Desde tempos imemoriais, há a eterna manifestação do bem e do mal. A alma em sua missão de fazer cumprir a vontade divina veste as duas roupagens. Se expressa ora como anjo, ora como um demônio. Aqui, na minha cidade de montes claros, terra do bandeirante Gonçalves Figueira, de comedores de pequi e de bebedores de cachaça Viriatinha, não é diferente.
Na nossa curraleiragem em deixar o boi defecar para trás botando o dono para frente, a maioria da nossa gente vive presa aos preconceitos arraigados da boçalidade campesina. Uma boa parte de nós tem a doença do ego inchado. Pois é, "seu" Zé: "Nos emprenhamos de ar para poder parir vento!".
O povo, com sua sabedoria popular, nos dão conta de gente boa que enche de orgulho os nossos corações robustos, mas, também, de gente má, uns "distorcidos". São os metidos, posudos, testa enrugada, "peido fino", os bestas que nem mula, os tapados. "Antolhados" que usam viseira imposta e só enxergam o que lhes é posto à frente...
Desse universo de pequenos déspotas, reis e rainhas da chapada, heróis e malfeitores do cotidiano se fez o nosso passado e vivencia o presente, a base para o nosso futuro. Deus-Pai, para não ficar com as suas vastas mãos abanando, criou os anjos do sertão, os demônios e a nossa curraleiragem.
Uns Dons Camilos em seus pequenos mundos!
Por essa terra de pequi com o seu licor, dos mandiocais eleitorais, construiu-se a nossa lenda de valentes e, também, histórias de bondade e mesmo de santidade. Por aqui tivemos a beleza dos acordes da rabeca de Zé Côco do Riachão, da música e da poesia de Zezinho da Viola, o piano de Dulce Sarmento e o violão de Antonio Augusto e as poesias de Cândido Canela.
Tivemos o glamour da vida noturna, com a Boate Alhambra e o cassino "Minas Gerais" de Sinval Amorim enchendo as nossas burras de dinheiro, numa realização de tantos sonhos, dinheiro esse oriundo dos visitantes e negociantes que entulhavam as nossas ruas, mesas de jogatina, cabarés e alcovas tropicais.
Volta e meia aparecia algum cadáver em um beco, ou algum visitante que perdia tudo nas mesas do pano verde e arrependido dava um pipoco na própria cabeça.
Muitos visitantes vinham contratar nossos pistoleiros, Véi da Lili, Arlindo Tiririca, Bigode de Arame, para dar cabo de algum contendor, um candidato pobre que queria dar o golpe do baú casando com filha de fazendeiro rico, um concorrente político ou comerciante.
Infelizmente aqui viveram também alguns fazendeiros, bastardos que projetaram o bom nome do nosso plantel de gado no cenário nacional mantendo seus peões trabalhando em condições desumanas, em cárcere privado, milhares dos quais brutalmente assassinados para não receberem os pagamentos que lhes eram devidos, no fim do mês.
As suas fazendas imitaram, com requinte, os campos de concentração nazistas e os fundos das lagoas estão repletos de cadáveres de inocentes que foram eliminados ao longo da nossa história. Das nossas sarjetas, num contraponto a esses canalhas assassinos, ou em sua homenagem, nasceram e ergueram-se demônios como Janjo, Pereirinha, Nobreza, Pé de Bode, Canário Pardo, Joaquim Vermelho e Negão da Titia.
Deus-Pai cria as Centelhas e as envia a esse mundo em missão. Umas servem para o bem, outras se aprazem em praticar o mal através dos seus atalhos carregados de sofistas, puxa-sacos e baba-ovo de políticos. Uns pulhas!