, os pêlos nas pernas, os músculos mais salientes, e o pénis.

Inocente, a ruiva estendeu a mão para o homem e tocou-lhe na cara ao de leve. A pele era menos macia que a dela própria. Passou-lhe a mão pela nuca e depois deixou que um dedo deslizasse pelo pomo, que se avolumava no seu pescoço.
Deliciado, ele puxou-a para si e beijou-a.

Enlaçados na relva fresca do paraíso, desfrutam do primeiro abraço. Mas chega rapidamente um momento em que ele pretende deitar-se sobre ela, que reage com uma estrondosa gargalhada.
- Ahahahahahahahahaha!
Atarantado, o homem estacou.
Aproveitando o pasmo deste, ela dá uma inesperada reviravolta e monta-o.
Embaraçado, Adão reclama:
- És feita para estares por baixo de mim e eu por cima de ti!
Mas Lilith torna a gargalhar - Ahahahahah! ? E, insolente, responde:
- Porque tenho de ficar por baixo de ti? Somos iguais! Ambos viemos da terra!

Encaixado na mulher, sem querer, o homem ejaculou.

Escutando o tumulto, o criador desceu à Terra.
Ela, com o rosto afogueado e os cabelos em desordem montava o homem, pálido e boquiaberto.

Deus, que não criara a mulher para dominar, deu-lhe um pontapé e ela resvalou para o chão. De seguida intentou espezinhá-la, para que voltasse a ser pó, mas Lilith conseguiu ser mais rápida e rastejou para trás de umas silvas, ocultando-se do olho divino.

Furioso, Deus bradava a primeira maldição: - que Lilith e todas as suas filhas fossem esconjuradas, ao longo dos séculos, até ao apocalipse.

Lilith, apagada dos escritos antigos no século III d. C., no tempo do Imperador Constantino, que mandou que fossem vertidos para o Latim, manteve-se na Cabala Judaica, mas como um espírito maligno que incendeia os homens de desejo e mata os meninos dentro do ventre das mães.
Mas essa não é a verdade.
A verdade é que Lilith, a primeira e única figura feminista do Antigo Testamento, vai ajudar Eva a parir, vai ajudar, ainda que oculta dos homens, a mulher de Noé a cuidar da logística e da alimentação na Arca de Noé, guiando-nos pelo texto "sagrado" até que ele termine: à entrada dos Hebreus na "Terra Prometida".

Lacrimoso, Adão não pára de chorar a perda da difícil amante. Então, vendo que não era bom ele continuar a lembrar-se dela, Deus decide fabricar-lhe uma outra mulher, mas desta vez a partir de uma sua costela, para que fosse submissa. Para esse efeito, soprou-lhe nos olhos e Adão caiu num profundo sono hipnótico.
Concluída a operação, com um estalar de dedos o homem despertou.
Deitada ao seu lado, Eva sorria-lhe.

Radiante, e já esquecido da outra, logo ele exclama:
- Esta sim. É osso dos meus ossos e carne da minha carne!

Satisfeito, Deus declarou:
- Multiplicai-vos! Enchei a terra e submetei-a!
- Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra!

A partir daqui ficámos com a impressão de que os animais vivem por nossa causa, que nos pertencem, e que podemos fazer com eles o que bem entendermos. Nada mais errado, que esse pobre pensamento, pois todos os animais têm o seu próprio propósito para existirem e nós somos apenas mais uma espécie animal que com ela coabita esta terra, da qual todos somos hóspedes.

Escondida, Lilith observa a cena.

A convalescer da intervenção cirúrgica, a que fora submetido sem o saber, Adão deitou-se a dormir uma sesta.
Enquanto isso, curiosa, como as mulheres haviam de ser depois dela, Eva passeava-se pelo jardim.
A saltitar, daqui para ali para não pisar as pequenas lagartixas ou outros bichinhos rastejantes, a cantarolar ela foi até à beira do rio. Sentou-se numa pedra e deixou que os pés mergulhassem na água límpida, onde numerosos peixinhos nadavam quase à superfície.
Sobrevindo-lhe um profundo ardor religioso, ajoelhou e orou:
? Obrigada, Senhor? por tudo quanto nos destes! Pela paz, pela luz e o calor? obrigada, obrigada, Senhor!

- Mulher? - Chamava uma doce voz.

Ainda em transe, Eva ergueu-se e começou a caminhar na direcção daquela voz.

No meio do jardim, serpenteando pelos ramos única macieira existente, estava Lilith, a mulher serpente, que a fitava de olhar fixo.

- Comerás de toda a árvore do jardim! Não foi assim que Deus disse? ? Sibilou a serpente.
? Sim? ? respondeu Eva -, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim não podemos comer, porque certamente morreremos!
- Claro que não morrereis! ? Disse a serpente - Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos e sereis como ele, sabendo o bem e o mal!
.

Desconhecendo a maldade, a mulher deixou-se convencer pelo desejo de saber e, colhendo uma maça, correu a levá-la ao amigo.
Este, ansioso por conhecê-la (no sentido bíblico) intentou pegar-lhe na mão e puxá-la para si, mas ela negou-se. Em contrapartida, afirmou:
- Come, Adão, o fruto da sabedoria!
Não vislumbrando nada mais sedutor que sexo, o homem pegou-a e jogou-a para o lado.
? Deixa lá isso, agora, mulher. Vamos primeiro conhecer-nos?
Mas ela não desistia. Apanhou o fruto e tornou a entregar-lho.
Então, mais para despachar aquele assunto do que por uma verdadeira vontade de saber, Adão deu uma trinca.
? Hum? Como é gostosa? - exclamou deliciado com o agradável sabor da maça.
- Eu não te dizia? ? Alegrou-se a companheira ? Agora os nossos olhos se abrirão e ficaremos a saber o que Deus sabe?

Deram as mãos e sorriram.
Buscando o seu peito, ela aninhou-se nele.

Temendo pela sua sobrevivência enquanto réptil, Lilith deslizou furtivamente pela árvore abaixo e foi rastejando, rapidamente se esfumando o seu rasto nas ervas do jardim.

Revelando, finalmente, o seu propósito, Deus referiu-se à mulher:
- Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido e ele te dominará!
Por último, referindo-se ao homem afirmou:
- Porquanto deste ouvidos à tua mulher e comeste da árvore do bem e do mal, maldita é a terra por causa de ti! No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra, porque dela foste tomado: porquanto és pó, e em pó te tornarás!

Fulminando duas pobres cabras que por ali tiveram o azar de passar naquele preciso momento, esfolou-as ainda vivas e lançou as suas peles aos pés dos dois desgraçados, ordenando-lhes que com elas cobrissem as "vergonhas". A seguir, fora do paraíso!

Envergonhados, Adão e Eva pegaram nas peles e afastaram-se com elas vestidas. Entretanto, dois inocentes animais ficavam pela primeira vez a agonizar naquela terra.